segunda-feira, fevereiro 28, 2011
Na carta de José a José, Saramago não garante mentira nem verdade. E assina: tua sombra pisada, teu amigo - José.
Carta de José a José
Eu te digo, José: por esta carta
Não garanto mentira nem verdade:
O que de mim não sei sempre me aparta
Da franqueza de ser e da vontade.
São cobiças inúteis, vãos desgostos,
São braços levantados e caídos,
São rugas que cortam os cem rostos
Da comédia e do jogo repetidos.
Desse lado da mesa, ou desse espelho,
Vais seguindo as palavras invertidas:
Assim verás melhor se, quanto, valho
Ao revés dos sinais e das medidas.
(Correm águas geladas no meu rio.
E roucos cantos de aves, derivando
Por silêncio frustrado e calafrio,
Vão manhã doutro dia recordando).
Cai a chuva do céu, e não te molha,
Está a noite entre nós, e não te cega.
Não sorrias, José: à tua escolha
O que nos sobra de alma se me nega.
Desse lado da mesa, onde me acusas.
Te levantas. A marca do teu pé,
Na soleira da porta que recusas,
Fecha de vez a carta inacabada.
Tua sombra pisada, teu amigo - José.
José Saramago
(1922-2010)
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domingo, fevereiro 27, 2011
Para Álvaro de Campos, a vida, branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.
Vilegiatura
O sossego do noite, na vilegiatura no alto;
O sossego, que mais aprofunda
O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;
O silêncio, que mais se acentua,
Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro...
Ah, a opressão de tudo isto!
Oprime como ser feliz!
Que vida idílica, se fosse outra pessoa que a tivesse
Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada
Sob o céu sardento de estrelas,
Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!
Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa.
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente.
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.
Sempre esta inquietação mordida aos bocados
Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.
Sempre este mal-estar tomado aos mais haustos
Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.
Sempre, sempre, sempre
Este defeito da circulação na própria alma,
Esta lipotimia das sensações,
Isto...
(Tuas mãos esguais, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu ragaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o ideal de uma outra.
Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo.
Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
"Tenho pena que todos os dias não sejam assim" -
Assim, como aquele dia que não fora nada...
Ah, não sabias,
Felizmente não sabias,
Que a pena é todos os dias serem assim, assim:
Que o mal é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar -
Que a pena é essa...
Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas,
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que, no formidável algures da vida,
Casaste. Creio que és mãe. Deves ser feliz.
Por que o não haverias de ser?
Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?
(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo).
.........................................................................................
A vida, branco ou tinto, é o mesmo, é para vomitar.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, fevereiro 26, 2011
Para Affonso Romano de Sant'Anna, é preciso amar de peito aberto a morte, Amar a morte, despudoradamente, como se ama uma bela mulher.
Amar a morte
Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.
Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente. Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.
Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)
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sexta-feira, fevereiro 25, 2011
Adélia Prado queria mais um amor, mas tudo foi em vão. Não entendeu, até seu coração lhe responder: é desprezo de amor.
A Meio Pau
Queria mais um amor. Escrevi cartas,
remeti pelo correio a copa de uma árvore,
pardais comendo no pé um mamão maduro
- coisas que não dou a qualquer pessoa -
e mais que tudo, taquicardias,
um jeito de pensar com a boca fechada,
os olhos tramando um gosto.
Em vão.
Meu bem não leu, não escreveu,
não disse essa boca é minha.
Outro dia perguntei a meu coração:
o que há durão, mal de chagas te comeu ?
Não, ele disse: é desprezo de amor.
Adélia Prado
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quinta-feira, fevereiro 24, 2011
Toma-me. E ao teu lado me estendo imensa de púrpura, de prata, de delicadeza, diz Hilda Hilst ao seu amor.
Toma-me
Toma-me.
A tua boca de linho sobre a minha boca austera.
Toma-me agora, antes
Antes que a carnadura se esfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.
Tempo do corpo este tempo. Da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.
Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa
De púrpura. De prata. De delicadeza.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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quarta-feira, fevereiro 23, 2011
Isto é o meu grito de desespero, que a voz rouca despede entre os lábios vacilantes. E quando o olhar não vê mais porque soçobrou nas lágrimas, nos versos de dor de Cecília Meireles.
Poema
Isto é o meu grito de desespero,
que a voz rouca despede entre os lábios vacilantes,
quando o olhar não vê mais porque soçobrou nas lágrimas.
Isto é o meu grito de desespero
pelas palavras enganosas, pelos caminhos imperfeitos,
pelas inverídicas luzes
que antes de mim deixaram sobre a terra
multidões e multidões.
Isto é o meu grito de desespero,
porque não há passagem, pelas criaturas,
para o meu pensamento inconciliável.
Isto é o meu grito de desespero,
porque eu vim para convivas preclaros
trazendo tudo que em mim cultivei
como um jardim para descanso no meio do mundo.
Isto é o meu grito de desespero,
caído quase como de sol.
Aqui o sentido das bençãos falece.
O coração muda-se em águia ou montanha.
E o sonho é de indiferença ou de carnificina.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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terça-feira, fevereiro 22, 2011
Florbela Espanca queria lançar flores de sonho, estranhas, sensuais, aos pés de seu cruel amante. E bem paga ficaria se visse apenas um instante cair como um orvalho os divinos olhos dele.
Humildade
Toda a terra que pisas, eu qu'ria, ajoelhada,
Beijar terna e humilde em lânguido fervor;
Qu'ria poisar fervente a boca apaixonada
Em cada passo teu, ó meu bendito amor!
De cada beijo meu, havia de nascer
Uma sangrenta flor! Ébria de luz, ardente!
No colo purpurino havia de trazer
Desfeito no perfume o mist'rioso Oriente!
Qu'ria depois colher essas flores reais,
Essas flores de sonho, estranhas, sensuais,
E lançar-te aos pés em perfumados molhos.
Bem paga ficaria, ó meu cruel amante!
Se, todas elas, eu visse apenas um instante
Cair como um orvalho os teus divinos olhos!
Florbela Espanca
(1894-1930)
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segunda-feira, fevereiro 21, 2011
Em plena ditadura, Drummond estava sonhando. E havia em todas as consciências um cartaz amarelo: "Neste país é proibido sonhar".
Sentimental
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
- Está sonhando? Olha que a sopa esfria!
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar".
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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domingo, fevereiro 20, 2011
Augusto dos Anjos ainda crê que o homem universal de amanhã vença o homem particular. Aquele mesmo que ele ontem foi.
Último credo
Como ama o homem adúltero o
adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo
mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais
crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...
Creio, perante a evolução
imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
(1884-1914)
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sábado, fevereiro 19, 2011
Na música que é tua, meus lábios torrenciais caem pesados, duros. E nunca mais, nos versos de amor de Eugénio de Andrade.
Os lábios
Na música que é tua,
meus lábios torrenciais
caem pesados, duros.
E nunca mais.
Despenham-se a prumo:
vidros ou punhais.
Arrastam-te ao fundo.
E nunca mais.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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quinta-feira, fevereiro 17, 2011
Manuel Bandeira sonhou ter sonhado que havia sonhado. E chorou de repente, pois viu, despertado, que tinha sonhado.
Tema e variações
Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.
Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
o de ter sonhado
Que estava sonhando.
Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.
Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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quarta-feira, fevereiro 16, 2011
Para Mario Quintana, nenhuma pergunta demanda resposta. E cada verso é uma pergunta do poeta.
Interrogações
Nenhuma pergunta demanda resposta.
Cada verso é uma pergunta do poeta.
E as estrelas...
as flores...
o mundo...
são perguntas de Deus.
Mario Quintana
(1906-1994)
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terça-feira, fevereiro 15, 2011
Você está tão longe que às vezes penso que nem existo. Nem fale em amor que amor é isto, queixa-se Leminski em versos.
Você está tão longe
Você está tão longe
que às vezes penso
que nem existo
Nem fale em amor
que amor é isto
Paulo Leminski
(1944-1989)
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segunda-feira, fevereiro 14, 2011
Como doido, Ferreira Gullar vai cantando num reino que não tem rei. Canta a voz da eterna criança que vive dentro dele.
Cantigas de lembranças
Como doido, vou cantando
num reino que não tem rei.
E uma voz, de quando em quando,
como alguém que não me ouvisse,
murmura (donde nem sei)
velhas frases que eu já disse,
cantigas que eu já cantei!
Paro, súbito. Procuro.
- Quem será que canta assim?
Nada vejo: é muito escuro
o mundo em torno de mim.
Nada vejo, mas prossigo
pelas terras de ninguém.
Sei que levo alguém comigo,
mas não posso saber quem.
De repente, o conhecido
sussurro de que falei
traz de novo a meus ouvidos
uns sons de cristais partidos
das risadas que já dei!
Paro, à força de um desejo,
- Quem dá risadas assim?
Olho em volta, mas não vejo
quem ri tão perto de mim!
Não vejo, entanto, caminho.
E, a cada passo que dou,
sinto que não vou sozinho:
como se eu próprio voltasse
à vida que já passou,
percebo que em mim renasce
o José que eu já não sou!
______________________
Vida boa! só agora
descobri quem é o amigo
que, intransigente, a toda hora,
caminha junto comigo:
vivo eu em paraísos,
caminhe por entre infernos,
palmilhe mundos sem fim,
trarei sempre estes eternos
murmúrios feitos de risos
em mistura com lembrança:
a voz da eterna criança
que vive dentro de mim!
Ferreira Gullar
(1930)
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domingo, fevereiro 13, 2011
Na ode de Ricardo Reis, cada dia sem gozo não foi teu, foi só durares nele. Quanto vivas sem que o gozes, não vives.
Cada dia
Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.
Nada pesa que ames, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco, se te é grato.
Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhuma dia nega
A natural ventura!
Ricardo Reis,
um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sexta-feira, fevereiro 11, 2011
Amor é um não sei quê, que nasce não sei onde. E vem não sei como e dói não sei porquê, confessa em versos sofridos Luís de Camões.
Busque Amor novas artes
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,
Que dias há que na alma tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê;
Luís Vaz de Camões
(1524-1580)
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quinta-feira, fevereiro 10, 2011
Em sua extensa vida amorosa, Vinicius conheceu muitas mulheres ocas. Mas uma das mais belas ele sempre desprezou, a que se dava ao maior dos corruptos e ao pouco letrado cronista social.
As mulheres ocas
Nós somos as longilíneas
Lentas madonas de boate
Iluminamos as pistas
Com nossos rostos de opala.
Vamos em câmara lenta
Sem sorrir demasiado
E olhamos como sem ver
Com nossos olhos cromados.
Nós somos as sonolentas
Monjas do tédio inconsútil
Em nosso escuro convento
A ordem manda ser fútil
Fomos alunas bilíngües
De "Sacre-Coeur" e "Sion"
Mas adorar, só adoramos
A imagem do deus Mamon.**
Nós somos as grã-funestas
Filhas do Ouro com a Miséria
O gênio nos enfastia
E a estupidez nos diverte.
Amamos a vida fria
E tudo o que nos espelha
Na asséptica companhia
Dos nossos machos-de-abelha.
Nós somos as bailarinas
Pressagas do cataclismo
Dançando a dança da moda
Na corda bamba do abismo.
Mas nada nos incomoda
De vez que há sempre quem paga
O luxo de entrar na roda
Em Arpels ou Balenciaga.
Nós somos as grã-funestas
As onézimas letais*
Dormimos a nossa sesta
Em ataúdes de cristal
E só tiramos do rosto
Nossa máscara de cal
Para o drinque do sol posto
Com o cronista social.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
* http://pt.wikipedia.org/wiki/Mamon
** Uma das categorias da Nova Gnomônia, de Jayme Ovalle, que classifica os seres e as coisas em: datas, parás, mozarlescos, kernianos e os onézimos, sendo estes conhecidos "pés-frios". Para maiores esclarecimentos, ver o capítulo [a crônica] "A Nova Gnomônia" em Crônicas da província do Brasil, de Manuel Bandeira.
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quarta-feira, fevereiro 09, 2011
Para Mário de Sá-Carneiro, é infinitamente desgraçada a cortesã. Quando ama, esta mulher vê que coberta está de lama e que essa lama não pode ser tirada.
A cortesã
O penteado muito espaventoso,
Os lábios tintos com carmim,
Olheiras feitas a Nanquim
O vestido justo e vaporoso
Para as formas bem lhe amoldar.
Ela anda assim, quasi que nua,
De noute e de dia pela rua,
Pra trás e pra diante sem parar.
Entrega-se a qualquer pois necessita
Arranjar o seu preciso para viver
Vende o seu corpo por não ter
Outra cousa que venda...coitadita!...
É infinitamente desgraçada
Esta mulher que quando ama,
Vê que coberta está de lama,
E que essa lama não pode ser tirada.
Compaixão devemos pois nutrir
Por essa tão mísera criatura
Que como as honestas nasceu pura
Mais que depois veio a sucumbir!
Aquela que uma infância rodeada,
Tiver nunca de bem, sempre de mal
Vem a cair, isto é fatal
Nesta existência segregada!...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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terça-feira, fevereiro 08, 2011
Ouve, como tudo é tranquilo e dorme liso. Fecha os olhos e dorme no mais fundo de tudo que nunca floresceu, nos versos de Sophia de Melo Breyner.
Ouve
Ouve:
Como tudo é tranquilo e dorme liso;
Claras as paredes, o chão brilha,
E pintados no vidro da janela
O céu, um campo verde, duas árvores.
Fecha os olhos e dorme no mais fundo
De tudo quanto nunca floresceu.
Não toques nada, não olhes, não te lembres.
Qualquer passo
Faz estalar as mobílias aquecidas
Por tantos dias de sol inúteis e compridos.
Não te lembres, nem esperes.
Não estás no interior dum fruto:
Aqui o tempo e o sol nada amadurecem.
Sophia de Melo Breyner
(1919-2004)
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segunda-feira, fevereiro 07, 2011
Alberto Caeiro não quer o presente, quer a realidade. Quer as coisas que existem, não o tempo que as mede.
Vive, dizes
Vive, dizes, no presente:
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Alberto Caeiro
domingo, fevereiro 06, 2011
Em sua cantiga de enganar, Drummond diz que o mundo não vale o mundo, o mundo não vale a pena. Para ele, o mundo não tem sentido, o mundo é talvez e talvez não seja nem talvez.
Cantiga de enganar
O mundo não vale o mundo,
meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê, de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa...e se sobe
algum som desse declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de ouvidar,
de lembrar e de fruir,
do escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: idéias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
- mas a força não existe -
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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Carlos Drummond de Andrade
sábado, fevereiro 05, 2011
Abgar Renault reconhece, meio sem jeito, que hoje está inabitável, a vida está doendo, doendo. Mas quem nunca se sentiu assim pelo menos uma vez na vida?
Balada da irremediável tristeza
Eu hoje estou inabitável...
Não sei por quê...
levantei com o pé esquerdo:
o meu primeiro cigarro amargou
como uma colherada de fel;
a tristeza de vários corações bem tristes
veio, sem quê, nem por quê,
encher meu coração vazio...vazio...
Eu hoje estou inabitável...
A vida está doendo...doendo...
A vida está toda atrapalhada...
estou sozinho numa estrada
fazendo a pé um raid impossível.
Ah! se eu pudesse me embebedar
e cambalear...cambalear...
cair, e acordar desta tristeza
que ninguém, ninguém sabe...
Todo mundo vai rir destes meus versos,
mas jurarei por Deus, se for preciso:
eu hoje estou inabitável...
Abgar Renault
(1901-1995)
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Abgar Renault
sexta-feira, fevereiro 04, 2011
Bertolt Brecht lembra os seus tempos de riqueza, apenas sete semanas da sua vida. E de como logo depois teve que fugir dos nazistas para não morrer.
Meu tempo de riqueza
Por sete semanas de minha vida fui rico.
Com os rendimentos de uma peça comprei
Uma casa com um grande jardim. Eu a havia
Observado durante mais tempo do que o que nela morei.
Em diferentes horas do dia e da noite eu passava
Para ver como ficavam as velhas árvores em meio à relva ao alvorecer
Ou o viveiro de carpas com musgo, numa manhã chuvosa
Para ver as sebes no pleno sol do meio-dia
Os rododendros brancos à tardinha, depois do toque do ângelus.
Então me mudei com os amigos. Meu carro
Ficou sob os pinheiros, Olhamos em torno: de nenhum lugar
Via-se os limites do jardim, os declives dos gramados
E os grupos de árvores impediam que uma sebe avistasse a outra.
Também a casa era bonita. A escada de madeira nobre, tratada com perícia
Com degraus baixos e balaustrada de belas medidas.
Os cômodos pintados de branco
Tinham tetos de madeira lavrada. Grandes fogões de ferro
De forma graciosa, traziam imagens gravadas: camponeses no trabalho.
Portas maciças levavam ao vestíbulo ameno, com bancos e mesas de carvalho
Suas maçanetas de bronze haviam sido cuidadosamente escolhidas
E as lajes em torno da casa de cor castanha
Eram lisas, e gastas com as pisadas
De antigos moradores. Que proporções agradáveis! Cada aposento
diferente
E cada qual o melhor. E como mudavam segundo a hora do dia!
Mas a mudança das estações, certamente preciosa, não vivemos, pois
Após sete semanas de genuína riqueza deixamos a propriedade; logo
Fugíamos através da fronteira.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
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quinta-feira, fevereiro 03, 2011
Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos e nas tuas antigas palavras. Enquanto o vento passava tornei a viver contigo, lembra com tristeza Cecilia Meireles.
Valsa
Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.
Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.
Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.
Cecília Meireles
Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos,
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.
Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.
Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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quarta-feira, fevereiro 02, 2011
Sete anos levaram numa pendenga a Câmara Paulista e Gonçalo Pires por causa de cama, cobertor, lençol e colchão. Segundo Mário de Andrade, paulista emperrando, não cede não.
Moda da cama de Gonçalo Pires
Gonçalo Pires possui uma cama,
Em nossa vila não tem mais nenhuma,
Gonçalo Pires se dá um estadão,
Só ele na terra dorme gostoso
Em traste bonito de estimação.
Delém, dem! dem"... O sr. Ouvidor,
Representante de Felipe IV,
Já vem subindo pelo Cubatão.
O dr. Antonio Rebelo Coelho
Vem nesta vila fazer correição.
Delém! Dem! Dem!... São Paulo nos acuda!
Se agita a Municipalidade,
Ouvidor-geral não dorme no chão!
Gonçalo Pires não quer emprestar
Cama cobertor lençol e colchão.
Mas os vereadores são bons paulistas
E Francisco Jorge, o procurador,
Recebe da Câmara autorização:
Trará a cama de Gonçalo Pires,
Ele que deixe de mangação!
Gonçalo Pires resmunga, peleja,
Mas a autoridade é da Autoridade,
Lá vêm pelas ruas em procissão,
Cobertos de olhos relampeando inveja
Cama cobertor lençol e colchão.
Que úmido frio...Das várzeas em torno
Da noite vazia que não tem fim
Dissolve as casinhas a cerração...
O Ouvidor-geral sonha em cama boa
E Gonçalo Pires dorme no chão.
Delém! dem! dem!... O Ouvidor vai-se embora.
Sai mais festejado que quando entrou...
A Câmara impa de satisfação.
Mas os vereadores são bons paulistas:
- Que entregue-se a cama com prontidão.
Gonçalo Pires rejeita o bem dele.
Não dorme em cheiro de ouvidor-geral...
Se reune a Câmara em nova sessão.
- Lave-se o lençol! indica o notário.
Qual! Gonçalo empaca no rejeição.
Sete anos levam nessa pendenga
A Câmara Paulista e Gonçalo Pires,
Paulista emperrando, não cede não.
E a História não sabe que fim levaram
Cama cobertor lençol e colchão.
Mário de Andrade
(1893-1945)
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terça-feira, fevereiro 01, 2011
Para Manoel de Barros, de primeiro as coisas só davam aspecto, não davam idéias. Até a lítera elegância da urna consolata.
De primeiro as coisas só davam aspecto
De primeiro as coisas só davam aspecto
Não davam idéias.
A língua era incorporante.
Mulheres não tinham caminho de criança sair
Era só concha*.
Depois é que fizeram o vaso da mulher com uma
abertura de cinco centímetros mais ou menos.
(E conforme o uso aumentava).
Ao vaso da mulher passou-se mais tarde a chamar
com lítera elegância de urna consolata.
Esse nome não tinha nenhuma ciência brivante
Só que se pôs a provocar incêndio a dois.
Vindo ao vulgar mais tarde àquele vaso se deu
o nome de cona
Que, afinal das contas, não passava de concha mesmo.
Manoel de Barros
(1916)
*Era só concha: está nas lendas em Nheengatu e Português,
na Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v.154.
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