Sou euSou
eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou
sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou
eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto
quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de
amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um
pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades
mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para
ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E,
ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que
se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim
do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como
de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver
falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a
mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim
algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto
metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a
abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o
mundo
- A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande
sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida
encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não
as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu
mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O
palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as
campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou
eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões
de província.
Sou eu mesmo, que remédio! ...
Álvaro de Campos, um dos
heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando
Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa