sábado, julho 10, 2010

Nascer, nasci em 1922, morrer, morri em mil novecentos e depois. É assim que Paulo Mendes Campos dá início aos seus motes no infinito.


Motes no infinito


nascer, nasci em 1922,
morrer, morri em mil novecentos e depois

as castanhas que me faltaram no frio de 37 em Barbacena
encontrei-as no outono de 49 no cais do Sena

ai flores, ai flores do verde pino
agora que sei que sou um menino

senhora de corpo delgado
nem todo jejum é sagrado

este livro que sempre se manteve fechado
de repente se me abriu de lado a lado

sem dor a árvore do papel
não se livra do mal do mel

eu nem sei quem dantes era
mesmo assim telefono à primavera

pré-história... história... pós-história...
e o borbulhar enfim da festa sem memória...

quem vinha de flor
não me deu amor

é ela que se manda a meu pesar
tão logo aquele Jumbo decolar

é do inferno do pobre (diz Hugô)
que é feito o paraíso do robô

não me dá amor vagar
no Arpoador sem parar

de calça à luz conivente
vai Leonor transparente

saudoso-imaginoso disse o mestre:
guerra como a de Tróia, nunca mais!

se meu amigo viesse e me visse,
se rindo de mim, diria, não disse!?

quem o mundo juntou sem ter partido
é comuna (Jesus) da linha justa

ao vagaroso passo dos meus bois
vou no meu vir-a-ser-antes-depois

poesia, bizarro contrabando
que seres fronteiriços vão passando

senhora mui louçã a quem chamei de flor
me disse alto e bom som: ora, não enche, pô!

aqui em Beagá, do alto dos picos,
sem dizer a ninguém crio o Dia do Fícus

minha mãe velida,
vê no que deu minha vida!

quando la festa è finita subito o lenta
il silenzio di ceneroni me spaventa

senhora formosa, por meu mal
ando em regime de amor e sal

descalça vai para a praia
Leonor, de biquíni de cambraia

quem pretende ir-se embora quando passa
lindo filme de bruma na vidraça?

sonhos, quem não os tem quando a garoa
de São Paulo nos leva à vida à-toa

meu ser evaporei na lida insana
que no meu tempo foi Copacabana

eu vi a Gioconda em Paris:
mamona lisa nunca vi

foi-se o perjurado, sumiu de Ipanema
sem deixar recado, sem telefonema

busca: não acharás a poesia:
vai-se o voar a pomba da palavra

busca: talvez acharás a poesia
quando o vôo sem pomba regressar

quem Jânio Quadros não entende
entender o mundo e seu pai pretende

amiga, tive recado
de seu amigo (coytado!)

a prosa de Malherbe não durou
o espaço duma rosa tipográfica

- ay Deus, val! - tudo legal?
- tudo legal! - ay Deus, val!

trespassa a nossa pálpebra a festa solar:
quando for noite, abrir os olhos devagar

dizia la bem talhada:
que gana de feijoada!

em caso de pasto disse a fremosinha:
quero filé grelhado sem batatinha

quando é hora do rush, o sol se esconde
e a passarada que não sabe aonde

senhora, agora, vos rogo, sem demora,
o meu coração Mendes tá na hora

na ribeira do rio vento frio
faz no meu rosto rugas quando rio

erros meus, má fortuna, amor ardente,
mais uma espondilose recumbente

terras lindas que (quanto tempo!) percorri
andam hoje a fazer turismo em mim

rio dos rios todos que vi ou não vi:
das barracas de Logos, nunca sou daqui

O poeta vende um pano tão diverso
que a seu reverso dá nome de verso

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

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