quinta-feira, junho 27, 2013

Para os de sua classe, Bertolt Brecht foi expulso por ser um traidor. Para a sua gente, ele foi expulso por um bom motivo.


Por um bom motivo.

Eu cresci como filho
De gente abastada. Meus pais
Me colocaram um colarinho, e me educaram
No hábito de ser servido
E me ensinaram a dar ordens. Mas quando
Já crescido, olhei em torno de mim
Não me agradaram as pessoas da minha classe e me juntei
À gente pequena.

Assim
Eles criaram um traidor, ensinaram-lhe
Suas artes, e ele
Denuncia-os ao inimigo.
Sim, eu conto seus segredos. Fico
Entre o povo e explico
Como eles trapaceiam, e digo o que virá, pois
Estou instruído em seus planos.
O latim de seus clérigos corruptos
Traduzo palavra por palavra em linguagem comum,

Então
Ele se revela uma farsa. Tomo
A balança da sua justiça e mostro
Os pesos falsos. E os seus informantes relatam
Que me encontro entre os despossuídos, quando
Tramam a revolta.
Eles me advertiram e me tomaram
O que ganhei com meu trabalho. E quando me corrigi
Eles foram me caçar, mas
Em minha casa
Encontraram apenas escritos que expunham
Suas tramas contra o povo. Então
Enviaram uma ordem de prisão
Acusando-me de ter idéias baixas, isto é
As idéias da gente baixa.
Aonde vou sou marcado
Aos olhos dos possuidores.
Mas os despossuídos
Lêem a ordem de prisão
E me oferecem abrigo. Você, dizem
Foi expulso por bom motivo.


Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht


quarta-feira, junho 26, 2013

Abre-te boca e proclama, em plena praça da Sé, o horror que o Nazismo infame é. E sem piedade por ninguém, pede Mário de Andrade, conta os crimes que o estrangeiro tem.


Abre-te boca

Abre-te e proclama
Em plena praça da Sé,
O horror que o Nazismo infame
É.

Abre-te boca e certeira,
Sem piedade por ninguém,
Conta os crimes que o estrangeiro
Tem.

Mas exalta as nossas rosas,
Esta primavera louca,
Os tico-ticos mimosos,
Cala-te boca.

Mário de Andrade
(1892-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

terça-feira, junho 25, 2013

Aquele mover de olhos excelente inflamou o coração de Camões dum doce engano. E apesar da causa lhe esforçar o sofrimento, a razão lhe faz a pena alegre ou triste.


Aquele mover de olhos excelente

Aquele mover de olhos excelente,
aquele vivo espírito inflamado
do cristalino rosto transparente;

aquele gesto imoto e repousado,
que, estando na alma propriamente escrito,
não pode ser em verso trasladado;

aquele parecer, que é infinito
para se compreender de engenho humano,
o qual ofendo enquanto tenho dito,

me inflama o coração dum doce engano.
me enleva e engrandece a fantasia,
que não vi maior glória que meu dano.

Oh, bem-aventurado seja o dia
em que tomei tão doce pensamento,
que de todos os outros me desvia!

E bem-aventurado o sofrimento
que soube ser capaz de tanta pena,
vendo que o foi da causa o entendimento!

Faça-me, quem me mata, o mal que ordena;
trate-me com enganos, desamores;
que então me salva, quando me condena.

E se de tão suaves disfavores
penando vive üa alma consumida,
oh! que doce penar! que doces dores!

E se üa condição endurecida
também me nega a morte, por meu dano,
oh! que doce morrer! que doce vida!

E se me mostra um gesto brando e humano,
como quem de meu mal culpada se acha,
oh! que doce mentir! que doce engano!

E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
mostrando refrear o pensamento,
oh! que doce fingir! que doce cacha!

Assim que ponho já no sofrimento
a parte principal de minha glória,
tomando por milhor todo o tormento.

Se sinto tanto bem só na memória
de vos ver, linda Dama, vencedora,
que quero eu mais que ser vossa a vitória?

Se tanto vossa vista mais namora
quanto eu sou menos para merecer-vos,
que quero eu mais que ter-vos por senhora?

Se procede este bem de conhecer-vos
e consiste o vencer em ser vencido,
que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?

Se em meu proveito faz qualquer partido,
só na vista duns olhos tão serenos,
que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Se meus baixos espritos, de pequenos,
ainda não merecem seu tormento,
que quero eu mais, que o mais não seja menos?

A causa, enfim, me esforça o sofrimento,
porque, apesar do mal, que me resiste,
de todos os trabalhos me contento;
que a razão faz a pena alegre ou triste.

Luis Vaz de Camões
(1524-1580)

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segunda-feira, junho 24, 2013

Quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu? Mario Quintana surpreende-se no espelho ao ver um rosto cada vez menos estranho.


O velho no espelho

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus...Parece
Meu velho pai...que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
"O que fizeste de mim?!"
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga...Que importa?! Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra! -
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

Mario Quintana
(1906-1994)

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domingo, junho 23, 2013

O mundo é grande, mas o Humanismo de Drummond é muito maior. Por isso, seu coração cresceu até explodir.


Mundo grande

(Na voz de Carlos Drummond de Andrade)
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho
cruamente nas livrarias: preciso de todos. 
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande. 
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros,
carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem...sem que ele estale. 
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo... 
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos-voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam). 
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre. 
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante
exaustivas e convocando ao suicídio. 
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
que o mundo, o grande mundo está
crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor. 
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
-ó, vida futura! Nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, junho 21, 2013

Hoje te canto e depois no pó que hei de ser te cantarei de novo. Hoje te canto e depois emudeço se te alcanço, declara Hilda Hilst ao seu amor.


Hoje te canto


Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,
Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem
Teu pasto que é o meu verso orvalhado de tintas
E de um verde negro teu casco e os areais
Onde me pisas fundo. Hoje te canto
E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.
De escarlate.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

quinta-feira, junho 20, 2013

Para Darcy Ribeiro, tesão é a força que move a vida. Na plenitude, é felicidade pura, na carência, é dor que dói.


Lassa

Tesão — força que move a vida.
Na plenitude, é felicidade pura.
Na carência, é dor que dói.

Ó gozo de ver, admirar, acariciando.
Ò gozo de abraçar, beijar, bolinando
Ó supremo gozo de meter, possuir, penetrando,
na divina convulsão rítmica do coito.

Ficar lá dentro abismado, apertado.
Sentindo o grelo tremer de gozo.
O sacro canal melar, enlanguescer.
Vendo você se aquietar, lassa.
Tudo, afinal, uma tremura arrepiada.

Darcy Ribeiro
(1922-1997)

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quarta-feira, junho 19, 2013

Manoel de Barros não tem bens de acontecimentos. E o que não sabe fazer, desconta nas palavras.


Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada


I
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

terça-feira, junho 18, 2013

Ronald de Carvalho sugere que enquanto disputam os doutores gravemente sobre o bem e o mal, o erro e a verdade, o consciente e o inconsciente, você deve aproveitar o momento. E fazer da tua realidade uma obra de beleza.


Sabedoria 


Enquanto disputam os doutores gravemente
sobre a natureza
do bem e do mal, do erro e da verdade,
do consciente e do inconsciente;
enquanto disputam os doutores sutilíssimos,
aproveita o momento!

Faze da tua realidade
uma obra de beleza

Só uma vez amadurece,
efêmero imprudente,
o cacho de uvas que o acaso te oferece...

Ronald de Carvalho
(1893-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_de_Carvalho

segunda-feira, junho 17, 2013

Essa existência não vale a angústia de viver, dizia um sábio a Guilherme de Almeida. E o poeta começou a ver, dentro da própria morte, o encanto de morrer.


Esta vida

Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

domingo, junho 16, 2013

Em meio a seios, ventre, pernas, flores, rios e desertos, Vinicius sente-se nu e só. A ouvir o Homem que chora a vida e a morte no momento breve.


Soneto do breve momento

Plumas de ninhos em teus seios; urnas
De rubras flores em teu ventre; flores
Por todo corpo teu, terso das dores
De primaveras loucas e noturnas.

Pântanos vegetais em tuas pernas
A fremir de serpentes e de sáurios
Itinerantes pelos multivários
Rios de águas estáticas e eternas.

Feras bramindo nas estepes frias
De tuas brancas nádegas vazias
Como um deserto transmudado em neve.

E em meio a essa inumana fauna e flora
Eu, nu e só, a ouvir o Homem que chora
A vida e a morte no momento breve.

Vinícius de Moraes
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sexta-feira, junho 14, 2013

Dez bailarinas deslizam por um chão de espelho em redor das mesas. E os homens gordos olham com um tédio enorme as bailarinas tão frias.


Balada das dez bailarinas do cassino


Dez bailarinas deslizam
por um chão de espelho.
Têm corpos egípcios com placas douradas,
pálpebras azuis e dedos vermelhos.
Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,
e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas
sem voz, em redor das mesas.
Há mãos sobre facas, dentes sobre flores
e com os charutos toldam as luzes acesas.
Entre a música e a dança escorre
uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avançam
como gafanhotos perdidos.
Avançam, recuam, na sala compacta,
empurrando olhares e arranhando o ruído.
Tão nuas se sentem que já vão cobertas
de imaginários, chorosos vestidos.

A dez bailarinas escondem
nos cílios verdes as pupilas.
Em seus quadris fosforescentes,
passa uma faixa de morte tranqüila.
Como quem leva para a terra um filho morto,
levam seu próprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tédio enorme
as dez bailarinas tão frias.
Pobres serpentes sem luxúria,
que são crianças, durante o dia.
Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,
embalsamados de melancolia.

Vão perpassando como dez múmias,
as bailarinas fatigadas.
Ramo de nardos inclinando flores
azuis, brancas, verdes, douradas.
Dez mães chorariam, se vissem
as bailarinas de mãos dadas.

Cecília Meireles
(1901-1964)

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quinta-feira, junho 13, 2013

Erros meus, má fortuna, amor ardente. As magoadas iras ensinaram Camões a não querer já nunca ser contente.


Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Luis Vaz de Camões
(1524-1580)

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quarta-feira, junho 12, 2013

Para Jorge de Lima, não há saída mais para esse beco. Tudo perdido, tudo consumado.


Pranto seco

O que há sob essa máscara é um pranto seco,
pranto final, sem lágrimas, calado.
A pele ressecou-se em fruto peco,
a fronte dolorida, o olhar parado.

Não há saída mais para esse beco.
Tudo perdido, tudo consumado.
O que há sob essa máscara é um pranto seco,
sem esponja de fel e último brado.

As formigas subiram pela fronte
e desceram ligeiras pelos cravos
das patas ressequidas, pelas unhas…

Cadáver seco em solitário monte,
sem complacências e sem desagravos,
sem madalenas e sem testemunhas.

Jorge de Lima
(1893-1953)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

terça-feira, junho 11, 2013

A estrada está deserta e Cora Coralina vai caminhando sozinha. Ninguém lhe estende a mão e as mãos atiram pedras.


O chamado das pedras

A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.

A caminhada ...

Tudo deserto.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha...

Errada a estrada.
No frio, no escuro, no abandono.
Tateio em volta e procuro a luz.
Meus olhos estão fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.

Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de criança.
É meu filho que acaba de nascer.

Sozinha...
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra trás.

Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:

Volta...Volta...Volta...
E os morros abriam para mim
Imensos braços vegetais.

E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem... Vem... Vem...

E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou...
Porque não voltou...
E a água do rio que corria
Chamava...chamava...

Vestida de cabelos brancos
Voltei sozinha à velha casa deserta.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina 

segunda-feira, junho 10, 2013

A tarde move-se entre os galhos das mãos de Murilo Mendes. E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade que, sem querer, canta.


Poema da tarde

A tarde move-se entre os galhos de minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim deste meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:

E dentre oe primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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domingo, junho 09, 2013

Você nunca vai saber quanto custa uma saudade, o que vem depois do sábado, a passagem para Pasárgada, Xanadu ou Shangrilá. Quem sabe a chave de uma poema e olhe lá, disse Leminski.


Objeto sujeito

você nunca vai saber
quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado dentro
como fazer de um verso
um objeto sujeito
como passar do presente
para o pretérito perfeito
nunca saber direito

você nunca vai saber
o que vem depois de sábado
quem sabe um século
muito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenas
mais um domingo

você nunca vai saber
e isso é sabedoria
nada que valha a pena
a passagem pra Pasárgada
Xanadu ou Shangrilá
quem sabe a chave
de um poema
e olhe lá

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://leaoramos.blogspot.com.br/search/label/Paulo%20Leminski

sexta-feira, junho 07, 2013

Anjo és tu ou és mulher? Em que mistérios se esconde teu fatal, estranho ser, pergunta Almeida Garrett à mulher que o faz sofrer.


Anjo és!

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve a mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não tem. – Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes – e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? – Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?

Almeida Garrett
(1789-1854)

Mais sobre Almeida Garrett em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Garrett

quinta-feira, junho 06, 2013

Para Alphonsus de Guimaraens, cada um de nós é a bússola sem norte, sempre o presente pior do que o passado. Cantem outros a vida: ele canta a morte.


Cantem outros a clara cor virente

Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.

Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...

Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte...

Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)

Mais sobre Alphonsus de Guimaraens em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alphonsus_de_Guimaraens

quarta-feira, junho 05, 2013

Bocas roxas de vinho, Ricardo Reis e Lídia estão mudos. Certos de que só os deuses socorrem com seu exemplo aqueles que nada mais pretendem que ir no rio das coisas.


Bocas roxas

Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

Ricardo Reis,  um dos heterônimos de
Fernando Pessoa 
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

terça-feira, junho 04, 2013

De que servem a bondade, a liberdade e a razão? Para tantas questões, Bertolt Brecht tem a resposta correta para os bons, os livres e os razoáveis.

De que serve a bondade

I

De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?

De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?

2

Em vez de serem apenas bons, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
ou melhor: que a torne supérflua!

Em vez de serem apenas livres, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!

Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio!

Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brechet em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht 

segunda-feira, junho 03, 2013

Depois de Canudos, Euclides da Cunha sente-se sem condições emocionais de escrever um poema. Melhor deixar uma página vazia.


Página vazia

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De nossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse,
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?”

Euclides da Cunha
(1866-1909)

Mais sobre Euclides da Cunha em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Euclides_da_Cunha

domingo, junho 02, 2013

Princesa Desalento, foi como um poeta chamou um dia a alma de Florbela Espanca. Porque ela é magoada, e pálida, e sombria, como soluços trágicos do vento!


Princesa Desalento

Minh’alma é a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É magoada, e pálida, e sombria,
Como soluços trágicos do vento!

É frágil como o sonho dum momento;
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma boca fria:
Minh’alma é a Princesa Desalento…

Altas horas da noite ela vagueia…
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve minh’alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta…

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca