terça-feira, abril 30, 2013
Sophia de Mello Breyner diz que em todos os jardins ela há de florir e em todos beberá a lua cheia. E que um dia será ela o mar e a areia.
Em todos os jardins
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
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domingo, abril 28, 2013
Para o sexo a expirar, Drummond se volta, expirante. E na raiz de sua vida, ele se enreda e afunda.
Para o sexo a espirar
Para o sexo a espirar, eu me volto, expirante.
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.
Amor, amor, amor - o braseiro radiante
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.
Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,
a minha se rebela ante a morte anunciada.
Quero sempre invadir essa vereda estreita
onde o gozo maior me propicia a amada.
Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer
antes que deliciosa, a exploração acabe.
Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,
e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
de sêmen aljofrando o irreparável ermo.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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sexta-feira, abril 26, 2013
Em hora de sol puro, Ronald de Carvalho ouve o canto enorme do Brasil. O canto dos seus berços, onde dorme o homem de amanhã!
Brasil
Nesta hora de sol puro
palmas paradas
pedras polidas
claridades
faíscas
cintilações
Eu ouço o canto enorme do Brasil!
Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo, gritando,
vociferando!
Redes que se balançam,
sereias que apitam,
usinas que rangem, martelam, arfam, estridulam, ululam e
roncam,
tubos que explodem,
guindastes que giram,
rodas que batem,
trilhos que trepidam,
rumor de coxilhas e planaltos, campainhas, relinchos, aboiados
e mugidos,
repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro-Preto, Bahia,
Congonhas, Sabará,
vaias de Bolsas empinando números como papagaios,
tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,
vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão!
Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil.
Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar...
a conversa dos fazendeiros nos cafezais,
a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,
a conversa dos operários nos fornos de aço,
a conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias
a conversa dos coronéis nas varandas das roças...
Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro
palmas paradas
pedras polidas
claridades
brilhos
faíscas
cintilações
é o canto dos teus berços, Brasil, de todos esses teus berços,
onde dorme, com a boca escorrendo leite,
moreno, confiante,
o homem de amanhã!
Ronald de Carvalho
(1893-1935)
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Ronald de Carvalho
quinta-feira, abril 25, 2013
A fábula da fábula, por Miguel Torga.
Fábula da fábula
Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda gente
Inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E realmente…
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demônio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.
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Miguel Torga
quarta-feira, abril 24, 2013
Em seu auto-retrato falado, Manoel de Barros confessa que se procurou a vida inteira e não se achou. Pelo que foi salvo.
Auto-retrato falado
Venho de um Cuiabá de garimpos e de
ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre
bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes
por gosto de estar
entre pedras de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao
publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal
onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me
achei - pelo que
fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei
uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer da moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
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Manoel de Barros
segunda-feira, abril 22, 2013
Se é paixão, me nego, não quero, não posso, não devo, recuso-me e sinto muito. Pois foi à custa que saí desse labirinto.
Se é paixão
Se é paixão, me nego.
Já resvalei, a alma em pêlo,
neste áspero despenhadeiro.
Se é paixão, não quero.
Conheço seus espinhos de mel,
sei onde me conduz
embora prometa os céus.
Se é paixão, desculpe-me, não posso.
Conheço suas insônias
e a obsessão.
Se é paixão, me vou, não devo...
não adianta teus apelos.
Resistirei, porque aí
morri mil vezes.
Paixão é arma de três gumes,
e ao seu corte estou imune.
Se é paixão, me nego
e não receio que me acuses de medo.
Do desvario conheço todos os segredos.
Se é paixão, recuso-me e sinto muito,
pois foi à custo
que saí do labirinto.
Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)
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Affonso Romano de Sant'Anna
domingo, abril 21, 2013
A vez primeira que te vi, era eu menino e tu menina. Com saudade, lembra Manuel Bandeira sua primeira paixão.
Três idades
A vez primeira que te vi,
Era eu menino e tu menina.
Sorrias tanto... Havia em ti
Graça de instinto, airosa e fina.
Eras pequena, eras franzina...
Ao ver-te a rir numa gavota,
Meu coração entristeceu.
Por quê? Relembro, nota a nota,
Essa ária como enterneceu
O meu olhar cheio do teu.
Quando te vi segunda vez,
Já eras moça, e com que encanto
A adolescência em ti se fez!
Flor e botão...sorrias tanto...
E o teu sorriso foi meu pranto...
Já eras moça...Eu, um menino...
Como contar-te o que passei?
Seguiste alegre o teu destino...
Em pobres versos te chorei.
Teu caro nome abençoei.
Vejo-te agora. Oito anos faz,
Oito anos faz que não te via...
Quanta mudança o tempo traz
Em sua atroz monotonia!
Que é do teu riso de alegria?
Foi bem cruel o teu desgosto.
Essa tristeza é que mo diz...
Ele marcou sobre o teu rosto
A imperecível cicatriz:
És triste até quando sorris...
Porém teu vulto conservou
A mesma graça ingênua e fina...
A desventura te afeiçoou
À tua imagem de menina.
E estás delgada, estás franzina...
Manuel Bandeira
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Manuel Bandeira
quinta-feira, abril 18, 2013
Darcy Ribeiro quer um amor alucinado, depravado, tarado. Ele e ela, os dois, sós, neste mundo dos outros.
Amor
Quero um amor alucinado, depravado,
tarado.
Amor inteiro, de corpo-a-corpo,
enlaçados.
Amor sem reserva, que a tudo se entrega,
lancinante.
Quero você assim, abrasada, pedindo
gozo,
Eriçada, ronronando feito gata,
tesuda.
Seus seios túmidos, me furando o
peito.
Quero você, pentelho contra pentelho,
roçantes.
Carne encravada na carne. Bocas
coladas,
Babadas, meladas, sangrando
sufocadas.
Quero amar você tão bichalmente que
urremos.
Eu, penetrando rasgando. Você me comendo
furiosa.
Nós dois fundidos, unidos, soldados.
Você e eu, nós dois, sós, neste mundo dos
outros.
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Darcy Ribeiro
quarta-feira, abril 17, 2013
Quem sou eu, de onde venho, onde estou e onde me leva o Destino? Depois de tanto filosofar, Bastos Tigre tem a resposta.
Voz interior
Quem sou eu? De onde venho e onde acaso me leva
O Destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo, a tatear, mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.
Grão, no campo da Vida, onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? Da monera? Ou vim do beijo de Eva?
E aonde vou, gemendo, a sangrar os pés nus?
Nessa esfinge da Vida a verdade se esconde;
O espírito concentro e consulto a razão,
E uma voz interior, sincera, me responde:
- Quem és tu? Operário honesto da nação.
De onde é que vens? De casa. Onde é que estais? No bonde.
Para onde vais? Não vês? Para a repartição.
Bastos Tigre
(1882-1957)
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Bastos Tigre
terça-feira, abril 16, 2013
Ana Cristina César fez tudo para o seu amor gostar. Ela queria apenas carinho, mas tantas fez, tantas, tantas fez...
Samba-canção
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhando na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
Ana Cristina César
(1952-1983)
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Ana Cristina Cesar
segunda-feira, abril 15, 2013
Aos deuses sem fiéis, José Saramago invoca e reza. E pergunta a que vem e o que é, mas a resposta não chegou.
Aos deuses sem fiéis
Talvez a hora escura, a chuva lenta,
Ou esta solidão inconformada.
Talvez porque a vontade se recolha
Neste findar de tarde sem remédio.
Finjo no chão as marcas dos joelhos
E desenho o meu vulto em penitente.
Aos deuses sem fiéis invoco e rezo,
E pergunto a que venho e o que sou.
Ouvem-me calados os deuses e prudentes,
Sem um gesto de paz ou de recusa.
Entre as mãos vagarosas vão passando
A joeira do tempo irrecusável.
Um sorriso, por fim, passa furtivo
Nos seus rostos de fumo e de poeira.
Entre os lábios ressecos brilham dentes
De rilhar carne humana desgastados.
Nada mais que o sorriso retribui
O corpo ajoelhado em que não estou.
Anoitece de todo, os deuses mordem,
Com seus dentes de névoa e de bolor,
A resposta que aos lábios não chegou.
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José Saramago
domingo, abril 14, 2013
Vi sempre o mundo independente de mim. Então, eu que me aguente comigo e com os comigos de mim, reconhece Álvaro de Campos.
Contudo
Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.
Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.
Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Alvaro de Campos
sexta-feira, abril 12, 2013
As palavras que te envio são interditas, meu amor. E a noite cresce apaixonadamente nos versos de Eugénio de Andrade.
As palavras interditas
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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quinta-feira, abril 11, 2013
Para Cecília Meireles, fala-se com os homens, com os santos, consigo, com Deus. E ninguém entende o que está contando e a quem.
Amém
Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
também.
A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo - e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?
Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus...E ninguém
entende o que está contando
e a quem...
Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima de queixas.
Amém.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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quarta-feira, abril 10, 2013
Mia Couto diz que não saberá nunca dizer adeus. Afinal, só os mortos sabem morrer.
Poema de despedida
Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo.
Mia Couto
(1955)
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terça-feira, abril 09, 2013
Mario Quintana diz que há um grande silêncio que está sempre à escuta. E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala, o silêncio escuta...e cala.
O silêncio
Há um grande silêncio que está sempre à escuta...
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!
E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.
Mario Quintana
(1906-1994)
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segunda-feira, abril 08, 2013
Ela estava sentada cantando um lindo canto de amor. E só de ouvir este canto Mário Sá-Carneiro diz que ficou por ela loucamente enamorado.
Como o meu amor brotou por ti
Ao luar estava sentada
Quando te amei e te vi
Cantavas um lindo canto
O qual canto eu bem ouvi.
Escutei-o uma vez só
Mas pude-o bem decorar
Pra prova vou te dizer
O que estavas a cantar:
- "O meu coração está ferido
Pelas setas do amor
E por isso vou chamar
Para o sarar o doutor.
Que é um lindo rapaz
Mais belo do que uma rosa
Tem os olhos muito negros,
A boca mui graciosa,
É alto, é elegante
E amo-o até ao extremo.
Eu só vivo para ele
E por ele tudo temo.
Vê-lo, vê-lo, falar-lhe
É pra mim o maior gozo.
Só ele no mundo quero
E quererei pra meu esposo.
O meu coração está ferido
Pelas setas do amor,
E por isso vou chamar
Para o sarar o doutor!".
E só d'ouvir deste canto
Pelos teus lábios cantados
Fiquei por ti, oh! meu anjo
Loucamente enamorado.
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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quinta-feira, abril 04, 2013
Para Guimarães Rosa, o rio nasce toda a vida. Só que o rio sempre renasce e a morte é vida.
Alongo-me
O rio nasce
toda a vida.
Dá-se
ao mar a alma vivida.
A água amadurecida
a face
ida.
O rio sempre renasce.
A morte é vida.
Guimarães Rosa
(1908-1967)
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quarta-feira, abril 03, 2013
Sobre a essência do amor, Mayakovsky escreveu uma carta de Paris ao Camarada Kostróv. Leia-a você também.
Carta de Paris ao Camarada Kostróv sobre a essência do amor
Perdoe
-me,
camarada Kostróv,
com sua habitual
largueza de vista,
se eu desperdiço,
as minhas estrofes
de Paris
em lírica imprevista.
Imagine:
uma beleza
entra na sala
vestindo peles e adereços.
A essa
bela presa
a minha fala
(não sei se
bem ou mal)
eu endereço:
Sou russo, camarada,
e sou famoso em meu país.
Já tive muitas namoradas
bonitas -
todas as que eu quis.
As mulheres
amam os poetas.
Sou vivo,
minha voz é de bom timbre.
Tonteio como éter.
Basta
ouvir-me.
Não me fisgam
com armas
sem valor.
Não caio
por qualquer charme.
Eu fui
para sempre ferido pelo amor -
mal e mal
posso arrastar-me.
Não meço
o amor
pelo matrimônio.
Deixou de amar -
passe bem!
Para mim,
camarada,
as cerimônias
valem
menos do que um vintém.
Para que ficar palrando?
Deixe de onda,
formosura,
eu não tenho mais vinte anos,
mas trinta...
e outros tantos
fora da conta.
O amor
não está
em ferver bruscamente,
nem está
em acender uma fogueira,
mas no que há
por trás
das montanhas do peito
e acima
da jangal-cabeleira.
Amar
é ir ao fundo do cercado
e até que a noite
- corvo negro -
chegue
cortar lenha
com chispas
no machado
e a nossa própria força
pôr em xeque.
Amar
é desfazer-se dos lençóis
que a insônia desarruma
e com ciúmes
de Copérnico,
a ele,
não o marido
da Maria dos Anzóis
considerar rival eterno.
O amor
não é paraíso nem geena.
Para nós
o amor
é o atestado
de que
outra vez se engrena
o coração
- motor enferrujado.
Você
rompeu o fio
com Moscou.
Os anos
criam
distâncias.
Como
explicar o que passou
assim de relance?
Na terra
há luzes - até o céu...
No céu azul
estrelas
a granel.
Se eu
não fosse poeta
seria astrônomo por certo.
A praça já se apinha.
Os coches rodam.
Eu passo
anotando linhas.
no meu livro de notas.
Correm
os carros
rente,
mas não me atropelam.
Entendem,
de repente: está em êxtase
por ela.
Sonhos,
visões,
excursos enchem-no
até os ossos.
Aqui
até os ursos
ganhariam asas.
E agora,
quando acabo de fervê-las,
num restaurante barato,
as palavras
soletram das letras
às estrelas
um cometa dourado.
Deixando
pelo céu um longo rastro,
brilha a plumagem do cometa,
para que os namorados
vejam os seus astros
de seus quiosques
de violetas.
Para acordar
e atrair
o apreço
desses
a que a visão já falha.
Para cortar
aos inimigos
a cabeça
com a longa cauda
luminosa
navalha.
Ouço
em meu peito
até o último pulsar
como se o estivesse
esperando
para um encontro:
o amor
a ressoar
simples e humano.
O furacão,
o fogo,
o mar
vêm vindo
furiosamente.
Quem
os pode
domar?
Você pode?
Experimente...
Vladimir Maiakovski
(1893-1930)
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Vladimir Mayakovsky
terça-feira, abril 02, 2013
Leminski fez poesia.
Fazia poesia
fazia poesia
e a maioria saía
tal a poesia que fazia
fazia poesia
e a poesia que fazia
não é essa
que nos faz alma vazia
fazia poesia
e a poesia que fazia
era outra filosofia
fazia poesia
e a poesia que fazia
tinha tamanho família
fazia poesia
e fez alto
em nossa folia
fazia tanta poesia
ainda vai ter poesia um dia
Paulo Leminski
(1944-1989)
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Paulo Leminski
segunda-feira, abril 01, 2013
Em uma de suas odes, Ricardo Reis convida Lídia para sentar-se com ele, à beira do Rio. Porque a vida, como o Rio, passa e não fica, nada deixa e nunca regressa.
Vem sentar-te
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do Rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
Depois, pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que com o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que as crianças.
E se antes do que eu levares o óbulo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio
Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
(1888-1935)
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