terça-feira, fevereiro 26, 2013

Maiakovski diz que não acabarão com o amor. E faz o juramento: amo firme, fiel e verdadeiramente.


Dedução


Não acabarão com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo firme,
fiel
e verdadeiramente.

Vladimir Maiakovski
(1893-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski

segunda-feira, fevereiro 25, 2013

Tanto mais perto quanto mais remoto, o tempo burla as ciências. Para Adélia Prado, o seu sofrimento tem a mesma idade do fóssil de milhões de anos.


O tesouro escondido


Tanto mais perto quanto mais remoto,
o tempo burla as ciências.
Quantos milhões de anos tem o fóssil?
A mesma idade do meu sofrimento.
O amor se ri de vanglórias,
de homens insones nas calculadoras.
O inimigo invisível se atavia,
pra que eu não diga o que me faz eterna:
te amo, ó mundo, desde quando
irrebelados os querubins assistiam.
De pensamentos aos quais nada se segue,
a salvação vem de dizer: adoro-Vos,
com os joelhos em terra, adoro-Vos,
ó grão de mostarda aurífera,
coração diminuto na entranha dos minerais.
Em lama, excremento e secreção suspeitosa,
adoro-Vos, amo-Vos sobre todas as coisas.

Adélia Prado
(1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

domingo, fevereiro 24, 2013

Resta tanta coisa para Vinicius de Moraes. Até a terrível coragem diante do grande medo e esse medo infantil de ter pequenas coragens.


O haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
-  Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
De matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, de uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram nem ontem nem hoje.

Resta essa vontade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada,
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta este constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Este eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes



sexta-feira, fevereiro 22, 2013

Augusto dos Anjos admite que não pode domar seu coração. Porque ninguém doma um coração de poeta.


Vencedor

Toma as espadas rútilas, guerreiro, 
E á rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!


Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

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quinta-feira, fevereiro 21, 2013

Não me peçam razões, que não as tenho, ou que as desculpe, deste modo de amar e destruir. Quando a noite é de mais é que amanhece a cor de primavera que há-de vir, no saber de Saramago.


Não me peçam razões

Não me peçam razões, que não as tenho, 
Ou darei quantas queiram: bem sabemos 
Que razões são palavras, todas nascem 
Da mansa hipocrisia que aprendemos. 


Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago
(1922-2010)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/José Saramago

quarta-feira, fevereiro 20, 2013

No instante do entanto diga minha poesia. E esqueça-me se for capaz, no desafio de Leminski.


No instante do entanto

No instante do entanto
Diga minha poesia
E esqueça-me se for capaz
Siga e depois me diga
Quem ganhou aquela briga
Entre o quanto e o tanto faz

Paulo Leminski
(1944-1989)

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terça-feira, fevereiro 19, 2013

O que Abgar Renault perdeu não foi um sonho bom. Ele perdeu, em sua carne e em seu pensamento, a última rubra flor do fim da mocidade.


Fim

O que eu perdi não foi um sonho bom,
não foi o fruto a embebedar meus lábios,
não foi uma canção de raro som,
nem a graça de alguns momentos sábios.

O que eu perdi, como  quem perde uma outra infância,
foi o sentido do enternecimento,
foi a felicidade da ignorância, foi, em verdade,
na minha carne e no meu pensamento,
a última rubra flor do fim da mocidade.

E dói - não esse gesto ausente, a que se apagam
as flores mais solares, mas uma hora,
- flor de momento numa bela aurora -
hora longínqua, esquiva e para sempre morte,
em cuja escura, inacessível porta
noturnos olham cegamente vagam.

Abgar Renault
(1901-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

segunda-feira, fevereiro 18, 2013

Não, devagar. Devagar, porque não sei onde quero ir, no pedido de Álvaro de Campos.


Não

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos

Uma  divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?


Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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domingo, fevereiro 17, 2013

Anoitecia. E Ferreira Gullar sentiu que a Dor saíra em busca de um peito onde ficasse agasalhada.


Parábola da Dor

Anoitecia,
a Dor saíra em busca
de um peito onde ficasse agasalhada.

Êxtase. Paz. Enlanguescida e fusca,
a luz do poente iluminava a estrada...

Depois de muito andar, à beira do caminho,
avistou um ancião, a meditar sozinho,
sobre uma pedra.

Aproximou-se e disse-lhe:
"Homem,
eu vaguei no mundo a procurar um peito amigo,
trago rotos os pés!
Por tua compaixão, dá-me um abrigo,
...eu sou a Dor...e tu, homem, quem és?"

E o homem, levantando a fronte encanecida,
respondeu:

"Sou filósofo, sou pobre,
e vivo a vida de pensar na vida.
Mas, se queres um abrigo
para o resto da vida que me sobre,
podes morar, podes viver comigo...
És igual, para mim, a qualquer bem terreno:
- se tens outro sabor, tens o mesmo veneno
que todos eles têm!
E eu tenho o viver já quase findo,
sem um dia glória e sem um dia
de prazer, acredito que a alegria
é uma maneira de sofrer sorrindo!...

Portanto, Dor, se queres um abrigo,
podes morar, podes viver comigo".

"...Não, disse a Dor, os pensamentos teus
são céticos demais, não fico - adeus!".

Parti,
Era já noite feita. A lua,
como a Vênus dos astros, seminua,
bailava na amplidão...

Não muito longe,
a Dor viu um mosteiro e, junto à porta
de entrada, um velho e solidário monge.
Mendigou-lhe pousada, e o religioso
acolheu-a dizendo:

" - Entra em meu peito,
Serei, trazendo-te comigo, venturoso
e, chorando por ti, serei perfeito!
Tu serás minha glória, minha cruz.
Jesus, o Mestre, te adorou. E um dia
foste a glória sublime de Jesus!...

Tenho meu peito aberto para te acolher,
bem sei, és-me uma glória imerecida:
- feliz daquele que encontrar na vida
uma oportunidade de sofrer!".

A Dor tudo escutava. E o franciscano
concluiu a dizer:

"Em ti, encontro
a divina razão de ser humano!".

"- Não, disse a Dor, os pensamentos teus
são divinos demais, não fico - adeus!".

E a Dor seguiu, a passo:
A claridade
da lua, pôde ver ao longe uma cidade.
Alcançou-a, depois de alguns momentos,
A cidade dormia. E a Dor, perdida,
foi pelas ruas, caminhando ao léu...
Afinal, encontrou numa avenida
um moço que, deitado sobre um banco,
de olhos serenos, contemplava o céu.

" - Jovem, eu sou a Dor, e vivo em busca
de um peito humano que me ceda abrigo.
Por esta noite, ao menos, dá que eu possa
ficar comigo".

" - O que estás a pedir-me, disse o jovem,
é um sacrifício para mim, no entanto,
meu coração de moço não resiste
à tristeza de alguém sem ficar triste,
nem poder ver alguém chorar, sem ter desejos
de lhe enxugar o pranto!
Se queres, pois, um agasalho, então,
um agasalho encontrarás
em meu coração!

Que me faças sofrer mesmo a todo momento,
unicamente anseio
à glória de ter sempre, em meio ao sofrimento,
uma frase que abrande o sofrimento alheio!".

E a Dor, emocionada, exclama, então:
" - Sublimes e humanos são os pensamentos teus!
E eu não conheço verbo que resuma
o que em frases simplíssimas exprimes.
Extraordinário jovem, tu és, em suma,
um corpo humano onde palpita um deus!
Concede, agora, que eu te beije os pés.
Que de teu peito, para mim aberto,
faça a minha morada predileta...
...E, todavia, inda não sei como és".

E o moço, erguendo para os céus o incerto
e vago olhar, responde:
"Eu sou poeta".

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Pedra sendo, Manoel de Barros tem gosto de jazer no chão. E ainda vê outros previlégios de ser pedra.


A pedra

Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão.
Só privo com lagarto e borboletas.
Certas conchas se abrigam em mim.
De meus interstícios crescem musgos.
Passarinhos me usam para afiar seus bicos.
Às vezes uma garça me ocupa de dia.
Fico louvoso.
Há outros privilégios de ser pedra:
a - Eu irrito o silêncio dos insetos.
b - Sou batido de luar nas solitudes.
c - Tomo banho de orvalho de manhã.
d - E o sol me cumprimenta por primeiro

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

Florbela Espanca chegou a meio da vida já cansada de tanto caminhar. E confessa, já me perdi.



Caravelas

Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar-Morto,
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram.

Caravelas doiradas a bailar...
Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

A uma fala de amor, talvez perjura, por não te possuir, tendo-te minha por só quereres tudo, e eu dar-te nada, hei de lembrar-te sempre com ternura. Foi com este soneto de quarta-feira de cinzas que Vinicius despediu-se de um triste Carnaval.

Soneto de quarta-feira de cinzas

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura. 


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Manuel Bandeira foi a um baile de terça-feira gorda. Enquanto uns tomavam éter, outros cocaína, o poeta tomava alegria.


Não sei dançar


Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
é por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...
Esta foi açafata...
- Não foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugelê banzai!
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão do Seridó é o melhor do mundo?...Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos,
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Para cinquentões e não cinquentões, a nostalgia dos carnavais antigos. Por Carlos Drummond de Andrade.


Para cinquentões


Carnaval, carne dada ao verme
(diz a falsa etmologia),
como pode o cronista inerme
cronicar em plena folia?

Como esquivar-se a teu império
que é serrano em Vila ou Mangueira,
se em mim ri aquilo que é sério,
e séria, mesmo, é a brincadeira?

Carnaval, já não sou tão moço
para esmilinguir-me no frevo
e sair de guizo ao pescoço
(riso, quatripétalo trevo),

Também inda não sou tão velho
que não ouça o ronco da cuíca.
E da razão o bom conselho
(má rima) não me mortifica.

Entre duas águas, meu caro,
meio-lá-meio-cá me sinto
como um animal semi-raro
divagando no labirinto.

Carnaval, magia do samba!
Fígado, fiscal do consumo...
Para dançar na corda bamba
tanto faz, serpentina, o rumo.

Não fugirei para a montanha,
nem pescarei na Marambaia,
pois ante confusão tamanha,
quedemos (Posto 6) na praia,

perto-longe da farra, ouvindo
e vendo, imaginando, enquanto
um carnaval muito mais lindo
dentro em nós eleva seu canto;

carnaval de delícias longas
e cabriolas arlequinais,
feito de caras songamongas
se esbaldando no nunca-mais;

carnaval antigo e futuro,
baile de outro Municipal
ou Praça 11 acesa no escuro
da saudade do carnaval.

E é o melhor de tudo, afinal.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, fevereiro 09, 2013

E vivemos partindo, ela de mim e eu dela, enquanto breves vão-se os anos para a grande partida que há no fim. É o que sente Vinicius de Moraes em seu soneto de carnaval.


Soneto de carnaval

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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sexta-feira, fevereiro 08, 2013

Como todos os homens, Lêdo Ivo é um inacabado. E jamais termina de ser.



O dia inacabado

Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia.
Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento.


Lêdo Ivo
(1924-2012)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAdo_Ivo

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Drummond quer sentir a mão amiga junto da dele. No prazer e na dor.


Quero sentir

Quero sentir tua mão amiga,
junto da minha no prazer, na dor.
Assim, mesmo entoada a última cantiga,
um som há de restar do nosso amor.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Mia Couto está em momento de saudades. Dói-lhe até a distante lembrança de um vestido caindo aos seus pés.


Saudades

Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
dói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trêmula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vazia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
que atormentam o meu sono.

Mia Couto 
(1955)

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sexta-feira, fevereiro 01, 2013

De longe te hei de amar. Cecilia Meireles sabe que o amor é saudade e o desejo a constância.


De longe te hei de amar


De longe te hei de amar,
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo a constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,
a estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.

Cecília Meireles
(1901-1964)

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