segunda-feira, janeiro 28, 2013
Olavo Bilac ainda vê em seu amor vestígios de uma beleza outrora viva. E hoje perdida.
Vestígios
Foram-te os anos consumindo aquela
Beleza outrora viva e hoje perdida...
Porém teu rosto de passada vida
Inda uns vestígios trêmulos revela.
Assim, dos rudes furacões batida,
Velha, exposta aos furores da procela,
Uma árvore de pé, serena e bela,
Inda se ostenta, na floresta erguida.
Raivoso o raio a lasca, e a estala, e a fende...
Racha-lhe o tronco anoso... Mas, em cima,
Verde folhagem triunfal se estende.
Mal segura no chão, vacila...Embora!
Inda os ninhos conserva e se reanima
Ao chilrear dos pássaros de outrora...
Olavo Bilac
(1865-1918)
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domingo, janeiro 27, 2013
Vinicius de Moraes sofreu muito até entender que ela era sua amiga nunca superável. E sua inseparável inimiga.
O amor dos homens
Na árvore em frente
Eu terei mandado instalar um alto-falante com que os passarinhos
Amplifiquem seus alegres cantos para o teu lânguido despertar.
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo
Com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios
E me darás a boca em flor; minhas mãos amantes
Te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga
Do fundo do teu ser de sono e plumas
Para me receber; nossa fruição
Será serena e tarda, repousarei em ti
Como o homem sobre o seu túmulo, pois nada
Haverá fora de nós. Nosso amor será simples e sem tempo.
Depois saudaremos a claridade. Tu dirás
Bom dia ao teto que nos abriga
E ao espelho que recolhe a tua rápida nudez.
Em seguida teremos fome: haverá chá-da-índia
Para matar a nossa sede e mel
Para adoçar o nosso pão. Satisfeitos, ficaremos
Como dois irmãos que se amam além do sangue
E fumaremos juntos o nosso primeiro cigarro matutino.
Só então nos separaremos. Tu me perguntarás
E eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas
Que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher
Até te descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema
Dessa desesperada minha busca; que em ti
Fez-se a unidade. De repente, ficarei triste
E solitário como um homem, vagamente atento
Aos ruídos longínquos da cidade, enquanto te atarefas absurda
No teu cotidiano, perdida, ah tão perdida
De mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito
Como pesada porta. Terei ciúme
Da luz que te configura e de ti mesma
Que te deixas viver, quando deveras
Seguir comigo como a jovem árvore na corrente de um rio
Em demanda do abismo. Vem-me a angústia
Do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar
Que te circunda - o espaço
Que separa os nossos tempos. Tua forma
É outra: bela demais, talvez, para poder
Ser totalmente minha. Tua respiração
Obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta
O ar se faz aroma. Fora de mim
És pura imagem; em mim
És como um pássaro que eu subjugo, como um pão
Que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta
Em que bebo, como um resto de nuvem
Sobre que me repouso. Mas nada
Consegue arrancar-te à tua obstinação
Em ser, fora de mim - e eu sofro, amada
De não me seres mais. Mas tudo é nada.
Olho de súbito tua face, onde há gravada
Toda a história da vida, teu corpo
Rompendo em flores, teu ventre
Fértil. Move-te
Uma infinita paciência. Na concha do teu sexo
Estou eu, meus poemas, minhas dores
Minhas ressurreições. Teus seios
São cântaros de leite com que matas
A fome universal. És mulher
Como folha, como flor e como fruto
E eu sou apenas só. Escravizado em ti
Despeço-me de mim, sigo caminhando à tua grande
Pequenina sombra. Vou ver-te tomar banho
Lavar de ti o que restou do nosso amor
Enquanto busco em minha mente algo que te dizer
De estupefaciente. Mas tudo é nada.
São teus gestos que falam, a contração
Dos lábios de maneira a esticar melhor a pele
Para passar o creme, a boca
Levemente entreaberta com que mistificar melhor a eterna imagem
No eterno espelho. E então, desesperado
Parto de ti, sou caçador de tigres em Bengala
Alpinista no Tibet, monje em Cintra, espeleólogo
Na Patagônia. Passo três meses
Numa jangada em pleno oceano para
Provar a origem polinésica dos maias. Alimento-me
De plancto, converso com as gaivotas, deito ao mar poesia engarrafada, acabo
Naufragando nas costas de Antofagasta. Time, Life e Paris-Match
Dedicam-me enormes reportagens. Fazem-me
O "Homem do Ano" e candidato certo ao Prêmio Nobel.
Mas eis comes um pêssego. Teu lábio
Inferior dobra-se sob a polpa, o suco
Escorre pelo teu queixo, cai uma gota no teu seio
E tu te ris. Teu riso
Desagrega os átomos. O espelho pulveriza-se, funde-se o cano de descarga
Quantidades insuspeitadas de estrôncio-90
Acumulam-se nas camadas superiores do banheiro
Só os genes de meus tataranetos poderão dar prova cabal de tua imensa
Radioatividade. Tu te ris, amiga
E me beijas sabendo a pêssego. E eu te amo
De morrer. Interiormente
Procuro afastar meus receios: "Não, ela me ama..."
Digo-me, para me convencer, enquanto sinto
Teus seios despontarem em minhas mãos
E se crisparem tuas nádegas. Queres ficar grávida
Imediatamente. Há em ti um desejo súbito de alcachofras. Desejarias
Fazer o parto-sem-dor à luz da teoria dos reflexos condicionados
De Pavlov. Depois, sorrindo
Silencias. Odeio o teu silêncio
Que não me pertence, que não é
De ninguém: teu silêncio
Povoado de memórias. Esbofeteio-te
E vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue
Flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura
E coses com linha amarela o meu pulso abandonado, que é para
Combinar bem as cores; em seguida
Fazes-me sugar tua carótida, numa longa, lenta
Transfusão. Eu convalescente
Começas a sair: foste ao cabeleireiro. Perscruto em tua face. Sinto-me
Traído, delinqüescente, em ponto de lágrimas. Mas te aproximas
Só com o casaco do pijama e pousas
Minha mão na tua perna. E então eu canto:
Tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza
Corrói minha carne como um ácido! Teu signo
É o da destruição! Nada resta
Depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento
De todo o meu inútil, a causa
De minha intolerável permanência! Tu és
Uma contrafação da aurora! Amor, amada
Abençoada sejas: tu e a tua
Impassibilidade. Abençoada sejas
Tu que crias a vertigem na calma, a calma
No seio da paixão. Bendita sejas
Tu que deixas o homem nu diante de si mesmo, que arrasas
Os alicerces do cotidiano. Mágica é tua face
Dentro da grande treva da existência. Sim, mágica
É a face da que não quer senão o abismo
Do ser amado. Exista ela para desmentir
A falsa mulher, a que se veste de inúteis panos
E inúteis danos. Possa ela, cada dia
Renovar o tempo, transformar
Uma hora num minuto. Seja ela
A que nega toda a vaidade, a que constrói
Todo o silêncio. Caminhe ela
Lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha
Para o desconhecido - esse eterno par
Com que começa e finda o mundo - ela que agora
Longe de mim, perto de mim, vivendo
Da constante presença da minha saudade
É mais do que nunca a minha amada: a minha amada e a minha amiga
A que me cobre de óleos santos e é portadora dos meus cantos
A minha amiga nunca superável
A minha inseparável inimiga.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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sexta-feira, janeiro 25, 2013
Nos versos de Dante Milano onde está a diferença entre o falso e o verdadeiro amor? Qual dos dois é o verdadeiro?
Poema do falso amor
O falso amor imita o verdadeiro
Com tanta perfeição que a diferença
Existente entre o falso e o verdadeiro
É nula. O falso amor é verdadeiro
E o verdadeiro falso. A diferença
Onde está? Qual dos dois é o verdadeiro?
Se o verdadeiro amor pode ser falso
E o falso ser o verdadeiro amor,
Isto faz crer que todo amor é falso
Ou crer que é verdadeiro todo amor.
Ó verdadeiro Amor, pensam que és falso!
Pensam que és verdadeiro, ó falso Amor!
Dante Milano
(1899-1991)
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quinta-feira, janeiro 24, 2013
Carlos Pena e o refrão do Bar Savoy: são trinta copos de chopp, são trinta homens sentados, trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustrados.
Chopp
Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados
Carlos Pena Filho
(1929-1960)
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quarta-feira, janeiro 23, 2013
Em seu comunicado, Miguel Torga não diz nada de novo. E diz tudo que realmente importa.
Comunicado
Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.
Miguel Torga
(1907-1995)
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segunda-feira, janeiro 21, 2013
Mario Quintana distraíu-se ao receber a Extrema-Unção. Enquanto a voz do Padre zumbia como um besouro ele pensava era nos seus primeiros sapatos.
Ah, mundo
Perdão!
Eu distraí-me ao receber a Extrema-Unção.
Enquanto a voz do padre zumbia como um besouro
eu pensava era nos meus primeiros sapatos
que continuavam andando
que continuam andando
- rotos e felizes! -
por essas estradas do mundo.
Mario Quintana
(1906-1994)
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domingo, janeiro 20, 2013
Para Álvaro de Campos, não há que fazer nada na véspera de não partir nunca. É pouco o tempo que tens, dormita, é a véspera de não partir nunca.
Na véspera
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranquilidade a que nem sabe escolher ombros
Por tudo isto, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberado a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre.
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sexta-feira, janeiro 18, 2013
Em vão Abgar Renault busca acender um diálogo com ela. E seu ser horizontal chora treva e medita a distância, o fulgor, o ritmo de astro de sua amada.
Alegoria
Em vão busco acender um diálogo contigo:
a alma sem tom da tua boca de água e vento
despede cinza, névoa e tempo no que digo,
devolve ao chão o meu mais longo pensamento,
e entre cactos estira esse deserto contigo:
que vem de tua altura ao vale onde me ausento,
procurando o teu verbo. O silêncio, investigo-o,
e ouço o naufrágio, o vácuo e o deperecimento.
Sonho: desces a mim em um céu de algas e rosas,
falas às minhas mãos vozes vertiginosas,
e palavras de flor no teu cabelo enastro.
Desperto: pairas ainda em silêncio e infinita:
meu ser horizontal chora treva e medita
tua distância, teu fulgor, teu ritmo de astro.
Abgar Renault
(1901-1995)
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Abgar Renault
quinta-feira, janeiro 17, 2013
Ferreira Gullar diz que fica o não dito por dito. E que só o que não se sabe é poesia.
Fica o não dito por dito
O poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco
ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra
o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer
e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer
mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?
mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?
por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo
por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo
do andar
do galo
no quintal
e os digo
sem dizê-los
bem ou mal
se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve
(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
- se delirasse -
diria)
mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria
e
se dito não fosse
jamais se saberia
por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)
mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia
então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?
é que só o que não se sabe é poesia
assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite
Ferreira Gullar
(1930)
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quarta-feira, janeiro 16, 2013
Guilherme de Almeida sente no perfume da flor de asfalto qualquer coisa que lembra folhas mortas. E também a vida singular de São Paulo, sua cidade.
Flor de asfalto
Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...
Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!
Flor da cidade, em teu perfume existe
Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...
Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um cume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade.
Guilherme de Almeida
(1890-1969)
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segunda-feira, janeiro 14, 2013
Em seu poema chicote, Murilo Mendes diz que nasceu para não nascer. É que para ele nada existe sem amor.
Poema chicote
Eis o tabuleiro do abismo
Com esfinge, quimeras e grifo.
O céu debruado em ódio
Mostra o peito de arlequim.
Eternidade madrasta,
Meu pensamento me queima
Terrível. Já estou com medo
De avançar para mim mesmo.
Nada existe sem amor.
Esposa que te negaste,
É tarde! em torno de mim
O mito rói a realidade
Cortinas negras abafam
Meu invicto coração.
Ó Deus como tardas a vir
Nas asas do teu enigma!
Nasci para não nascer.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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domingo, janeiro 13, 2013
O filho que não fiz hoje seria homem. Mas o filho que não fiz faz-se por si mesmo, no lamento de Drummond.
Ser
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.
Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.
Interrogo meu filho.
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste,
contudo chamava-te
como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.
O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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sexta-feira, janeiro 11, 2013
Como bom conhecedor, Manoel Barros diz tudo o que é preciso para compor um tratado sobre passarinhos. Porque eles precisam antes de belos ser eternos, eternos que nem uma fuga de Bach.
De passarinhos
Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos
Eternos que nem uma fuga de Bach.
Manoel de Barros
(1916)
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quinta-feira, janeiro 10, 2013
Leminski e a margarida.
Você me amava
Você me amava
disse
a margarida
a margarida
é doce
amarga a vida
Paulo Leminski
(1944-1989)
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terça-feira, janeiro 08, 2013
Ricardo Reis não sabe de quem recorda seu passado. Para ele, somos quem somos, e quem somos foi coisa vista por dentro.
Não sei
Não sei de quem recordo meu passado
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço
Como sentindo com minha alma aquela
Alma que a sentir lembro.
De dia a outro nos desamparamos.
Nada de verdadeiro a nós nos une -
Somos quem somos, e quem somos foi
Coisa vista por dentro.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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segunda-feira, janeiro 07, 2013
Só de ouro falso os meus olhos se douram, sou esfinge sem mistério no poente. Sou templo prestes a ruir sem deus, estátua falsa ainda erguida no ar, no sentimento de Mário de Sá-Carneiro.
Estátua falsa
Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.
Na minha dôr quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim,
Hoje é distancia.
Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!
Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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sexta-feira, janeiro 04, 2013
A lua diz adeus religiosamente e a esta hora tudo em Florbela revive. Saudades de saudades que ela não tem, sonhos que são os sonhos dos que ela teve.
Anoitecer
A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui...outr'ora...
Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bençãos d'amor para toda a gente!
E a minha alma sombria e penitente
Soluça no infinito desta hora...
Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!
E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...
Florbela Espanca
(1894-1930)
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quinta-feira, janeiro 03, 2013
Café com pão, café com pão, café com pão. E lá se vai em seu ritmo todo especial o trem de ferro de Manuel Bandeira.
Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Aí seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
de cantar!
Oô...
Quando me prendero
no canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Ôo...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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quarta-feira, janeiro 02, 2013
O modernista Ascenso Ferreira sempre foi conhecido como homem de grandes paixões. Gostava muito de jogo, comidas, mulheres e de um ingá de doçura louca...
Martelo
Teu corpo é branquinho como a polpa do ingá maduro!
Teu seio é macio como a polpa do ingá maduro!
- E há doçura de grã-fina no teu beijo, que é todo ingá...
- E há doçura de grã-fina no teu beijo, que é todo ingá...
Por isso mesmo,
Minha Maria,
Eu, como a abelha
do aripuá
pra quem doçura
é sempre pouca,
só quero o favo
de tua boca...
Há veludos de imbaúba nessas redes de teus olhos,
que convidam, preguiçosas, a gente para o descanso,
um descanso à beira-rio como o ingazeiro nos dá!
Por isso mesmo,
Minha Maria,
de noite e dia
nessa corrida
triste de ganso,
para descanso
e gozos meus,
só quero a rede
dos olhos teus!
Só quero a rede macia dos teus olhos!
Só quero a doçura de grã-fina do teu beijo...!
E na rede eu me deito,
cochilo e descanso,
tenho um sono manso
que me faz sonhar...
Sonho que és ingá
de doçura louca,
que na minha boca
vem se desmanchar,
que na minha boca
vem se desmanchar...
Ascenso Ferreira
(1895-1965)
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terça-feira, janeiro 01, 2013
Alberto Caeiro sabia que se morresse novo, mesmo que os seus versos nunca fossem impressos, eles lá teriam a sua beleza, se fossem belos. Ele sabia a beleza do que escrevia.
Se eu morrer novo
Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão -
Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraido.
Alberto Caeiro,um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
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