quinta-feira, janeiro 17, 2013

Ferreira Gullar diz que fica o não dito por dito. E que só o que não se sabe é poesia.


Fica o não dito por dito

O poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra

o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer
e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer

mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?

mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?

por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo

por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo
do andar
do galo
no quintal
e os digo
sem dizê-los
bem ou mal

se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve

(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
- se delirasse -
diria)

mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria

e
se dito não fosse
jamais se saberia

por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)

mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia

então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite


Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

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