sexta-feira, setembro 30, 2011

Paulo Leminski diz que ninguém nunca chegou atrasado. Bençãos e desgraças vêm sempre no horário.

 
Atraso pontual

Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relogio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vêm sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?

Paulo Leminski
(1944-1989])

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quinta-feira, setembro 29, 2011

Murilo Mendes quer aquela mulher, profunda e romântica, para receber o diadema construído pela Poesia. E diz ao amor, aproxima-te.


O diadema

Eu quero uma mulher
Para receber o diadema
Construído na perfeição
Quero encontrar uma cabeça
Bela nobre casta e altiva
Filha do povo ou dos deuses
Preciso de uma mulher
Com a majestade no andar
Vaga e lisa a cabeleira
Mulher profunda romântica
Para receber o diadema
Construído pela Poesia.

Aproxima-te.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quarta-feira, setembro 28, 2011

Para Drummond, o amor é um segundo nascimento, um nascer de novo. É no amor que o poeta encontra a descoberta de sentido no absurdo de existir.


Nascer de novo

Nascer: fincou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não advinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou Eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

terça-feira, setembro 27, 2011

Quando escreveu este poema, Caio Fernando Abreu dedicou-o a alguém. Tempos depois, uma mulher dedicou este poema ao seu homem.


Meu coração

Meu coração é um poço de mel,
No centro de um jardim encantado,
Alimentando beija-flores que, depois de prová-lo,
Transforman-se magicamente em cavalos brancos alados
Que voam para longe, em direção à estrela Vega.
Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Cascata de champanha,
Púrpura rosa do Cairo,
Verso de Mario Quintana,
Figo maduo, papel crepon,
Cão uivando pra lua, varinha de incenso.
Acesa, aceso
Vasto, vivo:
Meu coração
É teu.

Caio Fernando Abreu
(1948-1996)

Mais sobre Caio Fernando Abreu em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Caio_Fernando_Abreu

segunda-feira, setembro 26, 2011

Cecília Meireles conhece há muito tempo a dor. Conhece-a de perto, pessoalmente.

.
Conheço a residência da dor

Conheço a residência da dor.
É um lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias diante do céu.

A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.

O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.

Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência, longe,
Em caminhos inesperados.

Às vezes sento-me à sua porta, na sombra das suas árvores.
E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

domingo, setembro 25, 2011

O dia deu em chuvoso, a manhã, contudo, esteve bastante azul. E Álvaro de Campos quer só sossego: carinhos, afetos, são memórias...



Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoas, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, setembro 24, 2011

Para Vicente de Carvalho, aqueles são olhos encantados, olhos pensativos que fazem sonhar, olhos tentadores da mulher amada, olhos abençoados, cheios de promessas. São olhos verdes.


Olhos verdes

Olhos encantados, olhos cor do mar,
olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas coisas, quantas maravilhas
em vos vendo sonho, em vos fitando vejo;
cortes pitorescos de afastadas ilhas
abanando no ar seus coqueirais em flor,
solidões tranquilas feitas para o beijo,
ninhos verdejantes feitos para o amor...

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noite, vai subindo a lua...
O horizonte, como para recebê-las,
de uma fímbria de ouro todo se debrua;
afla a brisa, cheia de ternura ousada,
esfolando as ondas, provocando nelas
bruscos arrepios de mulher beijada...

Olhos tentadores da mulher amada!

Uma vela branca, toda alvor, se afasta
balançando na onda, palpitando ao vento;
ei-la que mergulha pela noite vasta,
pela vasta noite feita de luar;
ei-la que mergulha pelo firmamento
desdobrado ao longe nos confins do mar...

Olhos cismadores que fazeis cismar!

Branca vela errante, branca vela errante,
como a noite é clara! como o céu é lindo!
leva-me contigo pelo mar... Adoante!
fímbria do horizonte onde te vais sumindo
e onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados, cheios de promessas!

Olhos pensativos que fazeis sonhar, olhos cor do mar.


Vicente de Carvalho
(1866-1924)

Mais sobre Vicente de Carvalho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vicente_de_Carvalho

sexta-feira, setembro 23, 2011

Não é mentira. É outra a dor que dói em Ana Cristina Cesar.


Fisionomia

Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

quinta-feira, setembro 22, 2011

Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga. Aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse chaga antiga, nos versos de amor de Leminski.


Ai daqueles

Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram que a mágoa nova
virasse chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é feito pão em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quarta-feira, setembro 21, 2011

Minha mulher, a solidão, consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é ao coração ter este bem que não existe, na ilusão de Fernando Pessoa.



Minha mulher

Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminhos.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda -,
E fala só - leque animado.

FernandoPessoa
(1888-1935)

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terça-feira, setembro 20, 2011

Quando criança Manoel de Barros chegou a pensar que o andarilho Joaquim Sapé fosse um ensaio de cientista da natureza. Mais tarde, chegou à conclusão que ele enxergava prenúncios.


Joaquim Sapé

Os ornamentos de trapo de Joaquim Sapé já estavam
criando cabelo de tão sujos.
Joaquim atravessava as ruelas da Aldeia como se fosse
um Príncipe.
Com aqueles ornamentos de trapo.
Quando entrava na Aldeia com o saco de lata às
costas
Crianças o arrodeavam.
Um dia me falou, esse andarilho (eu era criança):
- Quando chove nos braços de um formiga, o
horizonte diminui.
O menino ficou com a frase incomodando na cabeça.
Como é que esse Joaquim Sapé, que mora debaixo do
chapéu, e que nem tem aparelho de medir céu, pode
saber que os horizontes diminuem quando chove nos
braços de uma formiga?
Se nem quase formiga tem braço!
Igual quando ele me disse que do lado esquerdo do
sol voam mais andorinhas do que os outros pássaros?
Pois ele não tinha aparelho de medir o sol, como
podia saber!
Ele seria um ensaio de cientista?
Ele enxergava prenúncios!

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

segunda-feira, setembro 19, 2011

No beijo que nunca deu em seu amor, Florbela Espanca guardava os versos mais lindos que tinha feito. Tanto amor!


Os versos que te fiz 

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz! 

Florbela Espanca
( 1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

domingo, setembro 18, 2011

Em outro alguém Drummond está nascendo. Não é ele, ele é o Outro que nele procura o seu destino.


Nascer de novo

Nascer: fincou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não advinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou Eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, setembro 17, 2011

Ponho as mãos no teu corpo musical onde esperam os sons adormecidos. Se no silêncio em que a canção esmorece outro tom se insinua, emudece: não se consente em violino fado, no pedido de José Saramago.


Em violino fado

Ponho as mãos no teu corpo musical
Onde esperam os sons adormecidos.
Em silêncio começo, que pressente
A brusca irrupção do tom real.
E quando a alma ascendendo canta
Ao percorrer a escala dos sentidos,
Não mente a alma nem o corpo mente.
Não é por culpa nossa se a garganta
Enrouquece e se cala de repente
Em cruas dissonâncias, em rangidos
Exasperantes de acorde errado.

Se no silêncio em que a canção esmorece
Outro tom se insinua, recordado,
Não tarda que se extinga, emudece:
Não se consente em violino fado.

José Saramago 
(1922-2010)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

sexta-feira, setembro 16, 2011

Cassiano Ricardo não espera outra vida, depois desta. E seus argumentos são muito sensatos.


A outra vida

Não espero outra vida, depois desta,
Se esta é má
Por que não bastará aos deuses, já,
A pena que sofri?
Se é boa a vida, deixará de o ser,
Repetida.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo
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quinta-feira, setembro 15, 2011

António Gedeão sabe que o seu desespero não interessa a ninguém. E que a Humanidade é mais gente do que ele e o Mundo é maior do que o bairro onde habita.


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém 

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.

António Gedeão
(1906-1997)

Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gede%C3%A3o

quarta-feira, setembro 14, 2011

Se a mesma sóbria dor em tudo pomos, não vês o que me calo. E assim nós somos o que não somos nem seremos mais, diz Moacyr Félix em seu sentimento clássico.


Sentimento clássico 

Pisados, os olhos com que pisaste
a soleira escura de minha face;
e por mais pontes que entre nós lançasse,
ao que de fato sou nunca chegaste.
Que distâncias lamento, e que contraste !
Gravando em cada ser o amor que nasce
não encontrei o amor que me encontrasse:
amaram sem me ver, como me amaste.
Tinha os olhos tristes como eu tenho,
e o pranto que eu te trouxe de onde venho
é o mesmo que te espera adonde vais.

Se a mesma sóbria dor em tudo pomos,
não vês o que me calo. E assim nós somos
o que não somos nem seremos mais.

Moacyr Félix 
(1926-2005)

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http://en.wikipedia.org/wiki/Moacyr_F%C3%A9lix

terça-feira, setembro 13, 2011

O bonde de Mario Quintana passa pelo Mercado. Mas para ele todos os bondes vão para o infinito.


Meu bonde passa pelo mercado

Meu bonde passa pelo Mercado
Mas o que há de bom mesmo não está à venda.
O que há de bom não custa nada.
Este momento de euforia é a flor da eternidade.
E essa minha alegria inclui também minha tristeza
- a nossa tristeza...
Tu não sabias, meu companheiro de viagem?
Todos os bondes vão para o infinito!

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana


domingo, setembro 11, 2011

Tudo, menos o tédio, me faz tédio. Tanto aspirei, tanto sonhei, que tanto de tantos tantos me fez nada em mim, no lamento de Fernando Pessoa.


Tudo, menos o tédio

Tudo, menos o tédio, me faz tédio.
Quero, sem ter sosssego, sossegar.
Tomas a vida todos os dias
Como um remédio
Desses remédios que há para tomar.

Tanto aspirei, tanto sonhei, que tanto
De tantos tantos me fez nada em mim.
Minhas mãos ficaram frias
Só de aguentar o encanto
Daquele amor que as aquecesse enfim.

Frias, vazias,
Assim.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, setembro 10, 2011

Um lindo amor está matando Mário de Sá-Carneiro com tão grande ingratidão. E ele só pode se queixar, em versos.


Lindo amor, que me matais, com tão grande ingratidão

Por que razão desdenhais
Deste amor que vos of'reço?
Por que é que me desprezais,
Quando eu, por vós, enlouqueço?...
Lindo amor que me matais!...
Dou-vos, alma e coração,
Por vós, da vida desisto...
Desisto, sim, mas em vão:
Vós pagais-me tudo isto
Com tão grande ingratidão!...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro


sexta-feira, setembro 09, 2011

Onde a morte diz "Quero nascer"? Lá longe, para Murilo Mendes.


Lá longe

Lá longe
Onde a polícia lavra os campos
Lá longe
Onde ninguém cresce nem diminui,
Lá longe
Onde navios de guerra dormem dentro de garrafas.
Lá longe
Onde Oriente e Ocidente
Debruçados à janela dialogam.
Lá longe
Onde cada um
Tem seu pão, sua dama e sua paz,
Lá longe
Onde os descantos antigos movem o rio,
Lá longe
Onde forma, palavra e energia se unem,
Lá longe
Onde Deus caminha com pés de alfombra,
Lá longe
Onde "Quero nascer" a morte diz.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, setembro 08, 2011

No fantástico espaço suassuna, João Cabral de Melo buscou inspiração para louvar o autor de "A pedra do reino". Para que todos saibam que o Sertão não só fala a língua do Não.


A pedra do reino

                                         A Ariano Suassuna


1.

Foi bem saber-se que o Sertão
não só fala a língua do não.

Para o Brasil, ele é o Nordeste
que, quando cada seca desce,

que quando não chove em seu reino,
segue o que algum remoto texto:

descer para a beira do mar
(que não se bebe e pouco dá).

2

Os escritores que do Brejo,
ou que da Mata, tem o sestro

de só dar a vê-lo no pouco,
no quando em que o vê, sertão-osso.

Para o litoral, o esqueleto
é o ser, o estilo sertanejo,

que pode dar uma estrutur
ao discurso que se discursa.

3

Tu, que conviveste o Sertão
quando no sim esquece o não,

e sabes seu viver ambíguo,
vestido de sola e de mitos,

a quem só o vê retirante,
vazio do que nele é cante,

nos deste a ver que nele o homem
não é só o capaz de sede e fome.

4

Sertanejo, nos explicaste
como gente à beira do quase,

que habita caatigas sem mel,
cria os romances de cordel:

o espaço mágico e o feérico,
sem o imediato e o famélico,

fantástico espaço suassuna,
que ensina que o deserto funda.

João Cabral de Melo 
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

quarta-feira, setembro 07, 2011

Rio Vermelho, o rio que Cora Coralina atravessou um dia em busca do seu destino. E da janela da casa velha todo dia, de manhã, ela toma a bênção do rio.



Rio Vermelho

Rio Vermelho das janelas da casa velha da Ponte...
Rio que se afunda debaixo das pontes.
Que se reparte nas pedras.
Que se alarga nos remansos.

Rio, vidraça do céu. Das nuvens e das estrelas.

Rio de águas velhas.
Roladas das enxurradas.

Rio do princípio do mundo.
Rio da contagem das eras.

Rio Vermelho - meu rio.
Rio que atravessei um dia (Altas horas.Mortas horas.)
há cem anos...
Em busca do meu destino.
Da janela da casa velha todo dia, de manhã, tomo a bênção do rio:
- "Rio Vermelho, meu avozinho, dá sua bença pra mim..."

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
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terça-feira, setembro 06, 2011

Trinta dias antes de ser assassinado, Federico Garcia Lorca narrou um episódio a Pablo Neruda que o contou a Paulo Mendes Campos. E ele escreveu um poema sobre o cordeiro branco devorado pelos negros porcos fascistas de Franco.


Balada com porcos negros

Há poetas que escrevem
Seguindo pelo caminho.
Ah, bons caminhos os levem!
Têm a medida do espaço
Do homem, tem o compasso
Do passo do passarinho.

Hay siento en el corazón
Un vago temblor de estrellas!

Por um caminho seguia
Federico, em Catalunha
Ou talvez Andaluzia.
Apagavam-se os círios,
Os delíquios, os delírios
Do céu. Ele achava os lírios,
Rindo à luz que os esparzia.

Pero mi senda se pierde
En el alma de lo niebla

Sabemos pouco demais
De um punhal que leva a gente
Ao aço de outros punhais,
Pouco do rio, do mar,
Das galerias do ar,
Da emboscada de um jaguar,
Dos segredos da serpente.

Qué antorcha iluminará
Los caminos en la Tierra?

Parou ao céu da campanha,
A alma crucificada.
Em pé, no mapa de Espanha.
La Coruña a nooeste.
San Sebastian a nordeste
E Sevilha a sudoeste.
Seu coração em Granada.

Si el azul es un ensueño
Que será de la inocencia?
 
Foi de Granada que veio
Uma briza azul, azul,
Dividindo-o pelo meio.
Teu caminho é o Norte.
Disse a brisa, pois a morte
No Sul traçou-te a sorte.
Rindo-se ele disse: O Sul...

Corazones de los niños!
Almas rudes de las piedras!

Sentiu-se só. Um cordeiro
Que pastava ali doçuras,
Veio ser o companheiro
De Federico, o suave,
A mais doce, a menos grave,
A mais gentil, a mais ave
De todas as criaturas.

Será la paz com nosotros
Como Cristo nos enseña?

A paz ali se assentava.
A morte não era nada.
Um cordeiro sustentava
O galho preso ao carvalho,
A folha presa a seu galho,
Na folha, a gota de orvalho.
E a morte em Granada.

Que será del corazón
Si el Amor no tiene flechas?

Pouco se sabe na terra
Da potestade do inferno
Que, secreta, lhe faz guerra.
Na barranca amanhecida,
Uma ovelha desvalida
Resuia o tempo, a vida
E o frescor novo do eterno.

La nieva cae de las rosas
Pero la del alma queda

Federico da planície
Viu surgir dois porcos pardos,
Negros de sua imundície.
Ai a carne destroçada!
Ai pureza devorada!
Ai cordeiro de Granada!
Ai as garras dos leopardos!

Todas las rosas son blancas
Tan blancas como mi pena

Dentes duros de suínos
Rasgando a lã da inocência!
Ai focinhos assassinos,
Ai misérias de quem ama!
Ai sangue sujo de lama!
Ai terrível epigrama
Da sinistra confidência!

Y si la muerte es la muerte
Que será de los poetas?

Repito a verdade estranha,
A visão crua, desnuda,
Deu-se nas terras de Espanha:
Um cordeiro branco, branco,
Devorado num barranco
Por negros porcos de Franco.

Quem me contou foi Neruda.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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segunda-feira, setembro 05, 2011

Manuel Bandeira disse tudo o que queria sobre o impossível carinho. Será que ela entendeu?


O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, setembro 04, 2011

Nenhuma esperança me dás, nem te dou. Minha alma, minha alma, eis toda a conquista do mais longo amor, na dor maior de Cecília Meireles.


Sem corpo nenhum

Sem corpo nenhum,
como te hei de amar?
— Minha alma, minha alma,
tu mesma escolheste
esse doce mal!

Sem palavra alguma,
como o hei de saber?
— Minha alma, minha alma,
tu mesma desejas
o que não se vê!

Nenhuma esperança
me dás, nem te dou:
— Minha alma, minha alma,
eis toda a conquista
do mais longo amor!

Cecília Meireles 
(1901-1964) 
 
Mais sobre Cecília Meireles em
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sábado, setembro 03, 2011

Para Eugénio de Andrade, há muito elas são velhas. E vestidas de preto até a alma.


Mulheres de preto

Há muito que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

sexta-feira, setembro 02, 2011

Mário de Andrade não queria de Rosa somente o abraço devagar e o beijo molhado. Ele queria possuir até o desgosto dela.


Rondó para você

De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente este beijo
Tão molhado que você me dá...
Eu não queria só porque
Por tudo que você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você

Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você.

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade



quinta-feira, setembro 01, 2011

Ferreira Gullar diz que é o mais feliz dos infelizes. E vai assim pelas ruas da cidade, sorrindo de seus próprios pensamentos.


Soneto só pra mim

Vou assim pelas ruas: meus cabelos
libertos, esvoaçando a quatro ventos.
Não os posso prender e nem quero prendê-los
- que eles são braços de meus pensamentos!

Vou assim pelas ruas da cidade:
- gravata frouxa, alma vagando ao léu...
Tenho a cabeça erguida por vaidade:
esta vaidade de fitar o céu.

E vou sorrindo de meus próprios pensamentos!
(alma e cabelos esvoaçando aos ventos)
Eu sou o mais feliz dos infelizes.

É que, em toda a minha vida,
sempre fui como árvore florida,
que ri do sofrimento das raízes...

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar