quinta-feira, março 31, 2011
Vinicius de Moraes não quer ir para o inferno, quer é ir para o céu. E ainda quer namorar Santa Teresinha...
Poema feito para chegar aos ouvidos de Santa Teresa
Não quero ir pro inferno
Santa Teresinha
Quero é ir pro céu
Que é boa terrinha
Mas se eu for pro céu
Você me procura?
Você me namora,
Santa Teresinha?
Você me namora, hein, santa Teresinha?
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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quarta-feira, março 30, 2011
Para João Cabral, catar feijão se limita com escrever. Jogam-se os grãos na água do alguidar, as palavras na folha de papel e fora o que boiar.
Catar Feijão
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebra dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco....
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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terça-feira, março 29, 2011
A esplêndida lua debruçada sobre a casa do poeta já não destila mágoa nem furor. Para Drummond, essa alvura de morte lembra amor.
A vida passada a limpo
Ó esplêndida lua, debruçada
sobre Joaquim Nabuco, 81.
Tu não banhas a fachada
e o quarto de dormir, prenda comum.
Baixas a um vago em mim, onde nenhum
halo humano ou divino fez pousada,
e me penetras, lâmina de Ogum,
e sou uma lagoa iluminada.
Tudo branco, no tempo. Que lmpeza
nos resíduos e vozes na cor
que era sinistra, e agora, flor surpresa,
já não destila mágoa nem furor:
fruto de aceitação da natureza,
essa alvura de morte lembra amor.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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domingo, março 27, 2011
Não só vinho, mas nele o olvido, deito na taça. Baços os olhos feitos para deixar de ver, na ode de Ricardo Reis.
Não só vinho
Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão a alma,
No impalpável destino
Que não 'spera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal boca
Em frágil taça o passageiro vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, março 26, 2011
Quase o amor, quase o triunfo e a chama, quase o princípio e o fim. Hoje de mim, só resta o desencanto das coisas que bebi mas não vivi, confessa em versos Mário de Sá-Carneiro.
Quase
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh' alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que bebi mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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sexta-feira, março 25, 2011
Murilo Mendes diz que ninguém sabe se a manhã traz promessa de prazer. E que os braços espantam os restos da noite.
A manhã
Ninguém sabe se a manhã
Traz promessa de prazer.
Anônimas sanfoninas
Alternam como sábias.
Transformou-se o vento de ontem,
Agora sopra sereno.
Sai um homem para o trabalho,
Saem dois, saem três, saem mil
Pensando na volta.
Ontem não havia
Aquela roseira em pé,
E a carícia d'agora
Desapareceu no ar.
Os braços espantam
Os restos da noite.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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quinta-feira, março 24, 2011
Thiago de Mello cresceu menino com Deus, mas dele se perdeu. E no chão triste da sua alma, restou uma mágoa que sabe a saudade.
Saudade de Deus
Cresci menino com Deus.
Minha mãe acho que foi
quem Deus pôs dentro de mim.
Dentro de mim, mas não meu.
Não foi um amigo de infância.
Não me deixava à vontade
(nem nos banhos escondidos
na fundura do meu rio).
Não me deixava ser eu,
ser livre: sua presença
- uma lâmina suspensa
constante na minha vida -
me dava um grande temor.
Não me envergonho em dizer
que nunca lhe tive amor.
Por isso (suponho) foi
que um dia acordei sem Deus
(um dia quando os meus olhos
já conheciam o assombro).
Deus se perdeu. Não me achei
sozinho, me vi comigo.
(Talvez por isso eu carregue
esse ar de criança perdida.)
Contudo, dele restou
no chão triste da minha alma,
entre doce e dolorida,
mágoa que sabe a saudade.
Thiago de Mello
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Cresci menino com Deus.
Minha mãe acho que foi
quem Deus pôs dentro de mim.
Dentro de mim, mas não meu.
Não foi um amigo de infância.
Não me deixava à vontade
(nem nos banhos escondidos
na fundura do meu rio).
Não me deixava ser eu,
ser livre: sua presença
- uma lâmina suspensa
constante na minha vida -
me dava um grande temor.
Não me envergonho em dizer
que nunca lhe tive amor.
Por isso (suponho) foi
que um dia acordei sem Deus
(um dia quando os meus olhos
já conheciam o assombro).
Deus se perdeu. Não me achei
sozinho, me vi comigo.
(Talvez por isso eu carregue
esse ar de criança perdida.)
Contudo, dele restou
no chão triste da minha alma,
entre doce e dolorida,
mágoa que sabe a saudade.
Thiago de Mello
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quarta-feira, março 23, 2011
Manuel Bandeira diz que faz versos como quem chora, como quem morre. Porque qualquer forma de amor vale a pena, vale amar.
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
Manuel Bandeira
(1886-1968)http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
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terça-feira, março 22, 2011
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama, a que não se recusa a esse final convite. Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina: "Agora és livre, se ainda recordas", nos versos de Cecília Meireles.
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama
Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
- Agora és livre, se ainda recordas
Cecília Meireles
(1901-1964)
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Cecília Meireles
segunda-feira, março 21, 2011
Você não está mais na idade de sofrer por essas coisas, disseram a Drummond. Inconformado, ele escreveu um poema, um poema sobre essas coisas.
Link para fazer o download do poema em mp3 no canal do Poemblog no Divishare
http://www.divshare.com/download/3038736-26d
Essas coisas
"Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas".
Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?
As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?
Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram lá de fora, e a hora é calma?
E se não estou mais na idade sofrer
é por que estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1988)
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Carlos Drummond de Andrade
domingo, março 20, 2011
Eu, eu cheio de todos os cansaços, quantos o mundo pode dar. A vida que pare de aqui a pouco, mas eu sou eu, eu fico eu, eu, no desespero de Álvaro de Campos.
Eu, eu mesmo
Eu, eu mesmo...
Cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar.
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu.
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu...
Eu fico eu...
Eu...
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1988-1935)
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Alvaro de Campos
sábado, março 19, 2011
Para Mario Quintana, o despertador é um objeto abjeto. Nele mora o Tempo e o Tempo não pode viver sem nós, para não parar.
O tempo
O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem
nós, para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente como
um velho paralítico a tocar a campanhinha atroz.
Nós
é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de
rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho...Mas que raiva dá no Velho quando
encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas a sua
cadeira de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram...
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem
nós, para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente como
um velho paralítico a tocar a campanhinha atroz.
Nós
é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de
rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho...Mas que raiva dá no Velho quando
encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas a sua
cadeira de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram...
Mario Quintana
(1906-1994)
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sexta-feira, março 18, 2011
Para quem foi feito o mundo? Para aquele que o goze, diz Paulo Mendes Campos em sua balada do homem de fora.
Balada do homem de fora
Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.
O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.
No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.
O trato dos outros tem
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.
O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.
Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.
A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.
Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.
Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.
Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.
Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.
Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.
O trem dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.
Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.
Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.
Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.
Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.
Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?
Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".
Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".
Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.
Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.
Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.
Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...
A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.
Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.
O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
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quinta-feira, março 17, 2011
Para Leminski, anos ímpares são anos vítimas, anos sedentos de sangue e vingança. Todo gozo será punido e o deserto será nossa herança.
1987, tende piedade de nós
anos ímpares
são anos vítimas
anos sedentos
de sangue e vingança
todo gozo será punido
e o deserto será nossa herança
anos ímpares
são sarampo ínguas cataporas
bocas que praticam
tacos e cacos de línguas
lixos onde mora a memória
muda a regra, muda o mapa,
muda toda a trajetória
num ano ímpar,
só não muda a nossa história
Paulo Leminski
(1944-1989)
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quarta-feira, março 16, 2011
Nos versos de Drummond, eterno é o amor que une e separa. Para ele, o esquecimento ainda é memória, eterno é o fim.
Permanência
Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
Dia virá em que nenhum será lembrado.
Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.
Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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terça-feira, março 15, 2011
Todos a buscam, mas só alguns a acham, diz Ferreira Gullar em seus versos. Porque a Vida bate.
A vida bate
Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
Ferreira Gullar
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Ferreira Gullar
segunda-feira, março 14, 2011
Para Ricardo Reis, nada fica de nada, nada somos. Para ele, somos contos contando contos, nada.
Nada fica
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Ricardo Reis
sábado, março 12, 2011
Adélia Prado quis com paixão e vestiu como um rito o seu vestido de amante. E de tempo e traça seu vestido a guarda.
O vestido
No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.
Adélia Prado
(1936)
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Adélia Prado
sexta-feira, março 11, 2011
Mario Quintana diz que ouve música como quem apanha chuva. Resignado e triste de saber que existe um mundo do Outro Mundo...
Eu ouço música
Eu ouço música como quem apanha chuva:
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...
Eu ouço música como quem está morto
e sente
já
um profundo desconforto
de me verem ainda neste mundo de cá...
Perdoai,
maestros,
meu estranho ar!
Eu ouço música como um anjo doente
que não pode voar.
Mario Quintana
(1906-1994)
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Mario Quintana
quinta-feira, março 10, 2011
Fernando Pessoa diz que não é cansaço o que sente, mas sim uma quantidade de desilusão. Qualquer coisa como uma angústia por sofrer, por sofrer completamente, por sofrer como... como quê?
Não
Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
Porque oiço, veja
Confesso: é cansaço.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Fernando Pessoa
quarta-feira, março 09, 2011
Era uma vez uma potranca pampa que fazia voar nos cascos a campina. E Mauro Mota sente a dor de ver a filha de Centauro cair morta na pista logo no primeiro páreo.
A potranca
Era uma vez uma potranca branca
e alazã, flor quadrúpede e equina.
Era uma vez uma potranca pampa.
Fazia voar nos cascos a campina.
De mulher tinha o cheiro das axilas
e a cor da vulva no vigor das ancas.
A energia brotava das narinas,
do suor dos pêlos da potranca pampa.
Era uma vez a filha do Centauro,
quase aérea, suspensa pelas crinas,
a nostalgia do primeiro páreo.
Dor de vê-la cair na pista intacta,
morta e atenta à partida sobre os quatro
galopes paralíticos nas patas.
Mauro Mota
(1911-1984)
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Mauro Mota
terça-feira, março 08, 2011
Carlos Pena vive o regresso de quem, estando no mundo, volta ao sertão. Onde os avelozes são verdes intervalos mostrando a qualquer passante que o nada também tem dono.
O regresso de quem, estando no mundo, volta ao sertão
Eis-me agora, rio acima,
construindo o entardecer.
Desta planície azulverde,
cidade de rio e mar,
irei até onde a terra
deixou terras por achar,
nas claras ruínas do sol,
de chão cego aos vegetais
e que de amor tem apenas
as patas dos animais.
Entre canas, pelo rio
claríssimo, aí começo,
sob o sol duro do estio,
meu luminoso regresso.
Árvores gordas se espalham
nesta flora feminina;
chão de açúcar, terra doce
que se arredonda em colinas.
Outrora, aqui, os engenhos
recortavam a campina.
Veio o tempo e os engoliu
e ao tempo engoliu a usina.
Um ou outro ainda há que diga
que o tempo vence no fim:
um dia ele engole a usina
como engole a ti e a mim,
pois foi essa mesma fera
que engole moça e criança,
que fez o barão, gerente,
e a baronesa, lembrança.
E mais fará, noite adentro
na sombra onde a morte aguarda
e põe nos corpos dos homens
doença, faca, espingarda.
Mas, como tudo no mundo
com o tempo a gente se esquece
do tempo e nem vê que é nele
que a gente acorda e adormece...
Daqui eu já vejo o vale
do Capibaribe lento
e, enquanto vejo, descubro
que o verde, ao longe, é cinzento.
Pois, como tudo o que nasce,
a cor também se elabora,
como o minuto que se une
ao outro e organiza a hora,
como esta vasta planície
que foi semeada agora,
a chuva mistura a terra
e explode o verde da flora.
Depois as plantas expulsam
o excesso de cor violenta
e o céu recolhe do espaço
o azul de que se alimenta.
Este céu que cobre o mundo
de arruados sem mistério;
cada qual igreja e sino,
cadeia, alvo cemitério.
Do alto de um morro qualquer,
ou da Serra dos Cavalos,
vejo as cercas de avelozes
que são verdes intervalos
dividindo terras secas
onde só cresce o abandono,
mostrando a qualquer passante
que o nada também tem dono.
O agreste é, às vezes, surpresa:
num pé de serra qualquer,
enxada, casa, fumaça,
menina, homem, mulher.
Um boi que procura a sombra,
água limpa na levada,
menino alegre por ter
sua dor organizada.
E em volta, nas terras secas,
onde só cresce o abandono,
os avelozes indicam
que o nada tem dono.
Bem depois desse lugar
por Arcoverde chamado,
caminho no duro chão
do sertão desidratado.
É fama quando havia
solidãonestas paragens,
um mascote interrompia
aqui, as suas viagens.
Seu cavalo adormecia
sem ter sombra de ramagem
e o mascote, quando a noite
descoloria a paisagem,
ia a uma venda que havia
neste ponto de passagem.
- Minha comadre Maria
dê-me aguardente e coragem
que o tempo é ave bravia
nesta campina selvagem
e o mal, cadela vadia,
passeia solto, na aragem.
Minha comadre Maria,
dê-me agurdente e coragem,
para esperar pelo dia
nesta campina selvagem.
Mas, quem regressa, bem sabe
que o demônio aqui não mora,
que ele não tem pés de cabra
e nunca viu uma espora.
Dele é apenas este sol
que brilha e tudo devora
ou a alma de algum passante
que chegou, vindo de fora.
Como eu, que vivi tão longe,
sempre o renegado, embora,
mas que dormi alta noite
e não vi nascer a aurora.
Que passei anos a fio
sem ver bois, sem ver cavalos,
sem ver nem mesmo avelozes,
esses verdes intervalos
que lá no agreste dividem
a terra despedaçada
mas que um dia hão de crescer
enchendo de verde o nada.
Eis-me agora, sem um rio,
neste duro entardecer.
Nesta planície amarela,
terra sem rio nem mar,
de onde saí mas deixei
e, por isso vim buscar
as claras ruínas do sol
onde não me hei de perder,
embora não tenha um rio
neste duro entardecer.
Carlos Pena Filho
(1929-1960)
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segunda-feira, março 07, 2011
Diz homem, diz criança, diz estrela, e volta a dizer, homem, mulher, criança. Onde a beleza é mais nova, ensina em versos Eugénio de Andrade..
Faz uma chave
Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.
Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.
Diz homem, diz criança, diz estrela,
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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domingo, março 06, 2011
Leminski vai abrir a porta. Ele quer ver se a noite vai bem.
Umas noites que andam fazendo
deixa eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem
quem sabe a lua lua
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém
deixa ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém
Paulo Leminski
(1944-1989)
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sábado, março 05, 2011
Liberdade, sem ti nada mais sei. Assim, Carlos Nejar compreende o mundo e se faz viver
Elegia
Liberdade,
sem ti nada mais sei.
Compreendi o mundo
em ti, sutil
compêndio.
Amei muito antes
de me amares,
entre surtos e sulcos.
Amei
e só a morte
de perder-te
me faz viver
multiplicando
auroras, meses.
E sou tão doido
que o riso inútil
percorri
de me perder, perdendo-te,
perdido em mim.
Carlos Nejar
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sem ti nada mais sei.
Compreendi o mundo
em ti, sutil
compêndio.
Amei muito antes
de me amares,
entre surtos e sulcos.
Amei
e só a morte
de perder-te
me faz viver
multiplicando
auroras, meses.
E sou tão doido
que o riso inútil
percorri
de me perder, perdendo-te,
perdido em mim.
Carlos Nejar
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quinta-feira, março 03, 2011
De Vinicius de Moraes, para a mulher amada. A você, com amor.
A você, com amor
O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...
O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...
E a música inaudível...
O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...
O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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quarta-feira, março 02, 2011
A lua faz silêncio para os pássaros. E Manoel de Barros escuta esse escândalo.
A lua faz silêncio para os pássaros
A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!
Um perfume vermelho me pensou.
(Eu contamino a luz do anoitecer?)
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
............................................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)
De noite bebo água de merenda.
Me mantimento de ventos.
Descomo sem opulências.
Desculpe a delicadeza.
Manoel de Barros
(1916)
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terça-feira, março 01, 2011
Em versos de iniciação, Guimarães Rosa diz que se fores forte, olha bem para cima. Para ver como é sorrindo que morre o teu Pai...
Iniciação
E nem mais existirá, a esperança do trágico...
E no vazio,
em vão apelareis para as grandes catástrofes,
para a vaidade do ranger dos dentes,
para o pavoroso das formas não de todo feitas,
sob o terrível das forças verticais...
Sumirão as espadas suspensas de fios.
sumirá a mão que escreve nas paredes
do festim velho,
e a Esfinge dormirá nas areias eternas...
Somente o segredo, acordado, no caminho claro,
na encruzilhada de todos os caminhos,
andando na tua frente, desvendado,
mais difícil de crer do que de decifrar...
Teu pensamento, tua fé e teu desejo,
criando, à tua escolha, o teu destino...
E se fores forte,
olha bem para cima,
para ver como é sorrindo
que morre o teu Pai...
Guimarães Rosa
(1908-1967)
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