quarta-feira, junho 30, 2010
Este fundo de hotel é um fim de mundo, só falta a morte chegar. Ela me espia mal suspeitando que já morri quando o que eu fui morria, sente Bandeira.
Noturno do Morro do Encanto
Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro, põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.
Ouço o tempo, segundo por segundo,
Urdir a lenta eternidade. Enquanto
Fátima ao pó de estrelas sitibundo
Lança a misericórdia do seu manto.
Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que não tem som nem cor, e eu, miserando,
Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.
Falta a morte chegar... Ela me espia
Nesse instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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terça-feira, junho 29, 2010
Mario Quintana põe-se às vezes a cismar como seria belo o fim do mundo. E chega à conclusão que os sobreviventes ainda entenderão alguns poetas.
Fim do Mundo
Ponho-me às vezes a cismar como seria belo o fim
do mundo,
Antes de Cristo...
Nos campos verdes
Decorativas ossadas
Brancas geometrias.
Na cidade morta
Colunas. O azul, inóvel, sonha
A última asa.
A folha,
Graça infinita,
Se desprende e tomba
No tanque: leve sorriso da água...
Porém, quando este mundo cibernético for para o
Diabo que o o forjicou
E todas as nossas bugigangas eletrônicas virarem
sucata
E todas as estrelas perderem os seus nomes,
Os únicos poetas que os sobreviventes entenderão
São os que hoje ainda falam no cricrilar dos grilos,
no frêmito
Do primeiro
Amor...
Redescobridores encantados da poesia
Esses pobres homens não serão nem ao menos
arqueólogos
E nós descansaremos, finalmente, em paz!
Mario Quintana
(1906-1994)
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segunda-feira, junho 28, 2010
A fuga do real, a morte, a vida? O que Drummond procura?
Vida menor
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início; um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo
eludido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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domingo, junho 27, 2010
Em uma de suas mais belas odes, Ricardo Reis não quer recordar nem conhecer-se. Para ele, melhor vida é a vida que dura sem medir-se.
Não quero
Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, junho 26, 2010
Meu espaço é o pessoal aí, é nossa gente. É o povo, que numa das mãos sustenta a festa e na outra uma bomba de tempo, na medida de Ferreira Gullar.
Minha medida
Meu espaço é o dia
de braços abertos
tocando a fímbria de uma e outra noite
o dia
que gira
colado ao planeta
e que sustenta numa das mãos a aurora
e na outra
um crepúsculo de Buenos Aires
Meu espaço, cara,
é o dia terrestre
quer o conduzam os pássaros do mar
ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil
o dia
medido mais pelo meu pulso
do que
pelo meu relógio de pulso
Meu espaço - desmedido -
é o pessoal aí, é nossa
gente,
de braços abertos tocando a fímbria
de uma e outra fome,
o povo, cara,
que numa das mãos sustenta a festa
e na outra
uma bomba de tempo
Ferreira Gullar
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sexta-feira, junho 25, 2010
Manoel de Barros descobriu aos 13 anos que o que lhe dava prazer nas leituras não era a beleza das frases. Mas a doença delas.
Descobri aos 13 anos
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito
saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.
Manoel de Barros
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quinta-feira, junho 24, 2010
Quando disseste que não mais me amavas, tive pena de ti, de mim, de todos e me ri. Para o poeta, a inexperiência dos deuses ainda não criara o mundo.
Gargalhada
Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...
Guimarães Rosa
(1908-1967)
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quarta-feira, junho 23, 2010
Sou a velha mais bonita de Goiás. Fui velha quando era moça, tenho a idade de meus versos, não conta pra ninguém Cora Coralina.
Não conte pra ninguém
Eu sou a velha
mais bonita de Goiás.
Namoro a lua.
Namoro as estrelas.
Me dou bem
com o Rio Vermelho.
Tenho segredos
como os morros
que não é de advinhá.
Sou do beco do Mingu
sou do larguinho
do Rintintim.
Tenho um amor
que me espera
na rua da Machorra,
outro no Campo da Forca.
Gosto dessa rua
desde o tempo do bioco
e do batuque.
Já andei no Chupa Osso.
Saí lá no Zé Mole.
Procuro enterro de ouro.
Vou subir o Canta Galo
com dez roteiros na mão.
Se você quiser, moço,
vem comigo:
Vamos caçar esse ouro,
vamos fazer água... loucos
no Poço da Carioca,
sair debaixo das pontes,
dar que falar
às bocas de Goiás.
Já bebi água de rio
na concha de minha mão.
Fui velha quando era moça.
Tenho a idade de meus versos.
Acho que assim fica bem.
Sou velha namoradeira,
lancei a rede na lua,
ando catando estrelas.
Cora Coralina
(1889-1985)
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terça-feira, junho 22, 2010
A rainha Ula era casta porque de passarinha era careca. Depois do tratamento do biscate peludo ela já não chora, ficou toda feliz, muito contentinha.
A rainha careca
De cabeleira farta
De rígidas ombreiras
De elegante beca
Ula era casta
Porque de passarinha
Era careca.
À noite alisava
O monte lisinho
Co'a lupa procurava
Um tênue fiozinho
Que há tempos avistara.
Ò céus! Exclamava.
Por que me fizeram
Tão farta de cabelos
Tão careca nos meios?
E chorava.
Um dia...
Passou pelo reino
Um biscate peludo
Vendendo venenos.
(Uma gota aguda
Pode ser remédio
Pra uma passarinha
De rainha.)
Convocado ao palácio
Ula fez com que entrasse
No seu quarto.
Não tema, cavalheiro,
disse-lhe a rainha
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Ó Senhora! O biscate exclamou.
É pra agora!
E arrancou do próprio peito
Os pêlos
E com saliva de ósculos
Colou-os
Concomitantemente penetrando-lhe os meios.
UI! Ui! Ui! gemeu Ula
De felicidade.
Cabeluda ou não
Rainha ou prostituta
Hei de ficar contigo
A vida toda!
Evidente que aos poucos
Despregou-se o tufo todo.
Mas isso o que importa?
Feliz, muito contentinha
A Rainha Ula já não chora.
Moral da estória:
Se o problema é relevante,
apela pro primeiro passante.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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segunda-feira, junho 21, 2010
Em sua canção suspirada, Cecília Meireles pergunta: por que fazer o menor gesto, se nada sei, se nada sofro, se estou perdida em mim?
Canção suspirada
Por que desejar libertar-me,
se é tão bom não ver o teu rosto,
se ando em meu sonho como, num rio,
alguém que é feliz e está morto?
Por que pensar em qualquer coisa,
se tudo está sobre a minha alma:
vento, flores, águas, estrelas,
e músicas de noite e albas?
Nos céus em sombra há fontes mansas
que em silêncio e esquecida bebo.
Flui o destino em minha boca
e a eternidade entre os meus dedos...
Por que fazer o menor gesto,
se nada sei, se nada sofro,
se estou perdida em mim, tão perdida
como o som da voz no teu sopro.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
domingo, junho 20, 2010
Em toda a noite o sono não veio e Fernando Pessoa vê com horror o novo dia, um dia igual aos outros. E se pergunta, que faço eu no mundo?
Em toda a noite
Em toda a noite o sono não veio. Agora
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor -
Uma dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era.
Para quem,
Por tantas vezes ter sem 'sperado em vão,
Já nada 'spera.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, junho 19, 2010
Ouro em pó, ouro cru, ouro cego, tempo é dinheiro. Que mundo este mundo, que tempo este tempo, no pensar poético de Paulo Mendes Campos.
Os relógios
Manhã de Nova Iorque com 30 milhões de relógios.
Óleo vesperal dos pontos hanseáticos.
Jardim pequinês.
Funcionário civil ouviu canto de pássaro pintado.
Que tempo foi em Pequim? Ópio de tempo,
indiferente. Noite.
Relógio.
Mandarim adormecido.
Funcionário civil ouviu pássaro pintado.
Hamburgo,
Hamburgo é um castelo
de água e de vento
com subsolos de mortuária madeira
cheirando a cereja açucarada.
Comovidos na serragem do silêncio
serve-se uma canja dourada
a dois amantes sem fome
divididos pelo mundo. Mundo
de torres subterrâneas,
descampados,
códigos, plataformas cinzentas,
aeroportos glaciais, olhos
celestiais além do cristal,
alto-falantes ordenando
que se beijem,
que se façam,
que se desfaçam,
e boa viagem! Que mundo
este mundo!
Príncipes instáveis o comandam,
metais gelados nos adeuses,
cidades e vidas
amputadas no passo da hélice, que mundo
este mundo! Hamburgo,
senadores com seus mantos de granito.
A tarde sem sol com seus relógios solenes.
Um grito dentro do museu.
Dois caças a jato, escuros
piratas, sobem ao céu da Holanda,
onde outrora voavam as vacas.
Tempo do homem, só,
com uma inútil identidade. Tempo
de olhar as barcaças do do Tâmisa antes
do repouso
no parque desfolhado. Este alento
petrificado nas abadias.
Firenze. Fiesole.
Andrea del Sarto cheirando a noite
no grito da coruja. Fiesole, Firenze,
espaço,
tempo,
muros e minutos
estrurados
numa ansiedade.
Troncos gotejam,
grito de água em lavabo cinzelado,
úmido é o mundo.
Como os úmidos telhados do Mar do Norte.
Luz acesa no Cáucaso, pão e vinho,
e o relógio; que o mundo
este mundo, que tempo
este tempo, que soturnidade
à beira dos rios:
sonâmbulos da ponte de Brooklin,
escumas escuras
do Elba, o Tejo sem reflexo, o Neva
de neve, o Neckar
com jovens eruditos bêbados, o Liffey,
os rins e os relógios
os rios e os relógios,
os restos dos rios e os relógios,
os rastos dos rios e os relógios
os rastos dos restos e os relógios
os restos dos rastos e os relógios
os rastos dos restos e os relógios
o rasto da lesma
sobre a pedra circular
do relógio.
Jardim em Pequim,
telefone gigantesco e mudo em Hamburgo,
tercetos geográficos em Florença,
sempre o homem
com o seu relogio.
Tempo é dinheiro
dinheiro é homem
homem é segredo.
Depois do homem
alguém vende o seu relógio.
Depois do amor
fica no ar o relógio.
Depois das flores removidas
o relógio do morto.
O relógio do morto.
Só depois que acaba o tempo
o ouro do sol e os anéis de Saturno
começam a roer os restos do relógio.
Entre o gordo
e o magro
a moeda de ouro
Todos os abortos
físicos e
cívicos
feitos por dinheiro
Entre o milionário
proletário
e o proletário
milionário
o paradoxo
monetário.
Tempo é dinheiro
relógios lineares
portais esgalgos do minuto gótico
colunata barroca para um beijo à tardinha
sagas de Harlem onde os mortos perseguem luas conversíveis
trópico de Câncer
nibelungos máabaratas trenodias
elzevires incunábulos portulanos
baldrocas oratórias, especulações fálicas, açougues suaves,
banqueiros de fulva juba, monopólios da infância, endossos
sexuais, numismáticos aduncos, filhos de cachorras e notários,
apólices dúbias, prostituições em exercício, fogueiras contra-
tuais, dobrões litúrgicos, porcentagem sobre lastros éticos,
chinas traídas, fregueses de arábias, leiloeiros de áfricas, tratos
de areia, ataúdes hipotecados, traficantes eletrônicos, títulos
letais, marchantes carismáticos, corretores de repúblicas sul-
americanas, agiotas atômicos, corsários aeronáuticos, provedores
de angélicas, esposas sonantes.
OURO EM PÓ
OURO CRU
OURO CEGO
TEMPO É DINHEIRO
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
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sexta-feira, junho 18, 2010
Thiago de Mello não se indaga, muito menos se responde, sobre a vida depois da vida. No mundo dos homens, ele quer a alegria do amor em seu coração.
Sagrada alegria
Não me indago, muito menos
me respondo, sobre a vida
(se existe) depois da vida.
Não invejo (me comove)
a fé que funda a serena
certeza da eternidade.
Do que suceda no reino
que se inaugura na morte,
não me concerne. No mundo
dos homens, meu lindo chão,
quero ser capaz de amar,
mas não sonho galardão
que não seja o da alegria
do amor no meu coração.
Thiago de Mello
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quinta-feira, junho 17, 2010
Lá de longe o coração de Leminski faz sinal que quer voltar. Ele traz em bronze no peito: Não tem vaga neste lugar.
Além alma
(Uma grama depois)
Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
Não tem vaga neste lugar.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
eu estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?
Paulo Leminski
(1944-1989)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
quarta-feira, junho 16, 2010
Quem se sente poeta pelo que o não é? Dentre as questões levantadas por Murilo Mendes, por que será que esta recebeu um especial destaque?
Quem
Quem um dia dançou os pés de outro?
Todos os que dançam, todos
Apenas dançam os próprios pés.
Quem pensa na imortalidade do outro
E durante seu próprio sonho
Sonha com o sonho do outro?
Quem, no nascimento do menino humilde,
Pede sua coroação pelos reis?
Quem manda violetas ao pobre encarcerado?
Quem se sente poeta pelo que o não é?
Murilo Mendes
(1901-1975)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
terça-feira, junho 15, 2010
Em seu improviso do rapaz morto, Mário de Andrade diz que o corpo é um gesto que parou no meio do caminho. Um gesto que a gente esqueceu.
Improviso do rapaz morto
Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão.
Tem momentos assim em que a gente vivendo
Esta invenção de interesses e de lutas tão bravas,
Se cansa de colher desejos e preocupações.
Então pára um instante, larga o murmúrio do corpo,
A cabeça pendida cessa de imaginar,
E o esquecimento suavemente vem.
Quem que então goze as rosas que o circundam?
A vista bonita que o automóvel corta?
O pensamento que o heroíza?...
O corpo é que nem véu largado sobre um móvel,
Um gesto que parou no meio do caminho,
Gesto que a gente esqueceu.
Morto, suavemente ele se esquece sobre as flores do caixão.
Não parece que dorme, nem digo que sonhe feliz, está morto.
Num momento da vida o espírito se esqueceu e parou.
De repente ele assustou com a bulha do choro em redor,
Sentiu talvez um desaponto muito grande
De ter largado a vida sendo forte e sendo moço.
Teve despeito e não se moveu mais.
E agora ele não se moverá mais.
Vai-te embora!, vai-te embora, rapaz morto!
Oh, vai-te embora que não te conheço mais!
Não volta de-noite circular no meu destino
A luz da tua presença e o teu desejo de pensar!
Não volta oferecer-me a tua esperança corajosa,
Nem me pedir para os teus sonhos a conformação da Terra!
O universo muge de dor aos clarões dos incêndios.
As inquietudes cruzam-se no ar alarmadas,
E é enorme, insuportável minha paz!
Minhas lágrimas caem sobre ti e és como um Sol quebrado!
Que liberdade em teu esquecimento!
Que independência firme na tua morte!
Óh, vai-te embora que não te conheço mais!
Mário de Andrade
(1893-1945)
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segunda-feira, junho 14, 2010
A única afirmação é ser. E ser o oposto é o que não queria de mim, nas verdades de Alberto Caeiro.
Estas verdades
Estas verdades não são perfeitas porque são ditas.
E antes de ditas pensadas.
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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domingo, junho 13, 2010
Tanto a dizer de ti, América, mas Drummond sente que é possível distribuir a solidão, torná-la meio de conhecimento. E que solidão é palavra de amor.
América
Sou apenas um homem.
Um homem pequeno à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América?
É muito difícil.
Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto, e não sabe contar!
A boca também não sabe.
Os olhos sabem - e calam-se.
Ai, América, só suspirando.
Suspiro brando, que pelos ares vai se exalando.
Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não me acompanham.
Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples tempo
dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios do interior,
por trás de cordilheiras ou dentro do mar.
Eles me ajudariam, América, neste momento
de tímida conversa de amor.
Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!
Sou tão pequeno (sou apenas um homem)
e verdadeiramente só conheço minha terra natal,
dois ou três bois, o caminho da roça,
alguns versos que li há tempos, alguns rostos que comtemplei.
Nada conto do ar e da água, do mineral e da folha,
ignoro profundamente a natureza humana
e acho que não devia falar nessas coisas.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.
Passa também uma escola - o mapa -, o mundo de todas as cores.
Sei que há países roxos, ilhas brancas, promontórios azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da infância.
América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, não era fácil voltar.
O navio estava na sala.
Como rodava!
As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.
Seus passos urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado por todos, como sorrir, pedir que sejam felizes?
Sou apenas uma rua
numa cidadezinha de Minas
humilde caminho da América.
Ainda bem que a noite baixou: é mais simples conversar à noite.
Muitas palavras já nem precisam ser ditas.
Há o indistinto mover de lábios no galpão, há sobretudo silêncio,
certo cheiro de erva, menos dureza nas coisas,
violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.
Canto uma canção,
de viola ou banjo,
dentes cerrados,
alma entreaberta,
decanta a memória,
do tempo mais fundo
quando não havia
nem casa nem rês
e tudo era rio,
era cobra e onça,
não havia lanterna
e nem diamante,
não havia nada.
Só o primeiro cão,
em frente do homem
cheirando o futuro.
Os dois se reparam,
se julgam, se pesam,
e o carinho mudo
corta a solidão.
Canta uma canção
no ermo continente,
baixo, não te exaltes.
Olha ao pé do fogo
homens agachados
esperando comida.
Como a barba cresce,
como as mãos são duras,
negras de cansaço.
Canta a estela maia,
reza ao deus do milho,
mergulha no sonho
anterior às artes,
quando a forma hesita
em consubstanciar-se
Canta os elementos
em busca de forma.
Entretanto a vida
elege semblante.
Olha: uma cidade.
Quem a viu nascer?
O sono dos homens
após tanto esforço
tem frio de morte.
Não vás acordá-los,
se é que estão dormindo.
Tantas cidades no mapa...Nenhuma, porém, tem mil anos.
E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.
Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?
Nunca se sabe, as cidades crescem,
mergulham no campo, tornam a aparecer.
O ouro as forma e dissolve, restam navetas de ouro.
Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados
(que vão esmagar a última revolução)
o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes;
a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas...
Esses pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.
A criação espantada
não sabe juntá-los.
Contaram-me que também há desertos,
E plantas tristes, animais confusos, ainda não completamente determinados.
Certos homens vão de país em país procurando um metal raro
ou distribuindo palavras.
Certas mulheres são tão desesperadamente formosas que é impossível
não comer-lhe os retratos e não proclamá-las demônios.
Há vozes no rádio e no interior das árvores,
cabogramas, vitrolas e tiros.
Que barulho na noite,
que solidão!
Esta solidão da América... Ermo e cidade grande se espreitando.
Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,
e o barranqueiro do Rio São Francisco
- esse homem silencioso, na última luz da tarde,
junto à cabeça majestosa do cavalo de proa imobilizado
contempla num pedaço de jornal a iara vulcânica da Broadway.
O sentimento da mata e da ilha
perdura em meus filhos que não amanheceram de todo
e têm medo da noite, do espaço e da morte.
Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.
Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,
procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica um homem (que não conhecemos) morreu.
Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o presentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco,
percorrem teus caminhos, América.
Estes homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
retratos
sábado, junho 12, 2010
Diga para mim: de nós dois quem ama e quem é amado? Na pergunta de Florbela, a resposta para muitos namorados.
Li um dia
Li um dia, não sei onde,
Que em todos os namorados
Uns amam muito, e os outros
Contentam-se em ser amados.
Fico a cismar pensativa
Neste mistério encantado...
Digo pra mim: de nós dois
Quem ama e quem é amado?
Florbela Espanca
(1894-1930)
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sexta-feira, junho 11, 2010
João Cabral de Melo pensa o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada. É quando o poema inquieta o papel e a sala.
Poema de desintoxicação
Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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quinta-feira, junho 10, 2010
Quantos são os poetas, nem Vinicius sabe: um, três, talvez cinco, talvez nada. Ele só sabe que são muitos, que são belos mas são trágicos.
I
Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro; cinco, talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos – o desespero da dízima infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.
Viemos de longe... Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido como espectros
Da boca ardente dos vulcões ou da orbita cega dos lagos desaparecidos
Quem sabe tenhamos germinado misteriosamente do sono cauterizado das batalhas
Ou do ventre das baleias quem sabe tenhamos surgido?
Viemos de longe – trazemos em nós o orgulho do anjo rebelado
Do que criou e fez nascer o fogo da ilimitada e altíssima misericórdia
Trazemos em nós o orgulho de sermos úlceras no eterno corpo de Jó
E não púrpura e ouro no corpo efêmero de Faraó.
Nascemos da fonte e viemos puros porque herdeiros do sangue
E também disformes porque – ai dos escravos! não há beleza nas origens
Voávamos – Deus dera a asa do bem e a asa do mal às nossas formas impalpáveis
Recolhendo a alma das coisas para o castigo e para a perfeição na vida eterna.
Nascemos da fonte e dentro das eras vagamos como sementes invisíveis o coração dos mundos e dos homens
Deixando atrás de nós o espaço como a memória latente da nossa vida anterior
Porque o espaço é o tempo morto – e o espaço é a memória do poeta
Como o tempo vivo é a memória do homem sobre a terra.
Foi muito antes dos pássaros – apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem
Mas de onde viéramos nós e por que privilégio recebido?
E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade ínperecível
Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
Assistimos ao mistério da revelação dosTrópicos e dos Signos
Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo se fecundando à cálida centelha.
Vivemos o inconsciente das idades nos braços palpitantes dos ciclones
E as germinações da carne no dorso descarnado dos luares
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
E a espantosa encantação dos eclipses e das esfinges.
Descemos longamente o espelho contemplativo das águas dos rios do Éden
E vimos, entre os animais, o homem possuir doidamente a fêmea sobre a relva
Seguimos… E quando o decurião feriu o peito de Deus crucificado
Como borboletas de sangue brotamos da carne aberta e para o amor celestial voamos.
Quantos somos, não sei... somos um, talvez dois, três, talvez quatro; cinco, talvez, nada
Talvez a multiplicação de cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei… Somos a constelação perdida que caminha largando estrelas
Somos a estrela perdida que caminha desfeita em luz.
II
E uma vez, quando ajoelhados assistíamos à dança nua das auroras
Surgiu do céu parado como uma visão de alta serenidade
Uma branca mulher de cujo sexo a luz jorrava em ondas
E de cujos seios corria um doce leite ignorado.
Oh, como ela era bela! era impura – mas como ela era bela!
Era como um canto ou como uma flor brotando ou como um cisne
Tinha um sorriso de praia em madrugada e um olhar evanescente
E uma cabeleira de luz como uma cachoeira em plenilúnio.
Vinha dela uma fala de amor irresistível
Um chamado como uma canção noturna na distância
Um calor de corpo dormindo e um abandono de onda descendo
Uma sedução de vela fugindo ou de garça voando.
E a ela fomos e a ela nos misturamos e a tivemos...
Em véus de neblina fugiam as auroras nos braços do vento
Mas que nos importava se também ela nos carregava nos seus braços
E se o seu leite sobre nós escorria e pelo céu?
Ela nos acolheu, estranhos parasitas, pelo seu corpo desnudado
E nós a amamos e defendemos e nós no ventre a fecundamos
Dormíamos sobre os seus seios apoiados ao clarão das tormentas
E desejávamos ser astros para inda melhor compreendê-la.
Uma noite o horrível sonho desceu sobre as nossas almas sossegadas
A amada ia ficando gelada e silenciosa – luzes morriam nos seus olhos...
Do seu peito corria o leite frio e ao nosso amor desacordada
Subiu mais alto e mais além, morta dentro do espaço.
Muito tempo choramos e as nossas lágrimas inundaram a terra
Mas morre toda a dor ante a visão dolorosa da beleza
Ao vulto da manhã sonhamos a paz e a desejamos
Sonhamos a grande viagem através da serenidade das crateras.
Mas quando as nossas asas vibraram no ar dormente
Sentimos a prisão nebulosa de leite envolvendo as nossas espécies
A Via Láctea – o rio da paixão correndo sobre a pureza das estrelas
A linfa dos peitos da amada que um dia morreu.
Maldito o que bebeu o leite dos seios da virgem que não era mãe mas era amante
Maldito o que se banhou na luz que não era pura mas ardente
Maldito o que se demorou na contemplação do sexo que não era calmo mas amargo
O que beijou os lábios que eram como a ferida dando sangue!
E nós ali ficamos, batendo as asas libertas, escravos do misterioso plasma
Metade anjo, metade demônio, cheios de euforia do vento e da doçura do cárcere remoto
Debruçados sobre a terra, mostrando a maravilhosa essência da nossa vida
Lírios, já agora turvos lírios das campas, nascidos da face lívida da morte.
III
Mas vai que havia por esse tempo nas tribos da terra
Estranhas mulheres de olhos parados e longas vestes nazarena
Que tinham o plácido amor nos gestos tristes e sereno
E o divino desejo nos frios lábios anelantes.
E quando as noites estelares fremiam nos campos sem lua
E a Via Láctea como uma visão de lágrimas surgia
Elas beijavam de leve a face do homem dormindo no feno
E saíam dos casebres ocultos, pelas estradas murmurantes.
E no momento em que a planície escura beijava os dois longínquos horizontes
E o céu se derramava iluminadamente sobre a várzea
Iam as mulheres e se deitavam no chão paralisadas
As brancas túnicas abertas e o branco ventre desnudado.
E pela noite adentro elas ficavam, descobertas
O amante olhar boiando sobre a grande plantação de estrelas
No desejo sem fim dos pequenos seres de luz alcandorados
Que palpitavam na distância numa promessa de beleza.
E tão eternamente os desejavam e tão na alma os possuíam
Que às vezes desgravitados uns despenhavam-se no espaço
E vertiginosamente caíam numa chuva de fogo e de fulgores
Pelo misterioso tropismo subitamente carregados.
Nesse instante, ao delíquio de amor das destinadas
Num milagre de unção, delas se projetava à altura
Como um cogumelo gigantesco um grande útero fremente
Que ao céu colhia a estrela e ao ventre retornava.
E assim pelo ciclo negro da pálida esfera através do tempo
Ao clarão imortal dos pássaros de fogo cruzando o céu noturno
As mulheres, aos gritos agudos da carne rompida de dentro
Iam se fecundando ao amor puríssimo do espaço.
E às cores da manhã elas voltavam vagarosas
Pelas estradas frescas, através dos vastos bosques de pinheiros
E ao chegar, no feno onde o homem sereno inda dormia
Em preces rituais e cantos místicos velavam.
Um dia mordiam-lhes o ventre, nas entranhas – entre raios de sol vinha tormenta…
Sofriam... e ao estridor dos elementos confundidos
Deitavam à terra o fruto maldito de cuja face transtornada
As primeiras e mais tristes lágrimas desciam.
Tinha nascido o poeta. Sua face é bela, seu coração é trágico
Seu destino é atroz; ao triste materno beijo mudo e ausente
Ele parte! Busca ainda as viagens eternas da origem
Sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência.
Vinicius de Moraes
(1913 - 1980)
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Manuel Bandeira vai para casa como o marinheiro volta para o seu navio. Triste e lúcido.
Marinheiro triste
Marinheiro triste
Que voltas para bordo
Que pensamentos são
Esses que te ocupam?
Alguma mulher
Amante de passagem
Que deixaste longe
Num porto de escala?
Ou tua amargura
Tem outras raízes
Largas fraternais
Mais nobres mais fundas?
Marinheiro triste
De um país distante
Passaste por mim
Tão alheio a tudo
Que nem pressentiste
Marinheiro triste
A onda viril
De fraterno afeto
Em que te envolvi.
Ias triste e lúcido
Antes melhor fora
Que voltasses bêbedo
Marinheiro triste!
E eu que para casa
Vou como tu vais
Para o teu navio,
Feroz casco sujo
Amarrado ao cais,
Também como tu
Marinheiro triste
Vou lúcido e triste.
Amanhã terás
Depois que partires
O vento do largo
O horizonte imenso
O sal do mar alto!
Mas eu, marinheiro?
- Antes melhor fora
Que voltasse bêbedo.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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terça-feira, junho 08, 2010
Se exigirem documentos do Outro Lado, Mario Quintana só tem folhas soltas de um álbum para mostrar. Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida.
Vida
Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.
Ah! se exigirem os documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas de um álbum de imagens:
aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida...
Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!...
Mario Quintana
(1906-1994)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
segunda-feira, junho 07, 2010
De dentro de seu corpo, Ferreira Gullar está vendo o universo noturno. Ele vê a noite que houve e não existe mais.
Vendo a noite
Júpiter, Saturno.
De dentro de meu corpo
estou vendo
o universo noturno.
Velhas explosões de gás
que meu corpo não ouve:
vejo a noite que houve
e não existe mais -
a mesma, veloz, em Tróia.
no rosto de Heitor
- hoje na pele de meu rosto
no Arpoador.
Ferreira Gullar
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
Eu estou assim, que é que eu vou fazer? Tem pena, uma pena bem doída de mim, pede Abgar Renaut a Deus.
Balada quase metafísica
Eu estou assim
absolutamente irremediável
por dentro e por fora, acordado ou dormindo
na Duração, no Tempo e no Espaço.
Eu sou assim:
sem cômodo comigo, sem pouso, sem arranjo aqui dentro.
Quero sair, fugir para muito longe de mim.
Todas as portas e janelas estão irrevogavelmente trancadas
na Duração, no Tempo e no Espaço.
Que é que eu vou fazer?
Não fica bem, assim sem mais nem menos, falecer.
Queria rezar, mas eu sou isto, meu Deus!,
e de minha reza, se reza fosse,
não ouvirias uma só palavra.
Tem pena, uma pena bem doída de mim,
meu Deus, e ouve para sempre esta oração,
e ampara isto que sou eu
na Duração, no Tempo e no Espaço.
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault
domingo, junho 06, 2010
Nos desejos de Fernando Pessoa existe longinquamente um país. Um país onde ser feliz consiste apenas em ser feliz, às vezes.
Às vezes
Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.
Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber,
Nessa ilusão de viver
O tempo morre renasce
Sem que o sintamos correr.
O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.
Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
sábado, junho 05, 2010
Na tragédia da República de Weimar, Brecht já ensinava que o desemprego é para o povo um enfraquecimento. E que daria origem ao horror do nazismo.
Esse desemprego!
Meus senhores, é mesmo um problema
Esse desemprego!
Com satisfação acolhemos
Toda oportunidade
De discutir a questão.
Quando queiram os senhores! A todo momento!
Pois o desemprego é para o povo
Um enfraquecimento.
Para nós é inexplicável
Tanto desemprego.
Algo realmente lamentável.
Que só traz desassossego.
Mas não se deve na verdade
Dizer que é inexplicável
Pois pode ser fatal
Dificilmente nos pode trazer
A confiança das massas
Para nós imprescindível.
É preciso que nos deixem valer
Pois seria mais que temível
Permitir ao caos vencer
Num tempo tão pouco esclarecido
Algo assim não se pode conceber
Com esse desemprego!
Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht
sexta-feira, junho 04, 2010
Fazedor da minha vida, não me deixes! Que eu sou gota de mercúrio, dividida, desmanchada pelo chão, no murmúrio de Cecília Meireles.
Canção quase inquieta
De um lado, a eterna estrela,
e do outro a vaga incerta,
meu pé dançando pela
extremidade da espuma,
e meu cabelo por uma
planície de luz deserta.
Sempre assim:
de um lado, estandartes do vento...
- do outro, sepulcros fechados.
E eu me partindo, dentro de mim,
para estar no mesmo momento
de ambos os lados.
Se existe a tua Figura,
se és o Sentido do Mundo,
deixo-me, fujo por ti,
nunca mais quero ser minha!
(Mas, neste espelho, no fundo
desta fria luz marinha,
como dois baços peixes,
nadam meus olhos à minha procura...
Ando contigo - e sozinha.
Vivo longe - e acham-me aqui...)
Fazedor da minha vida,
não me deixes!
Entende a minha canção!
Tem pena do meu murmúrio,
reúne-me em tua mão!
Que eu sou gota de mercúrio,
dividida,
desmanchada pelo chão...
Cecília Meireles
(1901-1964)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
Pequeno tinha um pensamento. Em algum lugar na selva corre grande um pensamento, na poesia sem medida de Alice Ruiz.
Pequeno
pequeno
tinha um pensamento
a selva
quando crescer
em algum lugar
na selva
corre grande
um pensamento
Alice Ruiz
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz
quinta-feira, junho 03, 2010
Lá anda a minha Dor às cambalhotas, o Erro sempre a rir-me em destrambelho. Chora em mim um palhaço às piruetas, no sentimento de Sá-Carneiro.
Pied-de-nez
Lá anda a minha Dor às cambalhotas
No salão de vermelho atapetado -
Meu cetim de ternura engordurado,
Rendas da minha ânsia todas rotas...
O Erro sempre a rir-me em destrambelho -
Falso mistério, que não se abrange...
De antigo armário que agoirento reage,
Minh'alma actual o esverdinhado espelho...
Chora em mim um palhaço às piruetas;
O meu castelo em Espanha, ei-lo vendido -
E, entretanto, foram de violetas,
Deram-me beijos sem os ter pedido...
Mas como sempre, ao fim - bandeiras pretas,
Tômbolas falsas, carroussel partido...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro
Início de arte, excesso de morte? Mudo evaporar-se de silêncios altos: eis a eternidade para Carlos Nejar.
Flagrante
Eia a eternidade.
Tudo se bifurca
nestas amplas margens
de águas insaciáveis
onde trilham remos.
É menear de ombros?
É alvor de coisas
nunca regressadas?
Rumores de lebre
por entre ruínas:
eis a eternidade.
Nada ali se trunca,
invisível bússola,
aluvião de sendas,
corda absoluta.
O que nela esmaga
é um jorrar de nuncas.
Eia a eternidade.
Busco a outra face
de alguém que não toco
e jamais percebo:
eis a eternidade.
Um puro acabar-se
de rotas palavras.
Início de arte?
Excesso de morte?
Mudo evaporar-se
de silêncios altos.
Eia a eternidade.
Carlos Nejar
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar
quarta-feira, junho 02, 2010
Todo bairro tem um louco que o bairro trata bem. O de Leminski tem dois.
Dois loucos no bairro
um passa os dias
chutando postes para ver se acendem
o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco
todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
Paulo Leminski
(1944-1989)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
A casa que eu amei foi destroçada. A vida sussurrada quebrou-se, não é minha, no momento triste de Sophia de Mello Breyner.
A casa
A casa que eu amei foi destroçada
A morte caminha no sossego do jardim
A vida sussurrada na folhagem
Subitamente quebrou-se não é minha
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
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terça-feira, junho 01, 2010
Nos versos de Affonso Romano de Sant'Anna, um corpo é mais que tudo. O corpo é onde, e a vida é quando.
Definição
1
Um corpo não é um fruto,
embora em tudo se assemelhem:
densa forma,
oculto gosto,
cinco letras
e um pressuposto
poder de vida.
Um corpo é mais que um fruto
que se plante,
que se colha
ou se degluta:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é luta.
Um corpo não é um potro,
embora assim se manifeste:
pêlos mansos,
membros ágeis,
sal na boca
e um desejo
verde pelos campos.
Um corpo é mais que um potro
que pelos prados
e currais se dome:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é fome.
Nem chama
que se anule,
nem espada
em duplo gume
ou máquina
de estrume.
Um corpo
é mais que tudo:
mais que a chave,
mais que a forma,
mais que o leme,
mais que o açude.
Um corpo
é mais que tudo:
é a própria imagem
que eu não pude.
2
O corpo é onde
é carne:
O corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.
O corpo é onde
é chama:
O corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.
O corpo é onde
é luta:
O corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.
O corpo é onde
é cal:
O corpo é onde
é cal:
O corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.
O corpo
é onde
e a vida
é quando.
Affonso Romano de Sant'Anna
Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna
Foi para ti que criei as rosas e que pus no céu a lua. Foi para ti que deitei no chão um corpo aberto como os animais, no amor de Eugénio de Andrade.
Foi para ti que criei as rosas
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade