sábado, junho 19, 2010

Ouro em pó, ouro cru, ouro cego, tempo é dinheiro. Que mundo este mundo, que tempo este tempo, no pensar poético de Paulo Mendes Campos.


Os relógios


Manhã de Nova Iorque com 30 milhões de relógios.
Óleo vesperal dos pontos hanseáticos.
Jardim pequinês.
Funcionário civil ouviu canto de pássaro pintado.
Que tempo foi em Pequim? Ópio de tempo,
indiferente. Noite.
Relógio.
Mandarim adormecido.
Funcionário civil ouviu pássaro pintado.
Hamburgo,
Hamburgo é um castelo
de água e de vento
com subsolos de mortuária madeira
cheirando a cereja açucarada.
Comovidos na serragem do silêncio
serve-se uma canja dourada
a dois amantes sem fome
divididos pelo mundo. Mundo
de torres subterrâneas,
descampados,
códigos, plataformas cinzentas,
aeroportos glaciais, olhos
celestiais além do cristal,
alto-falantes ordenando
que se beijem,
que se façam,
que se desfaçam,
e boa viagem! Que mundo
este mundo!
Príncipes instáveis o comandam,
metais gelados nos adeuses,
cidades e vidas
amputadas no passo da hélice, que mundo
este mundo! Hamburgo,
senadores com seus mantos de granito.
A tarde sem sol com seus relógios solenes.
Um grito dentro do museu.

Dois caças a jato, escuros
piratas, sobem ao céu da Holanda,
onde outrora voavam as vacas.
Tempo do homem, só,
com uma inútil identidade. Tempo
de olhar as barcaças do do Tâmisa antes
do repouso
no parque desfolhado. Este alento
petrificado nas abadias.
Firenze. Fiesole.
Andrea del Sarto cheirando a noite
no grito da coruja. Fiesole, Firenze,
espaço,
tempo,
muros e minutos
estrurados
numa ansiedade.

Troncos gotejam,
grito de água em lavabo cinzelado,
úmido é o mundo.
Como os úmidos telhados do Mar do Norte.
Luz acesa no Cáucaso, pão e vinho,
e o relógio; que o mundo
este mundo, que tempo
este tempo, que soturnidade
à beira dos rios:
sonâmbulos da ponte de Brooklin,
escumas escuras
do Elba, o Tejo sem reflexo, o Neva
de neve, o Neckar
com jovens eruditos bêbados, o Liffey,
os rins e os relógios
os rios e os relógios,
os restos dos rios e os relógios,
os rastos dos rios e os relógios
os rastos dos restos e os relógios
os restos dos rastos e os relógios
os rastos dos restos e os relógios
o rasto da lesma
sobre a pedra circular
do relógio.

Jardim em Pequim,
telefone gigantesco e mudo em Hamburgo,
tercetos geográficos em Florença,
sempre o homem
com o seu relogio.
Tempo é dinheiro
dinheiro é homem
homem é segredo.
Depois do homem
alguém vende o seu relógio.
Depois do amor
fica no ar o relógio.
Depois das flores removidas
o relógio do morto.
O relógio do morto.
Só depois que acaba o tempo
o ouro do sol e os anéis de Saturno
começam a roer os restos do relógio.

Entre o gordo
e o magro
a moeda de ouro

Todos os abortos
físicos e
cívicos
feitos por dinheiro

Entre o milionário
proletário
e o proletário
milionário
o paradoxo
monetário.

Tempo é dinheiro
relógios lineares
portais esgalgos do minuto gótico
colunata barroca para um beijo à tardinha
sagas de Harlem onde os mortos perseguem luas conversíveis
trópico de Câncer
nibelungos máabaratas trenodias
elzevires incunábulos portulanos
baldrocas oratórias, especulações fálicas, açougues suaves,
banqueiros de fulva juba, monopólios da infância, endossos
sexuais, numismáticos aduncos, filhos de cachorras e notários,
apólices dúbias, prostituições em exercício, fogueiras contra-
tuais, dobrões litúrgicos, porcentagem sobre lastros éticos,
chinas traídas, fregueses de arábias, leiloeiros de áfricas, tratos
de areia, ataúdes hipotecados, traficantes eletrônicos, títulos
letais, marchantes carismáticos, corretores de repúblicas sul-
americanas, agiotas atômicos, corsários aeronáuticos, provedores
de angélicas, esposas sonantes.

OURO EM PÓ
OURO CRU
OURO CEGO
TEMPO É DINHEIRO

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

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