segunda-feira, maio 24, 2010

Aquele sábado passado deixou profundas marcas em Cesário Verde. Apesar do vigoroso e formidável beijo, ele sente que acabou o grande amor.


Noite fechada

Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado templo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dumas minas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho

O quadro interior, dum que à candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciais de pechisbeque,

E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu sonoro
Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E, ao passo que eu te ouvia abstratamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei, já que não amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé, pensando nisto.

E tu que não serás somente minha,
As carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
À gaiola do teu terceiro andar!

Cesário Verde
(1855-1886)

Mais sobre Cesário Verde em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

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