sexta-feira, dezembro 31, 2010

Vai, ano velho, vai de vez, leva tudo. Vem Ano Novo, vem veloz, agora é recomeçar, a utopia é urgente, na esperança de Affonso Romano de Sant' Anna.




Vai, ano velho


Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

Affonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Guimarães Rosa vai abrir sua janela sobre a noite. Para soçobrar no mar onde vêm morrer as almas afogadas e onde os deuses se olham como num espelho.



Lunático

Vou abrir minha janela sobre à noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco, terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos....
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o meu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando...
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto...
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua...
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

segunda-feira, dezembro 27, 2010

Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é, Leminski sabe muito bem o que acontece. Se incenso fosse música...



Incenso fosse música

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Paulo Leminsky
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

sexta-feira, dezembro 24, 2010

Vinicius de Moraes, em "Poema de Natal", por ele mesmo. Para lembrar e ser lembrados.


Link para download deste vídeo no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=tk1tZyvvXIk


Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes  
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes


quarta-feira, dezembro 22, 2010

Para Mario Quintana, a vida é triste, o mundo é louco. Mas nem vale a pena matar-se por isso, nem por ninguém.



Nunca

Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar...
Por isso o meu verso tem
esse quase imperceptível tremor...
A vida é triste, o mundo é louco!
Nem vale a pena matar-se por isso.
Nem por ninguém.
Por nenhum amor...
A vida continua, indiferente.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana


segunda-feira, dezembro 20, 2010

Em um madrigal muito fácil, Manuel Bandeira declara toda a sua paixão. E confessa que tudo o que quer é ver o seu amor mais de perto ainda.



Madrigal muito fácil

Quando de longe te vi,
Quando de longe te via,
Gostei logo bem de ti.
Como é bonita! eu dizia.

Mas por enganar aquilo
Que dentro de mim senti,
Que dentro de mim sentia,
Pensei de mim para mim
Que a distância é que fazia
Me pareceres assim.

Não era a distância não!
Pois chegou aquele dia
Em que te apertei a mão
Sem saber o que dizia.
E vi que eras mais bonita
Do que para o meu sossego
A distância te fazia.

Quanto mais de perto, mais
Bonita, era o que eu dizia!
E desde então imagino
Que mais linda te acharia,
Mais fresca, mais desejável
Mais tudo enfim, se algum dia
- Dia ou noite que marcasses -
Se algum dia me deixasses
Te ver de mais perto ainda!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, dezembro 19, 2010

A formação de uma quadrilha do amor, segundo Carlos Drummond de Andrade. Todos se acabaram, coitado do infeliz J.Pinto Fernandes.



Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade
(1901-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo, suplicava ela num frenesi. E Olavo Bilac, ainda que pedindo perdão aos moralistas, docemente obedecia...



Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!
Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.
Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.
No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci....

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em

quinta-feira, dezembro 16, 2010

E não digo mais nada, que mais há a dizer? Dizes-me, provoca Alberto Caeiro.


Dizes-me

Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada. Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?

Alberto Caeiro,  um dos heterônimos de

Fernando Pessoa 
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Tu és a agonia de todas as posses, és o frio de toda a nudez e vã será toda a tentativa de me libertar da tua lembrança. Embora sabendo que tu és a que foge eu me arrastarei para os teus braços, nos versos tristes de Vinicius.



A miragem

Não direi que a tua visão desapareceu dos meus olhos sem vida
nem que a tua presença se diluiu na névoa que veio.
Busquei inutilmente acorrentar-me a um passado de dores
Inutilmente.
Vieste - tua sombra sem carne me acompanha
Como o tédio da última volúpia.
Vieste - contigo um vago desejo de uma volta inútil
E contigo uma vaga saudade...
És qualquer coisa que ficará na minha vida sem termo
Como uma aflição para todas as minhas alegrias.
Tu és a agonia de todas as posses
És o frio de toda a nudez
E vã será toda a tentativa de me libertar da tua lembrança.

Mas quando cessar em mim todo o desejo de vida
E quando eu não for mais que o cansaço da minha caminhada pela areia
Eu sinto que me terás como me tinhas no passado -
Sinto que me virás oferecer a água mentirosa
Da miragem.
Talvez num ímpeto eu prefira colar a boca à areia estéril
Num desejo de aniquilamento.
Mas não. Embora sabendo que nunca alcançarei a tua imagem
Que estará suspensa e me prometerá água
Embora sabendo que tu és a que foge
Eu me arrastarei para os teus braços.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

domingo, dezembro 12, 2010

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir. Sou uma sensação sem pessoa correspondente, lamenta Álvaro de Campos em uma de suas noites de insônia.



Insônia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo, não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite -
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah! o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda,
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos -
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora dele e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir,
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo - sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos, e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto...Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança,
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


sábado, dezembro 11, 2010

Quem tem uns olhos assim e quer fingir o desdém, não pode nem um instante olhar os olhos d'alguém. E se queres demonstrar que me desprezas olha os meus olhos de frente, desafia Florbela.



Desdém

Andas dum lado pro outro
Pela rua passando;
Finges que não queres ver
Mas sempre me vais olhando.

É um olhar fugídio,
Olhar que dura um instante,
Mas deixa um rasto d'estrelas
O doce olhar saltitante...

É este rasto bendito
Que atraiçoa o teu olhar,
Pois é tão leve e fugaz
Que eu nem o sinto passar!

Quem tem uns olhos assim
E quer fingir o desdém,
Não pode nem um instante
Olhar os olhos d'alguém...

Por isso vai caminhando...
E se queres a muita gente
Demonstrar que me desprezas
Olha os meus olhos de frente!...


Florbela Espanca 
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Em sua cantiga, Thiago de Mello entrega ao mundo o dom da sabedoria que nasce do coração. Porque é de amor e de infância que o mundo tem precisão.



Cantiga quase de roda

Na roda da vida
lá vai o menino
trazendo contente
um canto no peito
na fronte uma estrela.

Mal chega e descobre
que o mundo é feroz
e o tempo é de sombras.
Os homens caminham
calados, sozinhos,
com medo de amar.

De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras).

Portanto ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância.

Na roda do mundo,
ao lado dos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
seu canto de amor.

Um canto que faça
o mundo mais manso,
cantigas que tornem
a vida mais limpa,
um canto que faça
os homens mais crianças.

O menino entrega ao mundo
o dom da sabedoria
que nasce do coração.
Porque é do amor e da infância
que o mundo tem precisão.

Thiago de Mello
(1926)

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Até morrer estarei enamorada de coisas impossíveis. Sem mais nada além de mim, numa eternidade inútil, confessa Cecília.



Eternidade inútil

Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:

tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.

Não chorarei minha triste brevidade
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n'água.

A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.

O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles




quarta-feira, dezembro 08, 2010

O cordão partido pode ser novamente atado, mas está roto. E ali onde você me deixou não me achará novamente, nos sofridos versos de Brecht.


O cordão partido

O coração partido pode ser novamente atado
Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

terça-feira, dezembro 07, 2010

Deus disse: vou ajeitar você a um dom, vou pertencer você para uma árvore. E pertenceu-me, conta Manoel de Barros, o poeta que só quer o feitiço das palavras.



Deus disse

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.


Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Muitos versos sem mim não poderão existir. Sou poeta irrevogavelmente, afirma com pouca modéstia Murilo Mendes.


Manhã

As estátuas sem mim não podem mover os braços
Minhas antigas namoradas sem mim não podem amar seus maridos

Muitos versos sem mim não poderão existir.

É inútil deter as aparições da musa
É difícil não amar a vida
Mesmo explorado pelos outros homens
É absurdo achar mais realidade na lei que nas estrelas
Sou poeta irrevogavelmente.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

domingo, dezembro 05, 2010

Depois que todos foram, foi também o dia. E ficaram entre as sombras das áleas apertadas eu e a minha agonia, quem eu fui e quem sou, só eu e eu sem mim, eu e quem sei não ser, lembra com tristeza Fernando Pessoa.


Depois

Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e a minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
http://en.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, dezembro 04, 2010

Ali uma pedra lisa, ali um cavalo parado ou uma nuvem perdida, perdida...Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida, admite um assustado Mario Quintana.



Vida

Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Ah! se exigirem documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas de um álbum de imagens:
aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida...

Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!.

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Bem que o mundo não seria se o nosso amor lhe faltasse. Mas as manhãs que não temos são nossos lençóis de linho, diz todo o amor de José Saramago.



Teu corpo de terra e água

Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.

Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho

Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho

Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho

José Saramago

(1922-2010)

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Leminski diz que pesa dentro dele o idioma que não fez. Aquela língua sem fim, feita de ais e de aquis.


O par que me parece


 Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
   aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
   Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
   alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
   Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
   Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
   Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
   Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
   Dois leões em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
   eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Ela pensava nele, pensava nele e, de tanto nele pensar, devorou a si própria. Luxuriosamente, nos versos de Hilda Hilst.



Pensava nele

quando a seda do vestido
tocou-lhe as coxas
eriçando-lhe os pêlos
(asas a roçar o espírito
tocha a incendiar a carne)

Pensava nele

quando a voz de Maria Callas
alcançou a nota mais aguda
- L'atra notte in fondo al mare -
invocando Mefistofele
(setas fálicas a zumbir junto aos ouvidos
aromas de sândalo a embebedar os sentidos)

De tanto nele pensar
devorou a si própria
luxoriosamente
(espírito é só carne)


Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

terça-feira, novembro 30, 2010

Manuel Bandeira fez questão de dizer que não conhecia a Mascarada por quem quase se matou. Por ela, conhecia sim, que a vida era sonho, ilusão e traição.


Mascarada
Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)
- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.
- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visao!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.
- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em

segunda-feira, novembro 29, 2010

À meia-noite pelo telefone. E Drummond aprende ainda mais sobre o amor.



À meia-noite, pelo telefone

À meia-noite, pelo telefone,
conta-me que é fulva a mata do teu púbis.
Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:
"Se não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?"
Concordo, calo-me.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

domingo, novembro 28, 2010

Ricardo Reis e Sueli Costa, em "Segue o seu destino", por Nana Caymmi".



Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de



Fernando Pessoa
(1888-1935)


Mais sobre Fernando Pessoa em

sábado, novembro 27, 2010

O que se foi se foi e, se volta, é feito morte. Então por que me faz o coração bater tão forte, pergunta Ferreira Gullar.



O que se foi

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

sexta-feira, novembro 26, 2010

Alegre ou triste, amor é a coisa que mais quero. Simplesmente amor, tudo o que Adélia Prado quer da vida.


Simplesmente amor

Amor é a coisa mais alegre
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele falo palavras como lanças

Amor é a coisa mais alegre
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele podem entalhar-me:
Sou de pedra sabão.

Alegre ou triste
Amor é a coisa que mais quero.

Adélia Prado
(1935)

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quinta-feira, novembro 25, 2010

Será que você não entende, será que você é burra? Nas perguntas que não foram feitas, o desespero do menino Drummond diante da mulher que ele ama, mas não o entende.


Enleio

Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código de
amor.

Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.

Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.

Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos (só isso)
então eu diria:
Eu te amo.

Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.

Será que você não entende, será que você é burra?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quarta-feira, novembro 24, 2010

Mario Quintana fez um poema belo e alto como um girassol de Van Gogh. E quer saber em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?


Eu fiz um poema

Eu fiz um poema belo
e alto
como um girassol de Van Gogh
como um copo de chope sobre o mármore
de um bar
que um raio de sol atravessa
eu fiz um poema belo como um vitral
claro como um adro...
Agora
não sei que chuva o escorreu
suas palavras estão apagadas
alheias uma à outra como as palavra de um dicionário.
Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de uma cidade morta.
O vulto de um velho arquéologo curvado sobre a terra...
Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

terça-feira, novembro 23, 2010

Mário de Sá-Carneiro a queria toda de violetas, febril e delicada, nua e friorenta. Água, devia ser o seu amor por ele.



A inegualável*

Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de cetim...
Teus dedos, longos de marfim,
Que os sombreassem jóias pretas...

E tão febril e delicada
Que não pudesses dar um passo -
Sonhando estrelas, transtornada,
Com estampas de cor no regaço...

Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas...

Ah! que as tuas nostalgias fossem guizos de prata -
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata...

..........................................................................
..........................................................................

Teus beijos, queria-os de tule,
transparecendo carmim -
Os teus espasmos de seda...
- Água fria e clara numa noite azul.
Água, devia ser o teu amor por mim...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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* como no original.

segunda-feira, novembro 22, 2010

Ao ver a felicidade que há na casa defronte, Álvaro de Campos sente que as pessoas que moram ali são felizes porque não são ele. É um nada que dói.



Na casa defronte

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada! Não sei...
Um nada que dói

Álvaro de Campos,um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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domingo, novembro 21, 2010

Para Drummond, o amor não tem idade. Pois só quem ama escutou o apelo da eternidade.



O tempo passa? Não passa?

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.


Carlos Drummond de Andrade 
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, novembro 20, 2010

Manuel Bandeira vai embora pra Pasárgada. Lá ele é amigo do rei e terá a mulher que quiser na cama que escolher.




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Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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sexta-feira, novembro 19, 2010

Entre esperanças e incertezas, Mario Quintana escreveu um poema triste. E acabou fazendo barcos de papel das cartas dela.



Eu escrevi um poema triste

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mario Quintana
(1904-1996)

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quinta-feira, novembro 18, 2010

Em sua antiode à tristeza, Vinicius de Moraes deixou como legado um de seus mais belos poemas. Inexplicavelmente, pouco conhecido.


Antiode à tristeza


Ó enfermeira sem som do olhar sem cor
Que refletida ao último infinito
Pela lúcida insânia dos espelhos
Passeias pelo imenso corredor
Dessa antiga Irmandade! Ó sonolenta
Irmã-sem-Caridade, que vagueias
Com tuas leves sandálias de silêncio
Cuidando com desvelo da saudade
E dos males de amor de cada enfermo!
Ó guardiã do ermo, provedora
De langor, que pelo imenso corredor
Deste hospital sem termo, te comprazes
Em deitar éter sobre o sofrimento
Dos que querem viver, e dar morfina
Aos que morrem de amor! Ó freira louca
Irmã-sem-Fé, a desfiar, ausente
Teu rosário sem fim de contas ocas!
Ó trânsfuga da vida, esmaecida
Monja: o que queres mais de mim?
Já não te dei meus dias, minhas noites
E até minhas auroras, não te dei?
Já te mandei embora? Não fui sempre
Teu melhor paciente, e o mais antigo?
Não fui amigo teu, mesmo doente
De ti, não fui, Madre desoladora?
Pois agora te digo: vai-te embora!
Afasta-te de mim! não mais te quero
Irmã-sem-Esperança, confessora
Sem perdão, de quem mais nada espero
Senão vazio e angústia. Irmã-sem-Dor
Com teu rosário e teu burel de cinzas
A empoeirar de tédio as minhas horas.
Vai predicar além, predicadora
Da voz ausente, vai! que se me voltas
Eu grito nomes feios, eu te espanco
Ou te enforco em teu terço de mil voltas
Ou caio na risada, ou te exorcizo
Com um gigantesco crucifixo branco
Onde, transverberando luz do flanco
Resplende o corpo nu da minha amada.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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quarta-feira, novembro 17, 2010

Fernando Pessoa & Antonio Carlos Jobim, em "Autopsicografia". O poeta, o músico e o comboio de corda que se chama coração.




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Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa
(1888-1935)


Mais sobre Fernando Pessoa e Antonio Carlos Jobim emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Carlos_Jobim


terça-feira, novembro 16, 2010

Vamos, não chores, a vida não se perdeu, o coração continua e tens um cão. Algumas palavras duras te golpearam, nunca cicatrizaram, mas e o humor?



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Vamos, não chores
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizaram.
Mas, e o humor?


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)


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segunda-feira, novembro 15, 2010

Havia um muro e foi contra ele que arremeti a vida inteira. A honra era lutar e quanto mais lutava mais perdia, no depoimento sentido de Miguel Torga.



Depoimento

De seguro, 
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.


Miguel Torga

(1907-1995)

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No jardim solitário e sem lua, tudo em volta de Sophia Mello Breyner estava vivo. Mas nada pôde acordar o seu grande êxtase perdido.


O jardim e a noite


Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.
Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.
Docemente a sonhar entra a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.
Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.
Só o vento passou e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

domingo, novembro 14, 2010

O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo, se eu adoecesse pensaria nisso, diz Alberto Caeiro em momento de inquietude.


Há metafísica bastante em não pensar em nada.


O que penso eu?
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de 
 
Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, novembro 13, 2010

Vinicius de Moraes, porque hoje é sábado.


O Dia da Criação

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitivamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, frequentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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sexta-feira, novembro 12, 2010

Drummond aprendeu que o amor no claro é sempre triste. Como um menino desobediente, ele disse tudo a alguém, alguém que agora sabe e sempre saberá.



Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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quinta-feira, novembro 11, 2010

O Amor, segundo o maior de todos os poetas.



O Amor

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quarta-feira, novembro 10, 2010

Pouco me importa, disse Alberto Caeiro. Por que? Não sei, pouco me importa também.


Pouco me importa


Pouco me importa.
Pouco me importa o que? 
Não sei: pouco me importa.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935)

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terça-feira, novembro 09, 2010

Um apaixonado Augusto Frederico Schmidt disse à mulher amada: eu nem quero te amar, porque te amo demais. E o poeta se perdeu na dialética do amor.



De amor

Chegaria tímido e olharia tua casa,
A tua casa iluminada.
Teria vindo por caminhos longos
Atravessando noites e mais noites.

Olharia de longe o teu jardim.
Um ar fresco de quietação e repouso
Acalmaria a minha febre
E amansaria o meu coração aflito.

Ninguém saberia do meu amor:
Seria manso como as lágrimas,
Como as lágrimas de despedida.

Meu amor seria leve como as sombras.

Tanto receio de te amar, tanto receio...
A sombra do meu amor
Poderia agitar teu sono, pertubar o teu sossego...

Eu nem quero te amar, porque te amo demais.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)


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segunda-feira, novembro 08, 2010

Para Clarice, o amor tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo, porque o amor não mata.



Mas há a vida

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.

Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Clarice Lispector
(1920-1977)

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domingo, novembro 07, 2010

Hoje, Álvaro de Campos quer preparar-se para pensar amanhã no dia seguinte. Porque depois de amanhã ele será finalmente o que hoje não pode nunca ser.



Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://en.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, novembro 06, 2010

Cecília pôs o seu sonho num navio e o navio em cima do mar. O sonho desapareceu no fundo do mar e ela ficou com os olhos secos e as mãos quebradas.


Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas. 

Cecília Meireles
(1901-1964)

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sexta-feira, novembro 05, 2010

Mário de Andrade, a moça linda, três séculos de família, burra como uma porta, um amor, e o grã-fino do despudor, burro como uma porta, um coió.


Moça linda bem tratada

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

Mário de Andrade
(1893-1945)

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quarta-feira, novembro 03, 2010

Vinícius sente que a mulher que há de vir é a anunciada da sua poesia. E que ela será dele, só dele, como a força é do forte e a poesia é do poeta.



A que há de vir


Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

segunda-feira, novembro 01, 2010

Em um dos seus mais lindos poemas, Drummond diz tudo sobre o amor perdido. Porque as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.



Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, outubro 29, 2010

Para João Cabral de Melo, aquela mulher exerce sobre o homem efeito igual ao de uma casa. A vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la.


A mulher e a casa


Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

João Cabral de MeloNeto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

quinta-feira, outubro 28, 2010

A uma mulher, Murilo Mendes dedicou um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Em versos plenos de amor e dor.


A uma mulher

Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam logo em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens eternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quarta-feira, outubro 27, 2010

Tenho fases como a lua, fases de andar escondida, fases de vir para a rua. Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha, no lamento de Cecília.


Lua adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles