quinta-feira, julho 23, 2009
Indaga-se por toda parte, onde está a poesia? Vai à esquina comprar jornal, diz Ferreira Gullar.
A poesia
Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.
Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
meu poema é puro, flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.
Não é como a açucena
que efêmera
passa.
E não está sujeito a traça
pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
o meu poema está infenso à vida.
Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:
"Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu".
'A Fábrica de Fiação Gamboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários".
"A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou descaradamente: "Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz".
O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou
Era pouco? era muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos dentes
cheiros que traspassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
onde eu morria
Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca
E agora
recostada no divã da sala
depois de tudo
a poesia ri de mim
Ih, é preciso arrumar a casa
que Audrey vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
a tua grácia!
E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).
Poesia - deter a vida com palavras?
Não - libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia - falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão
E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-
saro? o pás-
?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução
Ferreira Gullar
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