terça-feira, janeiro 31, 2012

Para Manuel Bandeira, as santas são impassíveis como as mulheres que o enganaram. Mas o que sempre procurou na vida lhe será dado um dia por Nossa Senhora da Boa Morte.



Oração a Nossa Senhora da Boa Morte

Fiz tantos versos a Teresinha...
Versos tão tristes, nunca se viu!
Pedi-lhe coisas. O que eu pedia
Era tão pouco! Não era glória...
Nem era amores...Nem foi dinheiro...
Pedia apenas mais alegria:
Santa Teresa nunca me ouviu!

Para outras santas voltei os olhos.
Porém as santas são impassíveis
Como as mulheres que me enganaram.
Desenganei-me das outras santas
(Pedi a muitas, rezei a tantas)
Até que um dia me apresentaram
A Santa Rita dos Impossíveis.

Fui despachado de mãos vazias!
Dei volta ao mundo, tentei a sorte.
Nem alegrias mais peço agora,
Que eu sei o avesso das alegrias.
Tudo que viesse, viria tarde!
O que na vida procurei sempre,
- Meus impossíveis de Santa Rita, -
Dar-me-eis um dia, não é verdade?
Nossa Senhora da Boa Morte!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

segunda-feira, janeiro 30, 2012

Começa a haver meia-noite e a haver sossego, vai tudo dormir. E Álvaro de Campos fica sozinho com o universo inteiro, esperando qualquer coisa antes que durma, qualquer coisa.



Começa a haver meia-noite

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários de acumulação da vida...
Calaram o piano no terceiro andar...
Não oiço já passos no segundo andar...
No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

Vai tudo dormir...

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! -
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
Um automóvel - demasiado rápido! -
Os duplos passos em conversa falam-me...
O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

Vai tudo dormir...

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma
Qualquer coisa.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


domingo, janeiro 29, 2012

Drummond sente que é noite porque dentro dele, no fundo dele, o grito se calou, fez-se o desânimo. Mas quando surge a clara manhã, ele quer chupar o gosto do dia, pois o essencial é viver.



Passagem da noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos, saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, janeiro 28, 2012

Ensina-me, ensina-me como se faz do barro essa canção, pede Eugénio de Andrade em versos. É pouco o que deseja, e desse pouco ele se despede.


Ensina-me

Ensina-me, ensina-me como se faz
do barro essa canção,
essa luz que vi mudada em pedra
viva nos teus olhos.

Estou a falar de mim como se não fora
estrangeiro, o espinho
indolor da neve cravado na garganta.
Já não desço à pequena praca

onde cantam os anjos: o anel
caíu à água.
Aqui, dizem, morre-se melhor: o ar
é frio, o campo raso, roxo o orvalho.

É pouco o que desejo,
e desse pouco me despeço.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade




sexta-feira, janeiro 27, 2012

No túmulo de Lorca, Sophia de Mello Breyner chora todos os outros mortos vítimas do fascismo franquista. Todos os que não foram poupados à patada da besta.



Túmulo de Lorca

Em ti choramos os outros mortos todos
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

quarta-feira, janeiro 25, 2012

Mário de Sá-Carneiro chega à conclusão que Mistério é riqueza. E o medo é Mistério.



Não

Longes se aglomeram
Em torno aos meus sentidos,
Nos quais prevejo erguidos
Paços reais de mistérios.

Cinjo-me de Cor,
E parto a demandar.
Tudo é Oiro em meu rastro -
Poeira de amor...

Advinho alabastro...
Detenho-me em luar...

Lá se ergue o castelo
Amarelo do medo
Que eu tinha previsto:
As portas abertas,
Lacaios parados,
As luzes, desertas -
Janelas incertas,
Torreões sepulcrados...

Vitória! Vitória!
Mistério é riqueza -
E o medo é Mistério!...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

terça-feira, janeiro 24, 2012

Onde estará Ferreira Gullar quando já não for possível encontrá-lo em nenhum ponto da cidade ou do planeta?


Um pouco antes

Quando já não for possível encontrar-me
em nenhum ponto da cidade
ou do planeta
pensa
ao veres no horizonte
sobre o mar de Copacabana
uma nesga azul de céu
pensa que resta alguma coisa de mim
por aqui
Não te custará nada imaginar
que estou sorrindo ainda naquela nesga
azul celeste
pouco antes de dissipar-me para sempre

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

segunda-feira, janeiro 23, 2012

Para Leminski, o que quer dizer, diz. Não fica só querendo, querendo, coisa que ele nunca quis.



O que quer dizer

O que quer dizer, diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

domingo, janeiro 22, 2012

Sofro, Lídia, do medo do destino. Tudo quanto me ameace de mudar-me, para melhor que seja, odeio e fujo, confessa Ricardo Reis em sua ode.


Sofro

Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.

Tudo quanto me ameace de mudar-me,
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar.

Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa



sábado, janeiro 21, 2012

Um mistério que eu trago dentro em mim é um mistério de sonho e de luar. Que ora me faz chorar, ora me faz sorrir, nos versos de amor de Florbela Espanca.


Mistério d'amor

Um mistério que eu trago dentro em mim
Ajuda-me, minha alma a descobrir...
É um mistério de sonho e de luar
Que ora me faz chorar, ora sorrir!

Vivemos tanto tempo tão amigos!
E sem que o teu olhar puro toldasse
A pureza do meu. E sem que um beijo
As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mais um dia, uma tarde...houve um fulgor
Um olhar que brilhou...e mansamente...
Ai dize ó meu encanto, meu amor:

Por que foi que somente nessa tarde
Nos olhamos assim tão docemente
Num grande olhar d'amor e de saudade?!

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

sexta-feira, janeiro 20, 2012

Murilo Mendes diz que o tempo cria um tempo logo abandonado pelo tempo. E divulga o que nós não fomos em tempo algum.


O tempo

O tempo cria um tempo
Logo abandonado pelo tempo,
Arma e desarma o braço do destino.
A metade de um tempo espera num mar sem praias,
Coalhado de cadáveres de momentos ainda azuis.
O que flui do tempo entorna os pássaros,
Atravessa a pedra e levanta os monumentos
Onde se desenrola - o tempo espreitando - a ópera do espaço.
Os botões da farda do tempo
São contados - não pelo tempo.
O relojoeiro cercado de relógios
Pergunta que horas são.

O tempo passeia a música e restaura-se.
O tempo desafia a pátina dos espíritos,
Transfere o heroísmo dos heróis obsoletos,
Divulga o que nós não fomos em tempo algum.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Se não fora abusar da paciência divina, Mario Quintana mandaria rezar missa pelos seus poemas que não passaram das primeiras linhas. Não só os dele, mas por todos os poemas inválidos que se arrastam pelo mundo.



A missa dos inocentes

Se não fora abusar da paciência divina
Eu mandaria rezar missa pelos meus poemas que não
conseguiram ir além da terceira ou quarta linha.
Vítimas dessa mortalidade infantil que, por ignorância dos pais,
Dizima as mais inocentes criaturinhas, as pobres...
Que tinham tanto azul em nos olhos,
Tanto que dar ao mundo!
Eu mandaria rezar o réquiem mais profundo
Não só pelos meus
Mas por todos os poemas inválidos que se arrastam pelo mundo
E cuja comovedora beleza ultrapassa a dos outros
Porque está, antes e depois de tudo,
No seu inatingível anseio de beleza.

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

quarta-feira, janeiro 18, 2012

Em versos, Thiago de Mello ensina que cidadania é um dever do povo. Porque só é cidadão quem conquista o seu lugar na luta do sonho de uma nação.



Cidadania

Cidadania é um dever
do povo.
Só é cidadão
quem conquista o seu lugar
na perseverante luta
do sonho de uma nação.
É também obrigação:
a de ajudar a construir
a claridão na consciência
de quem merece o poder.
Força gloriosa que faz
um homem ser para outro homem,
caminho do mesmo chão,
luz solidária e canção.

Thiago de Mello
(1926)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

terça-feira, janeiro 17, 2012

Para Manoel de Barros, gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução. É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.


Gorjeios

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está enamorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.

Manoel de Barros
(1916)
Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros 

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Affonso Romano de Sant'Anna está catando os cacos do caos. Os cacos do presente e outrora e enfrentar a noite com o vitral da aurora.


Catando os cacos do caos

Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
..............- como se fosse flor.

Catar os restos e ossos
da utopia
..............como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.

Catar a verdade contida
em cada concha da mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
.............- do dia cão.

Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionísio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
.............- como era antes.

Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça? ..........Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção.

.....Cacos de mim
.....Cacos do não
.....Cacos do sim
.....Cacos do antes
.....Cacos do fim.

Não é dentro
......nem fora

embora seja dentro e fora
.....no nunca e a toda hora
que violento
....o sentido nos deflora.

Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna










segunda-feira, janeiro 09, 2012

Para Adélia Prado, não importa a palavra, esta corriqueira. Porque quem entender a linguagem entende Deus cujo filho é Verbo.


Antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Adélia Prado
(1935)

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

domingo, janeiro 08, 2012

O mundo é grande, mas o Humanismo que Drummond nos ensina neste poema é muito maior. Por isso, seu coração cresceu até explodir.


Mundo grande
 
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho
cruamente nas livrarias:preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros,
carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem...sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos-voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam).
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante
exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
que o mundo, o grande mundo está
crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
-ó, vida futura! Nós te criaremos.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, janeiro 07, 2012

No dia triste, Álvaro de Campos sente o seu coração mais triste que o dia. No dia triste, todos os dias, no dia tão triste...


Nuvens

No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
Obrigações morais e civis?
Complexidade de deveres, de consequências?
Não, nada...
O dia triste, a pouca vontade para tanto...
Nada...
Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol
(Também estive ao sol, ou supus que estive).
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,
Vaidade, alegria e sensibilidade.
E emigram para voltar, ou para não voltar,
Em navios que os transportam simplesmente.
Não sentem o que há de morte em toda a partida,
De mistério em toda a chegada,
De horrível em todo o novo...

Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?

Gado vestido dos currais dos Deuses.
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício
Sob o sol, alacre, vivo, contente de sentir-se...
Deixai-o passar, mas aí, vou com ele sem grinalda
Para o mesmo destino!
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,
Vou com ele sem desconhecer...

No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
No dia triste todos os dias...
No dia tão triste...


Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa







sexta-feira, janeiro 06, 2012

Como quem pede uma esmola, Abgar Renault precisa de uma palavra. A palavra que ele não tem.


Como quem pede uma esmola


Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault


quinta-feira, janeiro 05, 2012

Florbela Espanca era a desdenhosa, a indiferente. Nunca sentira nela o coração bater em violências de paixão.



Que importa?

Eu era a desdenhosa, a indiferente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão,
Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de desejo ou de emoção,
Enquanto as asas loiras da ilusão
Abrem dentro de mim ao sol nascente.

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte,
Toda ela é riso e é frescura e graça!

Nada refresca a boca um só instante...
Que importa?... Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes...quando passa?...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Te acalma, minha loucura! Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados, no grito de Ana Cristina Cesar.



Casablanca

Te acalma. minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este sonho de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...

Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
madrugada feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar


terça-feira, janeiro 03, 2012

Minha saudade saúda tua ida. Mesmo sabendo que uma vida só é possível noutra vida, diz Alice Ruiz em sua saudação da saudade.


Saudação da saudade

Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vida
só é possível
noutra vida

Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

Aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim

Alice Ruiz
(1946 )

Mais sobre Alice Ruiz em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz


segunda-feira, janeiro 02, 2012

Ao final de seus três momentos, Antonio Cícero diz a ela querer tudo que há. O mundo e seu amor, poder fantasiar com o seu sexo junto ao mar.


Três

Um
Foi grande o meu amor
não sei o que deu
quem inventou fui eu
fiz de você o sol
da noite primordial
e o mundo fora nós
se resumia a tédio e pó
quando em você tudo se complicou

Dois
Se você quer amar
não basta um só amor
não sei como explicar
um só é sempre demais
pra seres como nós
sujeitos a jogar
as fichas todas de uma vez
sem temer naufragar
não há lugar para lamúrias
essas não caem bem
não há lugar para calúnias
mas por que não
nos reinventar

Três
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com o seu sexo
Junto ao mar

Antonio Cícero
(1945)

Mais sobre Antonio Cícero em




domingo, janeiro 01, 2012

Vi sempre o mundo independente de mim. Então, eu que me aguente comigo e com os comigos de mim, no lamento de Álvaro de Campos.


Contudo

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa