quinta-feira, setembro 17, 2015

Entre ser, ter e amar, o testemunho da vida na poesia de Thiago de Mello. Ele sente que sofredor grandioso só mesmo o coração, pois nele cabe Deus.


O testemunho

I - Ser

Num campo de silêncio,
onde pastam manhãs,
estou - sempre que sou.

Quis-me o campo por senda:
em meu lúcido passo,
entanto, lá não vou.

Atendo a um chamamento
feroz, tímido e brando:
são vozes maduras.

Toda recusa é vã:
asas me erguem, e sou.
Ser é resposta. E dói.

É um campo de silêncio:
oh! palpitante berço
e pasto roçagante

de infinitas manhãs
que se cantam nascidas
para a noite do mundo.

De silêncio, e contudo
ali se escuta a dor
crescer, fingida em relva.

Essa relva me sabe.
O coração é a boca
que se crispa a seu travo.

Pasto dor e silêncio
no campo onde sou.

II - Ter

Dor sofrida é salário.

O amargo que mastigo
transmuda-se na moeda
com que me cumpro e compro

o segredo fecundo
adormecido há invernos
na boca das auroras.

Para erguê-las ao campo
de silêncio onde pastam
- e de onde me chamaram -,

antes entrego as mãos
às lâminas de brasa
que me buscam, ferozes:

matutinos orvalhos,
serenos de idas tardes,
sepultos semivivos.

Com essa dor se cunha
a moeda em cuja efígie
vê-se o perfil dos anjos.

Meu salário é meu júbilo:
ao regressar-me, esplendem
alvíssaras profundas

no momento em que entrego
ao mundo - envolta em cânticos -
humilde sempremanhã.

III - Amar

No campo de silêncio
onde, existindo, sou,
não me retardo. Tardo

a ser, e quando sou
- sou pouco. O muito é a dor.
As têmporas estalam.

O tempo que ficou
e, aquém de mim, me espera
reclama o existir turvo.

Então, perdido, torno,
a caminho transbordo,
transvio-me de mim:

quando chego, sou pouco.
Crestam-me a vida vã
saudades de ter sido.

A dor é eco longínquo
de grito soterrado.
O ser é estrela extinta,

lua de treva em céu
já desabado, pedra
lavada pela chuva.

Permaneço, contudo,
e comigo a amargura,
quando o amor é o caminho

que em mim se faz e faz-me
correr ao campo branco
onde alvoradas sonham,

onde me espera o pasto
onde a fome fareja
a dor antiga, eterna:

dor esplêndida e dura
- dor de ser e de amar.
Porque de amar, perdura.

E trago dessa viagem
uma treva mais doce
para a noite do mundo.

Às vezes é uma aurora
que me aclara também:
e vejo em amargor

a face que me coube,
a face dessa noite
noite tão noite e fria

que é minha e de meu mundo,
ai, mundo meu não mundo,
perdido, em pranto, e pouco.

O muito em mim, e grande,
e sofredor grandioso
- só mesmo o coração:
pois nele cabe Deus.

Thiago de Mello
(1926)

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

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