terça-feira, abril 29, 2014

Para Affonso Romano de Sant'Anna um corpo é mais que tudo. O corpo é onde e a vida é quando.


Definição

1

Um corpo não é um fruto,
embora em tudo se assemelhem:
densa forma,
oculto gosto,
cinco letras
e um pressuposto
poder de vida.

Um corpo é mais que um fruto
que se plante,
que se colha
ou se degluta:

um corpo
é um corpo,
e um corpo
é luta.

Um corpo não é um potro,
embora assim se manifeste:
pêlos mansos,
membros ágeis,
sal na boca
e um desejo
verde pelos campos.

Um corpo é mais que um potro
que pelos prados
e currais se dome:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é fome.

Nem chama
que se anule,
nem espada
em duplo gume
ou máquina
de estrume.

Um corpo
é mais que tudo:
mais que a chave,
mais que a forma,
mais que o leme,
mais que o açude.

Um corpo
é mais que tudo:
é a própria imagem
que eu não pude.

2

O corpo é onde
é carne:

O corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

O corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

O corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

O corpo é onde
é cal:

O corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

domingo, abril 27, 2014

Viver, era apenas isso, era isso, mais nada? Drummond vivendo em versos a angústia do Homem.


Viver

Mas era apenas isso,
era isso mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso,
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade


sexta-feira, abril 25, 2014

Um apaixonado Augusto Frederico Schmidt disse à mulher amada: eu nem quero te amar, porque te amo demais. E o poeta se perdeu na dialética do amor.


De amor

Chegaria tímido e olharia tua casa,
A tua casa iluminada.
Teria vindo por caminhos longos
Atravessando noites e mais noites.

Olharia de longe o teu jardim.
Um ar fresco de quietação e repouso
Acalmaria a minha febre
E amansaria o meu coração aflito.

Ninguém saberia do meu amor:
Seria manso como as lágrimas,
Como as lágrimas de despedida.

Meu amor seria leve como as sombras.

Tanto receio de te amar, tanto receio...
A sombra do meu amor
Poderia agitar teu sono, pertubar o teu sossego...

Eu nem quero te amar, porque te amo demais.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)


Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em

quinta-feira, abril 24, 2014

Na grande sala escura, só teus olhos existem para os meus. Para Guilherme de Almeida, olhos cor de romance e de aventura, longos como um adeus.


Cinema

Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.

E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
são bandidos e heróis;

são lágrimas e risos;
são mulheres com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...

É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quarta-feira, abril 23, 2014

Em sua canção para poder viver, Cassiano Ricardo diz tudo que ela precisava ouvir. Mesmo que peça mais um bis, "ao palco"!


Canção para poder viver

Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.

Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água.

E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa.

Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!

Cassiano Ricardo
(1894-1975)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

quarta-feira, abril 16, 2014

Se o mundo dura tanto e eu tão pouco, importa pouco se ele não for eterno. É o que diz Ferreira Gullar sobre a relativa eternidade.


A relativa eternidade

Cruzo a rua e vejo
sobre a montanha
que se ergue no horizonte
para além da Lagoa
nuvens matinais
iluminadas
contra um céu muito azul

como na primeira manhã do mundo 

(ainda que
em todos os dias do ano
quando faz sol
essa festa matinal se tenha repetido
por séculos)

mas pouco importa:
é hoje manhã pela primeira vez

ainda que
antes de terem aqui chegado os portugueses
já ali estivessem a montanha
o céu azul
e as nuvens a se esgarçarem

quer houvesse
ou não
(como agora)
alguém para vê-los

e então me digo:
se o mundo dura tanto
e eu tão pouco
importa pouco
se ele não for eterno

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

terça-feira, abril 15, 2014

Só quem ama pode ser capaz de ouvir e entender estrelas. Quem disse foi o Príncipe dos Poetas.


Ouvir Estrelas

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

domingo, abril 13, 2014

Álvaro de Campos diz que nunca voltará, nunca voltará porque nunca se volta. Porque o lugar a que se volta é sempre outro.


Là-bas, je ne sais où

Véspera de viagem, campainha... 
Não me sobreavisem estridentemente!
 
Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho 
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro 
Do comboio definitivo, 
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago, 
Antes de pôr no estribo um pé 
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir. 
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje, 
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida. 
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela? 
Que importa?   
Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
 
Sabe-me a náusea próxima o cigarro.  O comboio já partiu da outra estação... 
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim, 
Minha família abstrata e impossível... 
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida! 
Ficar como um volume rotulado esquecido, 
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha. 
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida — 
"E esta?  Então não houve um tipo que deixou isto aqui?" — 
Ficar só a pensar em partir, 
Ficar e ter razão, 
Ficar e morrer menos ...
 
Vou para o futuro como para um exame difícil. 
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?
 
Já me vejo na estação até aqui simples metáfora. 
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável. 
Vê-se — dizem — que tenho vivido no estrangeiro.
 
Os meus modos são de homem educado, evidentemente. 
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil. 
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.
 
Partir! 
Nunca voltarei, 
Nunca voltarei porque nunca se volta.   
O lugar a que se volta é sempre outro,  
A gare a que se volta é outra. 
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.
 

Partir!  Meu Deus, partir!  Tenho medo de partir!...


Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, abril 12, 2014

Pare Manoel de Barros, Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros. Ele desejava atingir a pureza de não saber mais nada.


Miró

Para atingir sua expressão fontana
Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas
que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo
do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo
que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre
mijada florestal.
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de
insetos, cascas de cigarra etc
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia
de cores.
Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um
dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha
escura.
O escuro o iluminava.

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, abril 06, 2014

Tive um passado, tenho um presente, terei um futuro? Cheio de todos os cansaços, quantos o mundo pode dar, Álvaro de Campos quer que a vida pare.


Eu, eu mesmo


Eu, eu mesmo...
Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. -
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito ? Incógnito ? Divino ?
Não sei...
Eu...
Tive um passado ? Sem dúvida...
Tenho um presente ? Sem dúvida...
Terei um futuro ? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, abril 05, 2014

Quem bate mais na porta, quem parte ou quem volta? Leminski e as ambiguidades do amor.


Volta em aberto

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem volta?

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_leminski

sexta-feira, abril 04, 2014

Conheço tudo, conheço tudo, menos a mim. Mas depois que chegaste de algum céu, posso afirmar que não conheço nada, nem mesmo a mim, confessa Ferreira Gullar.


Menos a mim

Conheço a aurora com seu desatino
Conheço o amanhecer com o seu tesouro
Conheço as andorinhas sem destino
Conheço rios sem desaguadouros
Conheço o medo do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Conheço o ódio e seus argumentos
Conheço o mar e suas ventanias
Conheço a esperança e seus tormentos
Conheço o inferno e suas alegrias
Conheço a perda do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Mas depois que chegaste de algum céu
Com teu corpo de sonho e margarida
Pra afinal revelar-me quem sou eu
Posso afirmar enfim
Que não conheço nada desta vida
Que não conheço nada, nada, nada
Nem mesmo a mim.

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

quinta-feira, abril 03, 2014

Olavo Bilac sentia remorsos pelos beijos que não teve por tolice, por timidez o que sofrer não pôde. E por pudor, os versos de amor que não disse.


Remorso


Às vezes uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah ! Mais cem vidas ! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando !

Sinto o que desperdicei na juventude;
Choro neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude.

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse !

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac