segunda-feira, março 31, 2014

Desaparecia-se, desaparecia-se muito naqueles dias. Mas um dia cai a Ditadura, vivos e mortos venceram, na homenagem de Affonso Romano aos que lutaram pela Democracia.



De repente


De repente, naqueles dias começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado, ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia..
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupo de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
- mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.

Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, aerefeitos, constatar no além
como os pecadores partiam.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os do platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil
ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.




2


Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebentavam os mais puros.
em mística euforia. Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.

Em toda a família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isso alimentava ficções
- nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos
boiavam
- na sopa do presidente.

As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gritavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
como a vítima corrói o algoz.

E surgiram sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera dos ossos.

Brotavam troncos de árvore,
rios, insetos e nuvens
em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.



Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.

Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.


A natureza, como a história
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.

Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos, da sepultura.


Affonso Romano de Sant’Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant’Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

domingo, março 30, 2014

Carlos Drummond de Andrade tem saudades de uma dama. Que lhe passeava na medula e atomizava os pés da cama.


Tenho saudades de uma dama

Tenho saudades de uma dama
como jamais houve na cama
outra igual, e mais terna amante.

Não era sequer provocante.
Provocada, como reagia!
São palavras só: quente, fria.

No banheiro nos enroscávamos.
Eram flamas no preto favo,
um guaiar, um matar-morrer.

Tenho saudades de uma dama
que me passeava na medula
e atomizava os pés da cama.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

domingo, março 23, 2014

A vez primeira que te vi, era eu menino e tu menina. Com saudade, lembra Manuel Bandeira sua primeira paixão.


Três idades

A vez primeira que te vi,
Era eu menino e tu menina.
Sorrias tanto... Havia em ti
Graça de instinto, airosa e fina.
Eras pequena, eras franzina...

Ao ver-te a rir numa gavota,
Meu coração entristeceu.
Por quê? Relembro, nota a nota,
Essa ária como enterneceu
O meu olhar cheio do teu.

Quando te vi segunda vez,
Já eras moça, e com que encanto
A adolescência em ti se fez!
Flor e botão...sorrias tanto...
E o teu sorriso foi meu pranto...

Já eras moça...Eu, um menino...
Como contar-te o que passei?
Seguiste alegre o teu destino...
Em pobres versos te chorei.
Teu caro nome abençoei.

Vejo-te agora. Oito anos faz,
Oito anos faz que não te via...
Quanta mudança o tempo traz
Em sua atroz monotonia!
Que é do teu riso de alegria?

Foi bem cruel o teu desgosto.
Essa tristeza é que mo diz...
Ele marcou sobre o teu rosto
A imperecível cicatriz:
És triste até quando sorris...

Porém teu vulto conservou
A mesma graça ingênua e fina...
A desventura te afeiçoou 
À tua imagem de menina.
E estás delgada, estás franzina...

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em

sábado, março 22, 2014

Aquela cativa é a mulher que tem Camões cativo. Nela ele vive, é força que viva.


Aquela cativa

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela enfim descansa
Toda a minha pena.
Esta é a minha cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.

Luis Vaz de Camões

(1524-1580)

Mais sobre Luis Vaz de Camões em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_de_Cam%C3%B5es

domingo, março 16, 2014

Em sua ode, Ricardo Reis diz que ninguém a outro ama. Senão que ama o que de si há nele, ou é suposto.


Ninguém a outro ama


Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Ninguém te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, março 15, 2014

Mesmo que eu morra, o poema encontrará uma praia onde quebrar as suas ondas. E me levará no tempo, quando eu já não for eu, disso estava certa Sophia.


O Poema

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem 

O
 poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner 
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

sexta-feira, março 14, 2014

Murilo Mendes diz que é mais fácil achar Deus do que a mulher desconsoladora. E ele a procura continuamente.


A desconsoladora


Mulher, eu te procuro continuamente. É mais fácil achar Deus, do que te
achar.

Tenho por ti uma grande atração e repulsão - ao mesmo tempo.

Eu adormeço com teu amor e desperto com o ódio a ti. E te destruo e te
contruo a todo o instante.

Há de me perseguir até à imortalidade. A paz da mulher não é a paz de
Deus.

A mulher não é o amor. A poesia é o amor. A poesia da ausência da mulher
é equivalente à poesia da posse da mulher.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, março 13, 2014

Ele está em tudo que Manuel Bandeira pensa, em tudo que imagina, no início das cousas e no fim do universo. No céu, no céu Ele estará.


Ubiquidade

Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.

Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.

En tudo estás, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo).

Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra e, os tempos cumpridos.
No céu, no céu estarás.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

quarta-feira, março 12, 2014

E não digo mais nada, que mais há a dizer? Dizes-me, provoca Alberto Caeiro.


Dizes-me

Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.
Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.
Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.
Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada. Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,
Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?

Alberto Caeiro,  um dos heterônimos de

Fernando Pessoa 
(1888-1935)

terça-feira, março 11, 2014

Por favor, tenha cuidado, pega leve, olha onde pisa, isso é meu coração. E não há nada que eu possa fazer sem coração, pede Alice Ruiz.


É duro ter coração mole

Por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado, pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração

Alice Ruiz
(1946)

Mais sobre Alice Ruiz em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz

domingo, março 09, 2014

Só quando tiver setenta anos, quando acabar a adolescência, Leminski vai largar da vida louca. E ver tudo em sã consciência.


Quando eu tiver setenta anos

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_leminski

sábado, março 08, 2014

Mulher, para você. Amar, segundo Carlos Drummond de Andrade.


Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina. Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

terça-feira, março 04, 2014

E vivemos partindo, ela de mim e eu dela, enquanto breves vão-se os anos para a grande partida que há no fim. É o que sente Vinicius de Moraes em seu soneto de carnaval.


Soneto de carnaval 

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento 
Pensar nele é morrer de desventura 
Não pensar é matar meu pensamento. 

Seu mais doce desejo se amargura 
Todo o instante perdido é um sofrimento 
Cada beijo lembrado uma tortura 
Um ciúme do próprio ciumento. 

E vivemos partindo, ela de mim 
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos 
Para a grande partida que há no fim 

De toda a vida e todo o amor humanos: 
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo 
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

domingo, março 02, 2014

Nos carnavais de Bandeira, as cantigas eram sempre tristíssimas. Paixão, ciúme, dor daquilo que não se pode dizer e nada de éter na boca!


Na boca

Sempre tristíssimas essas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca!Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

Dorinha meu amor....
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro:
- Na boca!Na boca!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira