sexta-feira, novembro 14, 2014

Em seu último poema, Manoel de Barros conta o que ele e sua turma mais gostavam de fazer. Eles não queriam mudar a Natureza, queriam é que a palavra deles poemasse.


A turma

A gente foi criado no ermo igual ser pedra.
Nossa voz tinha nível de fonte.
A gente passeava nas origens.
Bernardo conversava pedrinhas com as rãs de tarde.
Sebastião fez um martelo de pregar água na parede.
A gente não sabia botar comportamento
nas palavras.
Para nós obedecer a desordem das falas
infantis gerava mais poesia do que obedecer as regras gramaticais.
Bernardo fez um ferro de engomar gelo.
Eu gostava das águas indormidas.
A gente queria encontrar a raiz das palavras.
Vimos um afeto de aves no olhar de Bernardo.
Logo vimos um sapo com olhar de árvore!
Ele queria mudar a Natureza?
Vimos depois um lagarto de olhos garços
beijar as pernas da Manhã!
Ele queria mudar a Natureza?
Mas o que nós queríamos é que a nossa
palavra poemasse.

Manoel de Barros
(1916-2014)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, novembro 02, 2014

Para Fernando Pessoa, viver é um sonho morno de agrado aos jardins do passado. Daquilo que a gente lembra, sem querer se lembrar, daquilo que a gente sonha, sem saber de sonhar.



Aquilo que a gente lembra

Aquilo que a gente lembra
Sem o querer lembrar,
E inerte se desmembra
Como um fumo no ar,
É a música que a alma tem,
E o perfume que vem,
Vago, inútil, trazido
Por uma brisa de agrado,
Do fundo do que é esquecido,
Dos jardins do passado.

Aquilo que a gente sonha,
Sem saber de sonhar,
Aquela boca risonha
Que nunca nos quis beijar,
Aquela vaga ironia

Que uns olhos tiveram um dia
Para a nossa emoção -
Tudo isso nos dá o agrado,
Flores que flores são
Nos jardins do passado.

Não sei o que fiz da vida,
Nem o quero saber,
Se a tenho por perdida,
Sei eu o que é perder?
Mas tudo é música se há
Alma onde a alma está,
E há um vago, suave, sono,
Um sono morto de agrado,
Quando regresso, dono,
Aos jardins do passado.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

terça-feira, outubro 07, 2014

Florbela ama muito, ama os sonhos que se calam de corações que sentem e não falam. E até a voz do grande e mísero Destino.


Voz que se cala

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera, que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!

Florbela Espanca
(1894-1930)

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sábado, outubro 04, 2014

Os outros que lutem para possuir o mundo. Quanto a mim, quero te ver face a face, decide Murilo Mendes.


Antecipação

Os outros que lutem para possuir o mundo.
Quanto a mim, quero te ver face a face.
Aguardo tua última vinda,
Minha forma definitiva e perfeita,
Minha justificação na tua unidade.
Estás em mim, mas ainda não te vejo:
Só vejo com os olhos do sangue.
Cai, mundo que herdei segundo a carne!
No fim de tudo abraçarei o Verbo
Que contém minhas formosas ascendentes,
Que me contém, contém a musa
E todas as gerações da musa, desde o princípio.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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domingo, setembro 21, 2014

Para Drummond, eterno é o amor que une e separa. Para ele, o esquecimento ainda é memória, eterno é o fim.


Permanência

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
Dia virá em que nenhum será lembrado.
Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.
Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

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domingo, setembro 14, 2014

Escreve-me, ainda que seja uma só palavra, uma palavra apenas. Cinco letras pequenininhas, no pedido da Flor mais bela.


Escreve-me ...

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!

Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor! Meu coração
Morreu já, e no mundo  aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração! "Amo-te!"

Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!

Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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sábado, setembro 13, 2014

Mario Quintana sabia que a morte sempre chega pontualmente na hora incerta. E invejava Tolstoi, que realizou um velho sonho da infância.


Poema da Gare do Astapovo


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!

Mario Quintana
(1906-1994)

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domingo, setembro 07, 2014

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, mais um dia afinal eu toparei comigo... Será que Mario de Andrade se encontrou mesmo ou ficou o esquecimento?


Eu sou trezentos

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios [beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Mario de Andrade
(1892-1945)

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sábado, setembro 06, 2014

Mais e mais, Álvaro de Campos sente o sono da soma de tantas desilusões. É o sono da síntese de todas as suas desesperanças.


O sono que desce sobre mim

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim -
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas e mais, mais de dentro, mais de cima:
O sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quinta-feira, setembro 04, 2014

Um dia e a vida. Segundo uma andorinha cantadora e um poeta com seus versos.


Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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segunda-feira, setembro 01, 2014

Para Leminski, muda a regra, muda o mapa, muda toda a trajetória. Num ano ímpar, só não muda a nossa história.


1987, tende piedade de nós

anos ímpares
são anos vítimas
anos sedentos
de sangue e vingança
todo gozo será punido
e o deserto será nossa herança

anos ímpares
são sarampo ínguas cataporas
bocas que praticam
tacos e cacos de línguas
lixos onde mora a memória

muda a regra, muda o mapa
muda toda a trajetória
num ano impar,
só não muda a nossa história

Paulo Leminski
(1944-1989)

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domingo, agosto 31, 2014

Para Vinicius, é preciso esquecer tudo ao vir um novo amor e viver esse amor até morrer. E ir conjugar o verbo no infinito.


O verbo no infinito

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor: nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar.

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito.

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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quarta-feira, agosto 27, 2014

Quando o mistério chegar, já vai encontrar Leminski dormindo. E quando o mistério aumentar, que não haja som nem silêncio.


Adminimistério

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

Paulo Leminski
(1944-1989)

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segunda-feira, agosto 25, 2014

O relógio, para Mario Quintana, é um animal muito feroz. E ele tem suas razões.


O relógio

O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.

Mario Quintana
(1904-1996)

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domingo, agosto 24, 2014

Tudo tão triste, e o mais triste é não ter tristeza alguma. Agora vou-me ou me vão, na dúvida de Drummond.


Canção Final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.    

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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domingo, agosto 17, 2014

Drummond diz que se procurar bem, você acaba encontrando. Palavra de quem entende (e muito) do assunto.


Lembrete

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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domingo, agosto 10, 2014

Para Drummond, a falta que ama procura alguém que não há. É a falta ou ele que sente o sonho do verbo amar?


A falta que ama

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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domingo, agosto 03, 2014

Quem será essa Maria que não sabe nem se é sonho tanta alegria? E por que será que Manuel Bandeira cantou a sua canção?


A canção de Maria

Que é de ti, melancolia?
Onde estás, cuidados meus?
Sabei que a minha alegria
É toda vinda de Deus...
Deitei-me triste e sombria,
E amanheci como estou...
Tão contente! Todavia
Minha vida não mudou.
Acaso enquanto dormia
Esquecida de meus ais,
Um sonho bom me envolvia?
Se foi, não me lembro mais...
Mas se for sonho, devia
Ser bom demais para mim...
Senão, não me sentiria
Tão maravilhada assim.

Ó minha linda alegria,
Trégua dos cuidados meus,
Por que não vens todo dia,
Se és toda vinda de Deus?

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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sexta-feira, agosto 01, 2014

Yo no vengo a resolver nada, Yo vine aqui para cantar y que cantes conmigo. De Pablo Neruda para todos os insensatos desse mundo que sofre sem paz.


“Oda a la Paz”

Paz para los crepúsculos que vienen,
paz para el puente, paz para el vino,
paz para las letras que me buscan
y que en mi sangre suben enredando
el viejo canto con tierra y amores,
paz para la ciudad en la mañana
cuando despierta el pan, paz para el río
Mississippi, río de las raíces:
paz para la camisa de mi hermano,
paz en el libro como un sello de aire,
paz para el gran koljós de Kíev,
paz para las cenizas de estos muertos
y de estos otros muertos, paz para el hierro
negro de Brooklyn, paz para el cartero
de casa en casa como el dia,
paz para el coreógrafo que grita
con un embudo a las enredaderas,
paz para mi mano derecha,
que sólo quiere escribir Rosario:
paz para el boliviano secreto
como una piedra de estaño, paz
para que tú te cases, paz para todos
los aserraderos de Bío Bío,
paz para el corazón desgarrado
de España guerrillera:
paz para el pequeño Museo de Wyoming
en donde lo más dulce
es una almohada con un corazón bordado,
paz para el panadero y sus amores
y paz para la harina: paz
para todo el trigo que debe nacer,
para todo el amor que buscará follaje,
paz para todos los que viven: paz
para todas las tierras y las aguas.

Yo aquí me despido, vuelvo
a mi casa, en mis sueños,
vuelvo a la Patagonia en donde
el viento golpea los establos
y salpica hielo el Océano.
Soy nada más que un poeta: los amo a todos,
ando errante por el mundo que amo:
en mi patria encarcelan mineros
y los soldados mandan a los jueces.
Pero yo amo hasta las raíces
de mi pequeño país frío.
Si tuviera que morir mil veces
allí quiero morir:
si tuviera que nacer mil veces
allí quiero nacer,
cerca de la araucaria salvaje,
del vendaval del viento sur,
de las campanas recién compradas.
Que nadie piense en mí.
Pensemos en toda la tierra,
golpeando con amor en la mesa.
No quiero que vuelva la sangre
a empapar el pan, los frijoles,
la música: quiero que venga
conmigo el minero, la niña,
el abogado, el marinero,
el fabricante de muñecas,
que entremos al cine y salgamos
a beber el vino más rojo.

Yo no vengo a resolver nada.

Yo vine aquí para cantar
y para que cantes conmigo.  

Pablo Neruda                                                                                                      
(1904-1973)

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quarta-feira, julho 30, 2014

Seis ou treze coisas que Manoel Barros aprendeu sozinho. Uma lição de vida que vale a pena aprender também.



Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho.

1.
Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.

2.
Com cem anos de escória uma lata aprende a rezar.
Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite.
Insetos levam mais de cem anos para uma folha sê-los.
Uma pedra de arroio leva mais de cem anos para ter murmúrios.
Em seixal de cor seca estrelas pousam despidas.
Mariposas que pousam em osso de porco preferem melhor as cores tortas.
Com menos de três meses mosquitos completam a sua eternidade.
Um ente enfermo de árvore, com menos de cem anos, perde o contorno das folhas.
Aranha com olho de estame no lodo se despedra.
Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui.
Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe que os escorpiões de areia.
A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo.
Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno.
O vôo do jaburu é mais encorpado do que o vôo das horas.
Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele vagando por escórias...
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso.
Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, se embutem até o latejo.
Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está para ter — ela espicha os olhinhos para Deus.
De cada vinte calangos, enlanguescidos por estrelas, quinze perdem o rumo das grotas.
Todas estas informações têm soberba desimportância científica — como andar de costas.

3.
Ilhota de pedra no meio de um corixo é de nome sarã.
Amanhecer de um sarã tem gala! Eu assisto:
Martim-pescador, de repente, no alto da água, arregaça o cuzinho e solta sua isca de guspe.
Peixe vai ver o que foi aquele guspe: antepara!
De veloz arroio martim-pescador frecha na água, e num átimo sobe -
O peixe atravessado no bico!
As águas remansam e rezam.
Que esse martim-pescador é fela.

4.
Tem quatro teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo aguenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.

5.
A água passa por uma frase e por mim.
Macerações de sílabas, inflexões, elipses, refegos.
A boca desarruma os vocábulos na hora de falar
E os deixa em lanhos na beira da voz.

6.
O coró é um bicho abléfaro - e sem engonços.
Habita encostado nos termos que lhe referem.
Tem o corpo transparente e lambe o próprio oco na fortuna
de que esse oco ainda seja a placenta em que morou.
O coró se suficienta.
Devora-se como um prato azedo de formigas.
E lambe até o algodão do nariz em que está morto.

7.
O rio atravessou um besouro pelo meio - e uma falena.
Era um besouro de âmbar, hosco
E uma falena de Ocaso. O besouro
Enfiou na falena seu aguilhão
E a trouxe para seu esconderijo.
Depois esplendorou-a toda antes de comê-la.

8.
Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.

9.
De noite passarinho é órfão
para voar. Não enxerga
nem o pai das vacas
nem o adágio dos arroios.
Seu olho de ovo emaranha com folhas.
No escuro não sabe medir direção e trompa nos paus.
Passarinho é poeta de arrebol.

10.
Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a lesma deixa risquinhos lindos.
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma escorre...
Ela fode a pedra.
Ela precisa deste deserto para viver.

11.
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

12.
Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.

13.
Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, julho 27, 2014

Vamos, amor?


Amor

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

segunda-feira, julho 21, 2014

Round about midnight, por Paulo Leminski. Não é jazz, mas tem swing.


Round about midnight

um vulto suspeito
e o pulo de um susto
à solta no peito

no beco sem saída
caminhos a esmo
o leque de abismos
entre um eco
e seus mesmos

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski






domingo, julho 20, 2014

A espantosa realidade das cousas é a minha descoberta de todos os dias. Porque basta existir para se ser completo e eu nem sequer sou poeta: vejo.


A espantosa realidade das cousas


A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro,um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quarta-feira, julho 16, 2014

O vento varria as flores, as músicas, os sonhos, até as mulheres, no canto de Manuel Bandeira. E a vida dele ficava cada dia mais cheia, de tudo.


Canção do vento e da minha vida


O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
E varria as amizades...
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos...
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

terça-feira, julho 15, 2014

Para Álvaro de Campos, é uma grande vantagem trazer a alma virada do avesso. Ao menos, escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio...


Acaso


No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata.
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar.
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser...A rapariga loira?

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo
também afinal.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, junho 07, 2014

Fora de mim, fora de nós, no espaço, a música dolente de uma valsa. E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas, diz a dor de Vinicius de Moraes.


Suspensão

Fora de mim, fora de nós, no espaço, no vago
A música dolente de uma valsa
Em mim, profundamente em mim
A música dolente do teu corpo
E em tudo, vivendo o momento de todas as coisas
A música da noite iluminada.
O ritmo do teu corpo no meu corpo...
O giro suave da valsa longínqua, da valsa suspensa...
Meu peito vivendo teu peito
Meus olhos bebendo teus olhos, bebendo teu rosto...
E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes


No pensamento meu, amor, tu vives nua, toda nua, nos meus braços. E te amo como se ama um passarinho morto, na paixão de Manuel Bandeira.


Boda espiritual

Tu não estás comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a...afago-a
Ah, como a minha mão treme...Como ela é tua...

Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra nágua.

Gemes quase a chorar. Súplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso...

Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo...

E te amo como se ama um passarinho morto.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, junho 01, 2014

Álvaro de Campos diz que às vezes tem idéias felizes. E se pergunta: por que escrevi isto, onde fui buscar isto, de onde me veio isto?


Às vezes

Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, maio 25, 2014

Depois de muito pensar, Fernando Pessoa sente que ele há de ser quem vai chegar, para ser quem quer partir. E que viver é não conseguir.


Basta pensar em sentir


Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quarta-feira, maio 21, 2014

Subamos, subamos além, acima do além, subamos. E nós nos possuiremos e morreremos, alto, imensamente, imensamente alto, no convite de Vinicius de Moraes.



Os acrobatas

Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.

Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.

Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!

Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!

Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta.

Como no espasmo.

E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus

Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.

E morreremos
Morreremos alto, imensamente
IMENSAMENTE ALTO.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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segunda-feira, maio 19, 2014

Fernando Pessoa ouviu cantar um cego e a guitarra que estão a chorar. Mas ele também se sente um cego cantando na estrada, só que a estrada é maior e ele não pede nada.


O cego e a guitarra


O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, maio 11, 2014

Por que?


Para sempre


Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.

Por que Deus se lembra
 - mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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terça-feira, maio 06, 2014

Ceguinha, a boneca de pano rolou na sarjeta e o homem do lixo a levou. Nuinha, como quis Nosso Senhor.


Boneca de pano

Boneca de pano dos olhos de conta,
vestido de chita,
cabelo de fita,
cheinha de lã.
De dia, de noite, os olhos abertos,
olhando os bonecos que sabem marchar,
calungas de mola que sabem pular.
Boneca de pano que cai:
não se quebra, que custa um tostão.
Boneca de pano das meninas infelizes que
são guias de aleijados, que apanham pontas
de cigarro, que mendigam nas esquinas, coitadas!
Boneca de pano de rosto parado como essas meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã. -
Os olhos de conta caíram. Ceguinha
rolou na sarjeta. O homem do lixo a levou,
coberta de lama, nuinha,
como quis Nosso Senhor.

Jorge de Lima
(1893-1953)

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segunda-feira, maio 05, 2014

Entre os pequenos e os grandes lábios, os sábios ainda discutem se amor é troca ou entrega louca. Leminski também.


Donna mi priega 88

se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios
no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?
a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

domingo, maio 04, 2014

Vinicius de Moraes nunca foi um mergulhador, muito pelo contrário. Mas como mergulhava profundamente no corpo e na alma de uma mulher.


O mergulhador

Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.

És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.

Depois teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.

Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno...
Mas não sei... o ímpeto deste é doído e espanta
O outro me dava vida, este me mete medo.

Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.

E ponho-me a cismar… - mulher, como te expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!

Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço.

E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.

Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.

Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque exato e frêmito.

Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.

Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
E me afogar de amor e chorar e chorar.

Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.

Por isso - isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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terça-feira, abril 29, 2014

Para Affonso Romano de Sant'Anna um corpo é mais que tudo. O corpo é onde e a vida é quando.


Definição

1

Um corpo não é um fruto,
embora em tudo se assemelhem:
densa forma,
oculto gosto,
cinco letras
e um pressuposto
poder de vida.

Um corpo é mais que um fruto
que se plante,
que se colha
ou se degluta:

um corpo
é um corpo,
e um corpo
é luta.

Um corpo não é um potro,
embora assim se manifeste:
pêlos mansos,
membros ágeis,
sal na boca
e um desejo
verde pelos campos.

Um corpo é mais que um potro
que pelos prados
e currais se dome:
um corpo
é um corpo,
e um corpo
é fome.

Nem chama
que se anule,
nem espada
em duplo gume
ou máquina
de estrume.

Um corpo
é mais que tudo:
mais que a chave,
mais que a forma,
mais que o leme,
mais que o açude.

Um corpo
é mais que tudo:
é a própria imagem
que eu não pude.

2

O corpo é onde
é carne:

O corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

O corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

O corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

O corpo é onde
é cal:

O corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

domingo, abril 27, 2014

Viver, era apenas isso, era isso, mais nada? Drummond vivendo em versos a angústia do Homem.


Viver

Mas era apenas isso,
era isso mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso,
uma noção de porta,
o projeto de abri-la
sem haver outro lado?

O projeto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade


sexta-feira, abril 25, 2014

Um apaixonado Augusto Frederico Schmidt disse à mulher amada: eu nem quero te amar, porque te amo demais. E o poeta se perdeu na dialética do amor.


De amor

Chegaria tímido e olharia tua casa,
A tua casa iluminada.
Teria vindo por caminhos longos
Atravessando noites e mais noites.

Olharia de longe o teu jardim.
Um ar fresco de quietação e repouso
Acalmaria a minha febre
E amansaria o meu coração aflito.

Ninguém saberia do meu amor:
Seria manso como as lágrimas,
Como as lágrimas de despedida.

Meu amor seria leve como as sombras.

Tanto receio de te amar, tanto receio...
A sombra do meu amor
Poderia agitar teu sono, pertubar o teu sossego...

Eu nem quero te amar, porque te amo demais.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)


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quinta-feira, abril 24, 2014

Na grande sala escura, só teus olhos existem para os meus. Para Guilherme de Almeida, olhos cor de romance e de aventura, longos como um adeus.


Cinema

Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.

E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
são bandidos e heróis;

são lágrimas e risos;
são mulheres com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...

É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quarta-feira, abril 23, 2014

Em sua canção para poder viver, Cassiano Ricardo diz tudo que ela precisava ouvir. Mesmo que peça mais um bis, "ao palco"!


Canção para poder viver

Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.

Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água.

E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa.

Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!

Cassiano Ricardo
(1894-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

quarta-feira, abril 16, 2014

Se o mundo dura tanto e eu tão pouco, importa pouco se ele não for eterno. É o que diz Ferreira Gullar sobre a relativa eternidade.


A relativa eternidade

Cruzo a rua e vejo
sobre a montanha
que se ergue no horizonte
para além da Lagoa
nuvens matinais
iluminadas
contra um céu muito azul

como na primeira manhã do mundo 

(ainda que
em todos os dias do ano
quando faz sol
essa festa matinal se tenha repetido
por séculos)

mas pouco importa:
é hoje manhã pela primeira vez

ainda que
antes de terem aqui chegado os portugueses
já ali estivessem a montanha
o céu azul
e as nuvens a se esgarçarem

quer houvesse
ou não
(como agora)
alguém para vê-los

e então me digo:
se o mundo dura tanto
e eu tão pouco
importa pouco
se ele não for eterno

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

terça-feira, abril 15, 2014

Só quem ama pode ser capaz de ouvir e entender estrelas. Quem disse foi o Príncipe dos Poetas.


Ouvir Estrelas

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

Olavo Bilac
(1865-1918)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

domingo, abril 13, 2014

Álvaro de Campos diz que nunca voltará, nunca voltará porque nunca se volta. Porque o lugar a que se volta é sempre outro.


Là-bas, je ne sais où

Véspera de viagem, campainha... 
Não me sobreavisem estridentemente!
 
Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho 
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro 
Do comboio definitivo, 
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago, 
Antes de pôr no estribo um pé 
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir. 
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje, 
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida. 
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela? 
Que importa?   
Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
 
Sabe-me a náusea próxima o cigarro.  O comboio já partiu da outra estação... 
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim, 
Minha família abstrata e impossível... 
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida! 
Ficar como um volume rotulado esquecido, 
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha. 
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida — 
"E esta?  Então não houve um tipo que deixou isto aqui?" — 
Ficar só a pensar em partir, 
Ficar e ter razão, 
Ficar e morrer menos ...
 
Vou para o futuro como para um exame difícil. 
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?
 
Já me vejo na estação até aqui simples metáfora. 
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável. 
Vê-se — dizem — que tenho vivido no estrangeiro.
 
Os meus modos são de homem educado, evidentemente. 
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil. 
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.
 
Partir! 
Nunca voltarei, 
Nunca voltarei porque nunca se volta.   
O lugar a que se volta é sempre outro,  
A gare a que se volta é outra. 
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.
 

Partir!  Meu Deus, partir!  Tenho medo de partir!...


Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, abril 12, 2014

Pare Manoel de Barros, Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros. Ele desejava atingir a pureza de não saber mais nada.


Miró

Para atingir sua expressão fontana
Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas
que aprendera nos livros.
Desejava atingir a pureza de não saber mais nada.
Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo
do quintal à busca de uma árvore.
E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo
que havia aprendido nos livros.
Depois depositava sobre o enterro uma nobre
mijada florestal.
Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de
insetos, cascas de cigarra etc
A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia
de cores.
Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um
dejeto de mosca deixado na tela.
Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha
escura.
O escuro o iluminava.

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, abril 06, 2014

Tive um passado, tenho um presente, terei um futuro? Cheio de todos os cansaços, quantos o mundo pode dar, Álvaro de Campos quer que a vida pare.


Eu, eu mesmo


Eu, eu mesmo...
Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. -
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito ? Incógnito ? Divino ?
Não sei...
Eu...
Tive um passado ? Sem dúvida...
Tenho um presente ? Sem dúvida...
Terei um futuro ? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, abril 05, 2014

Quem bate mais na porta, quem parte ou quem volta? Leminski e as ambiguidades do amor.


Volta em aberto

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem volta?

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_leminski

sexta-feira, abril 04, 2014

Conheço tudo, conheço tudo, menos a mim. Mas depois que chegaste de algum céu, posso afirmar que não conheço nada, nem mesmo a mim, confessa Ferreira Gullar.


Menos a mim

Conheço a aurora com seu desatino
Conheço o amanhecer com o seu tesouro
Conheço as andorinhas sem destino
Conheço rios sem desaguadouros
Conheço o medo do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Conheço o ódio e seus argumentos
Conheço o mar e suas ventanias
Conheço a esperança e seus tormentos
Conheço o inferno e suas alegrias
Conheço a perda do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Mas depois que chegaste de algum céu
Com teu corpo de sonho e margarida
Pra afinal revelar-me quem sou eu
Posso afirmar enfim
Que não conheço nada desta vida
Que não conheço nada, nada, nada
Nem mesmo a mim.

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar