Balada do homem de fora
Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.
O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.
No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.
O trato dos outros tem
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.
O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.
Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.
A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.
Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.
Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.
Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.
Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.
Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.
O trem dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.
Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.
Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.
Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.
Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.
Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?
Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".
Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".
Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.
Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.
Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.
Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...
A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.
Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.
O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos
Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.
O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.
No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.
O trato dos outros tem
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.
O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.
Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.
A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.
Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.
Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.
Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.
Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.
Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.
O trem dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.
Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.
Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.
Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.
Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.
Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?
Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".
Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".
Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.
Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.
Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.
Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...
A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.
Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.
O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos
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