segunda-feira, dezembro 31, 2012

Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada, e sejamos também irmãos e amigos. Poema de Ano-Novo, por Vinicius de Moraes.


Poema de Ano-Novo


É preciso que nos encontremos diante do amor como as árvores fêmeas
cuja raiz é a mesma e se perde na terra profana
É preciso...a tristeza está no fundo de todos os sentimentos
como a lágrima no fundo de todos os olhos
Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada, e sejamos também irmãos e amigos.

É preciso que levemos diante de nós o retrato das nossas almas
como se fôssemos a um tempo a Verônica e o Crucificado
Eu sou o eterno homem e hoje que a dor fecunda o tempo
eu sinto mais que nunca a vontade de fechar os braços sobre a minha miséria.
Fiquemos como duas crianças pensativas sentadas numa escada
- todos serão os peregrinos e apenas nós os contemplados.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Vai, ano velho, vai de vez, leva tudo. Vem Ano Novo, vem veloz, agora é recomeçar, a utopia é urgente, na esperança de Affonso Romano de Sant' Anna.


Vai, ano velho


Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

Affonso Romano de Sant'Anna

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

Drummond diz que para ganhar um ano novo que mereça este nome,você tem de fazê-lo novo. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.


Receita de Ano Novo 


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ver,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta ou recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Para isso fomos feitos, para lembrar e ser lembrados. Poema de Natal, de Vinicius de Moraes, por ele mesmo.




Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

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quarta-feira, dezembro 19, 2012

Depois de tão isósceles, Leminski acordou bemol. Faz sentido?


Acordei bemol

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

terça-feira, dezembro 18, 2012

Bernardo da Mata seguia umas pregações do Padre Antonio Vieira. Para Manoel de Barros, esse Bernardo tem cacoete para poeta.


Pois pois

O Padre Antônio Vieira pregava de encostar as orelhas na boca do bárbaro.
Que para ouvir as vozes do chão
Que para ouvir a fala das águas
Que para ouvir o silêncio das pedras
Que para ouvir o crescimento das árvores
E as origens do Ser. Pois Pois.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir as vozes do chão
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos campos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, os escutamentos de Bernardo.
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para poeta.

Manoel de Barros
(1916)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, dezembro 16, 2012

A cavalo de galope, a cavalo de galope, lá vem a morte chegando. E Drummond se sente sobrante e oco porque a desembestada está levando seus amigos, seus pais e irmãos, seus amores, sua vida.


A morte a cavalo

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a cavalo de galope
lá vem a morte chegando.

A cavalo de galope
a cavalo de galope
a morte numa laçada
vai levando meus amigos.

A cavalo de galope
depois de levar meus pais
a morte sem prazo ou norte
vai levando meus irmãos.

A morte sem avisar
a cavalo de galope
sem dar tempo de escondê-los
vai levando meus amores.

A morte desembestada
com quatro patas de ferro
a cavalo de galope
foi levando minha vida.

A morte de tão depressa
nem repara no que fez.
A cavalo de galope
a cavalo de galope

me deixou sobrante e oco.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade


segunda-feira, dezembro 10, 2012

O touro só tem a sua vida, os homens tem seus cavalos, vai-se o touro manco, morto mas não desonrado. Assim, em versos de orgulho e dor, Ariano Suassuna conta a morte do seu pai, assassinado a mando de um coronel do sertão.


A morte do touro Mão de Pau*


Corre a Serra Joana Gomes
galope desesperado:
um touro se defendendo,
homens querendo humilhá-lo,
um touro com sua vida,
os homens em seus cavalos.
Cortava o gume das pedras
um bramido angustiado,
se quebrava nas catingas
um galope surdo e pardo
e os cascos pretos soavam
nas pedras de fogo alado,
enquanto o clarim da morte,
ao vento seco e queimado,
na poeira avermelhada
envolvia os velhos cardos.
Rasgavam a serra bruta
aboios mal arquejados
e, nas trilhas já cobertas
pelo pó quente e dourado,
um gemido de desgraça,
um gemido angustiado:
- "Adeus, Lagoa dos Velhos!
adeus, vazante do gado!
adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
O touro só tem a vida:
os homens têm seus cavalos"!
O galopar recrescia:
brilhavam ferrões farpados
e algemas de baraúna
para o touro preparados.
Seu Sabino tinha dito:
- "Ele há de vir amarrado"!
Miguel e Antônio Rodrigues,
de guarda-peito e encourados,
na frente do grupo vinham,
montados em seus cavalos
de pernas finas, ligeiras,
ambos de prata arreados.
E, logo à frente, corria
o grande touro marcado,
manquejando sangue limpo
nos caminhos mal rasgados,
cortadas as bravas ancas
por ferrões ensanguentados.
A Serra se despenhava
nas asas de seus penhascos
e a respiração fogosa
dos dois fogosos cavalos
já requeimava, de perto,
as ancas do manco macho
quando ele, vendo a desonra,
tentando subjugá-lo,
mancando da mão preada
subiu num rochedo pardo:
Num grito, todos pararam,
pelo horror paralisados,
pois sempre, ao rebanho, espanta
que um touro do nosso gado
às teias da fama-negra
prefira o gume do fado.
E mal seus perseguidores
esbarravam seus cavalos,
viram o manco selvagem
saltar do rochedo pardo:
-"Adeus, Lagoa dos Velhos!
Adeus, vazante do gado!
Adeus, Serra Joana Gomes
e cacimba do Salgado!
Assim vai-se o touro manco,
morto mas não desonrado"!
Silêncio. A Serra calou-se
no poente ensanguentado.
Calou-se a voz dos aboios,
cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
deste sertão assombrado,
o touro sem sua vida,
os homens em seus cavalos.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

*Ariano Suassuna escreveu este poema em memória de seu pai, assassinado em 1930"

domingo, dezembro 09, 2012

Que coisa distante está perto de mim? Sei que estou sentindo a boca sorrindo aos sonhos que sou, é tudo o que sabe Fernando Pessoa,


Que coisa distante

Que coisa distante
Está perto de mim?
Que brisa fragrante
Me vem neste instante
De ignoto jardim?

Se alguém mo dissesse,
Não quisera crer.
Mas sinto-o, e é esse
O ar bom que me tece
Visões sem as ver.

Não sei se é dormindo
Ou alheado que estou:
Sei que estou sentindo
A boca sorrindo
Aos sonhos que sou.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Manhãzinha, a italiana vem na praia do ribeirão, respira, afinal se espreguiça erguendo pros anjos o colo criador. E Mário de Andrade está lá, de olho nela.


Arraiada

Manhãzinha
A italiana vem na praia do ribeirão.
Vem derreada  e com a sombra do sono no canto dos olhos.
Põe a trouxa de roupas na lapa
E erguida fica um momentinho assim no Sol.
A narina dela mexe que nem peito de rolinha.
Mastiga a boca sem lavar
Que tem um visgo de banana e de café.
Respira
Afinal se espreguiça
Erguendo pros anjos o colo criador.

Mário de Andrade
(1892-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

quinta-feira, dezembro 06, 2012

De um lado e doutro, terra e gente. Para Miguel Torga, lados e filhos desta mesma serra, o mesmo céu os olha e os consente.


Fronteira

De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente. doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.

O mesmo beijo aqui; o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcatéia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.

Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.

Miguel Torga 
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

quarta-feira, dezembro 05, 2012

Adeus, adeus, adeus! Para Augusto dos Anjos no mundo tudo acabou-se, apenas restam mágoas.


Adeus, adeus, adeus! 

Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,
Saí deixando morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela estrada soluçando.

Perto, um ribeiro claro murmurando
Muito baixinho como quem chorava,
Parecia o ribeiro estar chorando
As lágrimas que eu triste gotejava.

Súbito ecoou do sino o som profundo!
Adeus! - eu disse. Para mim no mundo
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.

Mas no mistério astral da noute bela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No marulhar monótono das águas!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

terça-feira, dezembro 04, 2012

A mulher que Guilherme de Almeida pensava amar um dia deixou uma triste lembrança. E ele nem a viu passar, tão perdido que estava em seu sonho dourado.


Essa que eu hei de amar...

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia
será tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer luz e calor a essa alma escura e fria.

E quando ela passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de acordar no coração, que vela…
E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz… — Tudo isso eu me dizia,

Quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,
e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste…

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,
mas ias tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!"

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

segunda-feira, dezembro 03, 2012

João Cabral de Melo jogou futebol e sempre foi um apaixonado torcedor do América do Recife. A famosa dor de cabeça fez com que ele parasse de jogar, mas nem o desábito de vencer o fez deixar de torcer pelo seu clube do coração.


O torcedor do América F.C.

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória
não dá a vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.

João Cabral de Melo
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

domingo, dezembro 02, 2012

Declaração de amor de Drummond, por Drummond. Só ele mesmo...





Minha flor minha flor minha flor.
Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro.
Minha peônia.
Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão.
Minha gérbera.
Minha clívia.
Meu cimbídio.
Flor flor flor.
Floramarílis. Floranêmona. Florazálea.
Clematite minha.
Catléia delfínio estrelítzia.
Minha hortensegerânea.
Ah, meu nenúfar.
Rododendro e crisântemo e junquilho meus.
Meu ciclâmen.
Macieira-minha-do-japão.
Calceolária minha.
Daliabegônia minha.
Forsitiaíris tuliparrosa minhas.
Violeta...
Amor-mais-que-perfeito.
Minha urze.
Meu cravo-pessoal-de-defunto.
Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.

Carlos Drummond de Andrade
(1895-1974)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade