sexta-feira, junho 29, 2012

Para Affonso Romano, Picasso erra quando pinta e erra quando ama. Ele erra, mas nele, o erro mais que erro, é errância.


Errando no Museu Picasso

Picasso
erra
quando pinta
e erra
quando ama.

Mas quando erra
erra
violenta e
generosamente,
erra
com exuberante
arrogância,
erra
como o touro erra
seu papel de vítima,
sangrando
quem, por muito amar, fere
e sai ovacionado
com banderilhas na carne.

Pintor do excesso
e exuberância,
Picasso
é extravagância.
Ele erra,
mas nele,
o erro
mais que erro
- é errância.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna



quinta-feira, junho 28, 2012

Era só um hábito antigo que aquele homem tinha. Mas foi terrível a vingança da porta, nos versos do parnasiano Alberto de Oliveira.


A vingança da porta

Era um hábito antigo que ele tinha:
Entrar dando com a porta nos batentes.
- Que te fez essa porta? a mulher vinha
E interrogava. Ele cerrando os dentes:

Nada! Traze o jantar! - Mas à noitinha
Calmava-se; feliz, os inocentes
Olhos revê da filha, a cabecinha
Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.

Uma vez, ao tornar à casa,  quando
Erguia a aldraba, o coração lhe fala:
Entra mais devagar.. - pára, hesitando...

Nisto nos gonzos range a velha porta,
Ri-se, escancara-se. E ele se vê na sala,
A mulher como doida e a filha morta.

Alberto de Oliveira
(1857-1937)

Mais sobre Alberto de Oliveira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_de_Oliveira

quarta-feira, junho 27, 2012

O que será um artefato nipônico para Adélia Prado? A borboleta pousada ou...?


Artefato nipônico

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.

Adélia Prado
(1935 )

Mais sobre Adelia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

terça-feira, junho 26, 2012

Eu te amo, em tudo que estás presente, em tudo que estás ausente. Assim é o amor de Adalgisa Nery.


Eu te amo

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita do tempo
Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Nery
(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

segunda-feira, junho 25, 2012

Homem: Acorda! Em seu grito na antecâmera, Ana Cristina Cesar quer pensar ao apalpar, dizer ao conviver, parir ao repartir.


Deus na antecâmara

Mereço (merecemos, meretrizes)
Perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
Socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)

Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sanguinária

(sangue e amor se aconchegando
horas atrás de hora)

Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero parir ao repartir

Filho
Pai
e
Fogo
DE-LI-BE-RA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando

HOMEM: ACORDA!

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar 

domingo, junho 24, 2012

O poeta procura desencaixotar as suas emoções verdadeiras. Desembrulhar-se e ser ele, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a Natureza produziu.



Deste modo

Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou não calha.
Podendo às vezes dizer o que penso.
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas.
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal.
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


sábado, junho 23, 2012

Para Abgar Renault, felicidade é um substantivo complicado, metafísico, que cabe todo na beleza clara de alguém que ele sabe. E no sorriso sem dentes de seu filho.


Felicidade

Felicidade - o título tão comprido deste poema tão pequeno!
Felicidade - substantivo comum, feminino, singular, polissilábico.
Tão polissilábico. Tão singular. Tão feminino. E tão pouco comum.
Substantivo complicado, metafísico,
que cabe todo
na beleza clara de alguém que eu sei
e no sorriso sem dentes de meu filho.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

quinta-feira, junho 21, 2012

Bebe e celebra, desata nas veias a primavera, coração, bate e combate, o peito bronze de guerra. Assim, Vladimir Mayakovsky canta em versos a marcha para a vitória da revolução.


Nossa marcha

Troa na praça o tumulto!
Altivos píncaros - testas!
Águas de um novo dilúvio
lavando os confins da terra.

Touro mouro dos meus dias.
Lenta carreta dos anos.
Deus? Adeus. Uma corrida.
Coração? Tambor rufando.

Que metal será mais santo?
Balas-vespas nos atingem?
Nosso arsenal é o canto.
Metal? São timbres que tinem.

Desdobra o lençol dos dias
cama verde, campo escampo.
Arco-íris arcoirisa
o corcel veloz do tempo.

O céu tem tédio de estrelas!
Sem ele, tecemos hinos.
Ursa-Maior, anda, ordena,
para nós um céu de vivos.

Beba e celebre! Desata
nas veias a primavera!
Coração, bate e combate!
O peito - bronze de guerra.

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

segunda-feira, junho 18, 2012

Tendo tudo para ser feliz, Vinicius de Moraes acontece de ser um triste. Dá para entender o momento do poeta?


Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

domingo, junho 17, 2012

Thiago de Mello não aprende a lição de conviver no mundo feroz dos homens. Frente ao poder que se alimenta da fome dos humilhados, ele não se submete.


Não aprendo a lição

A lição de conviver,
senão de sobreviver
no mundo feroz dos homens,
me ensina que não convém
permitir que o tempo injusto
e a vida iníqua me impeçam
de dormir tranquilamente.
Pois sucede que não durmo.
Frente à verdade ferida
pelos guardiães da injustiça,
ao escárnio da opulência
e o poderio dourado
cujo esplendor se alimenta
da fome dos humilhados,
o melhor é acostumar-se,
o mundo foi sempre assim.
Contudo, não me acostumo.
A lição persiste sábia:
convém cabeça, cuidado,
que as engrenagens esmagam
o sonho que não se submete.
E que a razão prevaleça
vigilante e não conceda
espaços para a emoção.
Perante a vida ofendida
não vale a indignação.
Complexas são as causas
do desamparo do povo.
Mas não aprendo a lição.
Concedo que me comovo.

Thiago de Mello
(1921)

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

sábado, junho 16, 2012

Porque os outros se compram e se vendem, porque os outros se calam, mas tu não. Nos porquês, Sophia de Mello Breyner separa os homens dos canalhas.


Porque


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

quinta-feira, junho 14, 2012

Leminski pede calma, calma ao coração. Afinal, diz ele, logo mais a gente goza.


Sossegue coração

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa
Paulo Leminski
(1944-1989)

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quarta-feira, junho 13, 2012

Ao coração que sofre, Olavo Bilac diz que não basta ser amado. Seu desejo é ter na boca a doçura do beijo do seu amor.


Ao coração que sofre

Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.

Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;

E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

segunda-feira, junho 11, 2012

Para Nuno Júdice, podíamos saber um pouco mais da morte, da vida e do amor. Mas não seria isso que nos faria descobrir que nada sabemos do amor.



Princípios

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice
(1949)

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domingo, junho 10, 2012

Manoel de Barros é um apanhador de desperdícios e seu quintal é maior que o mundo. Mas ele só usa a palavra para compor seus silêncios.


O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

sábado, junho 09, 2012

Lya Luft não tem mais os olhos de menina nem corpo adolescente. Mas pode dar ao seu amor um mar cujas correntes não levam destroços e o sonho das sereias.



Canção na Plenitude

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força -- que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés -- mesmo se fogem -- retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Lya Luft
(1938)

Mais sobre em Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

quinta-feira, junho 07, 2012

Nos versos de João Cabral de Melo, a vida vai-se indo aos pouquinhos. E o homem muda de cama, vai para o caixão.


Como a morte se infiltra

Certo dia, não se levanta
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz por que:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
E nem pode apoiar-se nela.

Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

Outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração ?
Muda de cama. Eis seu caixão.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

quarta-feira, junho 06, 2012

Não acredite em Fadinhas, muito menos com cacete. Moral da estória, segundo Hilda Hilst.


Filó, a fadinha lésbica

Ela era gorda e miúda.
Tinha pezinhos redondos.
A cona era peluda
Igual à mão de um mono.
Alegrinha e vivaz
Feito andorinha
Às tardes vestia-se
Como um rapaz
Para enganar mocinhas.
Chamavam-lhe "Filó, a lésbica fadinha".

Em tudo que tocava
Deixava sua marca registrada:
Uma estrelinha cor de maravilha
Fúcsia, bordô
Ninguém sabia o nome daquela cô.
Metia o dedo
Em todas as xerecas: loiras, pretas
Dizia-se até...
Que escarafunchava bonecas.
Bulia, beliscava
Como quem sabia
O que um dedo faz
Desde que nascia.

Mas à noite... quando dormia...
Peidava, rugia... e...
Nascia-lhe um bastão grosso
De início igual a um caroço
Depois...
Ia estufando, crescendo
E virava um troço
Lilás
Fúcsia
Bordô
Ninguém sabia a cô do troço
Da Fadinha Filô.

Faziam fila na Vila.
Falada "Vila do Troço".
Famosa nas Oropa
Oiapoc ao Chuí
Todo mundo tomava
Um bastão no oiti.
Era um gozo gozoso
Trevoso, gostoso
Um arrepião nos meio!

Mocinhas, marmanjões
Ressecadas velhinhas
Todo mundo gemia e chorava
De pura alegria
Na Vila do Troço.

Até que um belo dia...
Um cara troncudão
Com focinho de tira
De beiço bordô, fúcsia ou maravilha
(ninguém sabia o nome daquela cô)
Seqüestrou Fadinha
E foi morar na Ilha.
Nem barco, nem ponte
O troncudão nadando feito rinoceronte
Carregava Fadinha.
De pernas abertas
Nas costas do gigante

Pela primeira vez
Na sua vidinha
Filó estrebuchava
Revirando os óinho
Enquanto veloz veloz
O troncudão nadava.

A Vila do Troço
Ficou triste, vazia
Sorumbática, tétrica
Pois nunca mais se viu
Filó, a Fadinha lésbica
Que à noite virava fera
E peidava e rugia
E nascia-lhe um troço
Fúcsia
Lilás
Maravilha
Bordô
Até hoje ninguém conhece
O nome daquela cô.

E nunca mais se viu
Alguém-Fantasia
Que deixava uma estrela
Em tudo que tocava
E um rombo na bunda
De quem se apaixonava.

Moral da estória, em relação à Fadinha:
Quando menos se espera, tudo reverbera.

Moral da estória, em relação ao morador
da Vila do Troço:
Não acredite em Fadinhas.
Muito menos com cacete.
Ou somem feito andorinhas
Ou te deixam cacoetes.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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terça-feira, junho 05, 2012

Partiste, mas a alegria ainda ficou no quarto. No ninho morto, calcado por teu corpo no leito desfeito, na saudade de Guimarães Rosa.


Ausência

Na almofada branca,
as sandálias sonham
com a seda dos teus pés...

Partiste..
Mas a alegria ainda ficou no quarto,
talvez no ninho morno, calcado por teu corpo
no leito desfeito...

Entardece...
Esfuziante e verde,
um beija-flor entrou pela janela,
(pensei que a tua boca ainda estivesse aqui...)

Do frasco aberto,
vestidas de vespas,
voam violetas...

E na almofada de seda,
beijo as sandálias brancas.
vazias dos teus pés.

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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domingo, junho 03, 2012

Há doenças piores que as doenças, há dores que não doem mas que são dolorosas mais que as outras. Por tudo isso, dá-me mais vinho, porque a vida é nada, grita Fernando Pessoa em versos carregados de dor.


Há doenças piores que as doenças

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, junho 02, 2012

Os amantes não tinham dinheiro. Mas em cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e penetrava nos espaços.


Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos,
mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade