terça-feira, setembro 05, 2006

Nela viviam todas as vidas, em sua vida a vida mera das obscuras.


Todas as vidas


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Cora Coralina
(1889-1995)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

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