sexta-feira, agosto 30, 2013

Miguel Torga admite que livre não é, mas quer a liberdade. E a traz dentro de si como um destino.


Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.

Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga
(1907-1995)

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quarta-feira, agosto 28, 2013

Devagar, peça mais, e mais, e mais. Assim é a poesia de Ana Cristina César, inquieta e complexa como sua alma.


Flores do mais

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano da boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

Ana Cristina César
(1952-1983)
Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

terça-feira, agosto 27, 2013

Para Augusto Frederico Schmidt, ela não é apenas o seu amor. Ela é tantas coisas, é tudo que é simples e tranquilo, é o bom fogo que Deus lhe deu.


Poesia a galope

Não és apenas o meu amor:
És meu trigo batido,
És a substância de meu pão.

Não és apenas o meu amor,
Mas o calor volta contigo
E voltam as flores sorrindo na terra.

Não és apenas o meu amor:
És uma janela sobre a alba
E me dás pássaros e música.

Não és apenas o meu amor:
És o fim da grande caminhada
Com as primeiras paisagens amigas.

Não és apenas o meu amor:
És a infância madura, o silêncio
Cheio de música, a primeira palpitação,
O sinal da pequena esperança sorrindo
Depois de um longo tempo impenetrável.
E tudo que é simples e tranqüilo:
És o bom fogo que Deus me deu.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

domingo, agosto 25, 2013

Manuel Bandeira dizia fazer versos como quem chora, como quem morre. Porque qualquer forma de amor vale a pena, vale amar.


Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!


Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

sexta-feira, agosto 23, 2013

Cora Coralina quis ser um dia jardineira de um coração. Mas como coração é terra que ninguém vê, porta fechada foi o que ela encontrou.



Coração é terra que ninguém vê

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.
Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.
Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão
Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

Cora Coralina
(1889-1985)

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quinta-feira, agosto 22, 2013

Em um de seus poemas mais críticos, Álvaro de Campos se revolta num comício dentro de sua alma. E repete: Merda! Sou lúcido.



Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem,
e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo. Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido! Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
 

quarta-feira, agosto 21, 2013

As lágrimas que Florbela chora, ninguém as vê brotar dentro da alma. E ninguém as vê cair dentro dela.


Lágrimas ocultas 

Se me ponho a cismar em outras eras
em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

segunda-feira, agosto 19, 2013

Para Jorge de Lima há, não sabe onde, outros ares e outras serras, outros limites. E diz, adeus irmã, que é que chora lá fora, a humanidade ou qualquer fonte?


Poema da irmã

Ó irmã
agora que as noites vêm cedo
e paira por tudo
uma tristeza enorme
e o silêncio é tão longo
que os cães enlouquecem nas ruas,
irmã, vem me relembrar
que crescemos juntos
quando os dias eram compridos e diferentes.
Irmã, se tu sabes signos
para mudar o tempo, vem.
Vem que eu quero fugir
para outras paragens
onde as gaivotas sejam menos inúteis
e haja um coração em cada porto;
e os pássaros do mar
tão lavados e tão alvos
e tão lentos e tão sabedores de viagens
venham esvoaçar
sobre o meu cachimbo
em que os cometas do céu se apagaram.
Irmã, nos meus ritmos
há colegas que gritam:
Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas,
vagabundos, crianças,
operários, leprosos e prostitutas que
se lembram ainda de suas orações familiares.

Há não sei onde outros ares e outras serras,
outros limites, adeus irmã.
Ó que noite longa,
Ó que noite tão longa!
Que é que chora lá fora?
— A humanidade ou qualquer fonte?

Jorge de Lima
(1893-1953)

Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

domingo, agosto 18, 2013

Sinto que o tempo sobre mim abate sua mão pesada. Há muito suspeitei o velho em mim, reconhece Drummond com uma certa melancolia.


Versos à boca da noite

Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? Sempre mentiroso?
Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim.
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia!
Usar de novo minha adoração
meu grito, minha fome...Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida
como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio,
a melancolia, amada e repelida,

e tanta indecisão entre dois mares,
entre duas mulheres, duas roupas.
Toda essa mão para fazer um gesto
que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo
selada por arbustos agressivos.
(Um homem se completa sem amor,
se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a idéia de passado
visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa que miras de passagem,
estará no Acre? na Argentina? em ti?
que palavra escutaste, e onde, quando?
seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,
voa talvez para a Bahia e deixa
outros pedaços, dissolvidos no atlas,
em País-do-riso e em tua alma preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las
num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria
baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelo.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, agosto 16, 2013

Quem se cala quando eu me calei, não poderá morrer sem dizer tudo. De boca fechada, diz José Saramago.


De boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago
(1922-2010)

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, agosto 14, 2013

O amor do poeta por Maria é sempre o mesmo, as andorinhas é que mudam. A última que passou fez cocô no seu pobre fio de vida.


Poeminha Sentimental

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

segunda-feira, agosto 12, 2013

Thiago de Mello não duvida do amor. Duvida dele mesmo, do jeito mais imperfeito que ainda tem de amar.


Amor mais que imperfeito


Não do amor. De mim duvido.
Do jeito mais que imperfeito
que ainda tenho de amar.

Com frequência reconheço
a minha mão escondida
dentro da mão que recebe
a rosa de amor que dou.

Espiando o meu próprio olhar,
escondido atrás estou
dos olhos com que me vês.
Comigo mesmo reparto
o que pretende ser dádiva,
mas de mim não se desprende.

Por mais que me prolongue
no ser que me reparte,
de repente me sinto
o dono da alegria
que estremece a pele
e faz nascer luas
no corpo que abraço.

Não do amor. De mim duvido
quando no centro mais claro
da ternura que te invento
engasto um gosto de preço.
Mesmo sabendo que o prêmio
do amor é apenas amar.

Thiago de Mello


Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

domingo, agosto 11, 2013

Para Vinicius, o Incriado de Deus não pode fugir à carne e à memória porque nada pode permanecer para a vida. Só ele, parado dentro do tempo, passando, passando.


O incriado

  
Distantes estão os caminhos que vão para o tempo - outro luar eu vi passar na altura
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna espera
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se amando
E no meu ser todas as agitações se anulam como vozes dos campos moribundos.
Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro?
Não há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas.
Nem plácidas visões restam aos olhos - só o passado surge se a dor surge
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para Ter vida
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só, em busca de Deus.
Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo
No entanto, como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema franqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna.
Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem humana
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas.
Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas as idades
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças...
Quando meu corpo precisou repousar, eu repousei,
quando minha boca ficou sedenta, eu bebi
Quando meu ser pediu a carne, eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo.
Longe está o espaço onde existem os grandes vôos e onde a música vibra solta
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes vôos solitários
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à madrugada.
Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne
Mas boa é a companhia errante que traz o esquecimento de um minuto
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado.
Onde os cantos longínquos do oceano?...
Sobre a espessura verde eu me debruço e busco o infinito
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores -
São jovens que o terno amor surpreendeu
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o perfume da flor morta.
Muito forte sou para odiar nada senão a vida
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada valho.
Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou.
De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos sentimentos maus
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora...
Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando...
Eu caminhando... sobre meu corpo as árvores passando
Quem morreu se eu estou vivo, por que choram as árvores?
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu sei que estou vivo porque sofro.
Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo
Eu tenho o desvelo e a benção, mas sofro como um desesperado e nada posso
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos e das mãos
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca.
Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre o meu rosto
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho!
Ás vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno
Num sopro da suspensão e beleza passa e beija a fronte do homem parado
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa
Que palpita no ar fremente e envolve todos os gritos num só grito.
Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido.
Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude
No entanto, ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo.
Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memória
Eu sou como o velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo
No meu ser todas as agitações se anulam - nada permanece para a vida
Só eu permaneço parado dentro do tempo passando, passando, passando...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sexta-feira, agosto 09, 2013

Cecília pôs o seu sonho num navio e o navio em cima do mar. O sonho desapareceu no fundo do mar e ela ficou com os olhos secos e as mãos quebradas.


Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

segunda-feira, agosto 05, 2013

Quem nunca escreveu algo parecido em momento de paixão, não viveu um grande amor. De Oswald de Andrade, o "Secretário dos Amantes".


Secretário dos Amantes

I

Acabei de jantar um excelente jantar
116 francos
Quarto 120 francos com água encanada
Chauffage central
Vês que estou bem de finanças
Beijos e coisas de amor

II

Bestão querido
Estou sofrendo
Sabia que ia sofrer
Que tristeza este apartamento de hotel

III

Granada é triste sem ti
Apesar do sol de ouro
E das rosas vermelhas

IV

Mi pensamiento hacia Medina del Campo
Ahora Sevilla envuelta en oro pulverizado
Como una dádiva s mis ojos enamorados
Sin embargo que tarde la mia

V

Que alegria teu rádio
Fiquei tão contente
que fui à missa
Na igreja toda a gente me olhava
Ando desperdiçando beleza
Longe de ti

VI

Que distância!
Não choro
porque meus olhos ficam feios.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

domingo, agosto 04, 2013

Tenho mais almas que uma, há mais eus do que eu mesmo. Vivem em nós inúmeros, este é o sentimento de Ricardo Reis.


Vivem em nós inúmeros

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sexta-feira, agosto 02, 2013

Quase o amor, quase o triunfo e a chama, quase o princípio e o fim. Hoje de mim, só resta o desencanto das coisas que bebi mas não vivi, reconhece Mário de Sá-Carneiro.


Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh' alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que bebi mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

quinta-feira, agosto 01, 2013

Um poema de amor de Bocage. Por incrível que pareça, do mais puro amor.


A rosa

Tu, flor de Vénus,
Corada Rosa, 
Leda, fragrante, 
Pura, mimosa, 

Tu, que envergonhas 
As outras flores, 
Tens menos graça 
Que os meus amores. 

Tanto ao diurno 
Sol coruscante 
Cede a nocturna 
Lua inconstante, 

Quanto a Marília 
Té na pureza 
Tu, que és o mimo 
Da Natureza. 

O buliçoso, 
Cândido Amor 
Pôs-lhe nas faces 
Mais viva cor; 

Tu tens agudos 
Cruéis espinhos, 
Ela suaves 
Brandos carinhos; 

Tu não percebes 
Ternos desejos, 
Em vão Favónio 
Te dá mil beijos. 

Marília bela
Sente, respira, 
Meus doces versos 
Ouve, e suspira. 

A mãe das flores, 
A Primavera, 
Fica vaidosa 
Quando te gera; 

Porém Marília 
No mago riso 
Traz as delícias 
Do Paraíso. 

Amor que diga 
Qual é mais bela, 
Qual é mais pura, 
Se tu, ou ela; 

Que diga Vénus... 
Ela aí vem... 
Ai! Enganei-me, 
Que é o meu bem.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barbosa Du Bocage
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Maria_Barbosa_du_Bocage