quarta-feira, maio 29, 2013

Para Affonso Romano de Sant'Anna, os casais são tão iguais. Tão iguais que embora jurem um ao outro amor eterno sempre querem mais.


Balada dos casais

Os casais são tão iguais,
por isto se casam
e anunciam nos jornais.

Os casais são tão iguais,
por isto se beijam
fazem filhos, se separam
prometendo
não se casarem jamais.

Os casais são tão iguais,
que além de trocar fraldas,
tirar fotos, acabam se tornando
avós e pais.

Os casais são tão iguais,
que se amam e se insultam
e se matam na realidade
e nos filmes policiais.

Os casais são tão iguais,
que embora jurem um ao outro
amor eterno
sempre querem mais.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

terça-feira, maio 28, 2013

Camões diz que a vida já passou assaz contente. Quando ele tinha livre a vontade e o pensamento, sem receios de Amor nem da Ventura.


A vida já passei assaz contente

A vida já passei assaz contente;
livre tinha a vontade e o pensamento,
sem receios de Amor nem da Ventura.
Mas isto foi um bem de um só momento,
e à minha custa vejo claramente
que a vida não dá algum de muita dura.
No tempo em que eu vivia mais segura
de Amor e seu cuidado,
por me ver num estado
em que eu cuidei que Amor não tinha parte;
não sinto por qual arte
me vejo entregue a ele de tal sorte
que enquanto tarda a morte,
a esperança do bem tenho perdida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!

Quantas vezes eu triste aqui ouvia
o meu Felício, e outros mil pastores,
queixar-se em vão de minha crueldade!
E mais surda então eu a seus clamores
que áspide surda, ou surda penedia,
julgava os seus amores por vaidade.
Agora, em pago disto, a liberdade,
a vontade e o desejo
de todo entregue vejo
a quem, inda que brade, não responde
pois vejo que se esconde
já debaixo da terra este que eu chamo,
que é aquele a quem amo;
aquele a quem agora estou rendida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!

Que glória, Amor cruel, com meu tormento,
que louvor a teu nome acrescentaste?
Ou que te constrangeu a tal crueza,
que com tal pressa esta alma sujeitasse
a um mal, onde não basta o sofrimento?
Mas se, Amor, és cruel de natureza,
bastava usar comigo da aspereza
que usas com outra gente.
Mas tu, como semente
de ver-me estar morrendo te contentas,
quando mais me atormentas,
então desejas mais de atormentar-me;
e não queres matar-me
por que este mal de mi se não despida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!

Onde cousa acharei que alegre veja?
A quem chamarei já que me responda?
Quem me dará remédio à dor presente?
Não há bem, que de mi já não se esconda;
nem algum verei já, que a mi o seja,
porque está quem o foi da vida ausente.
Eu alguma não vi tão descontente,
que Amor tão mal tratasse,
que inda não esperasse
a seus males remédio achar vivendo.
Eu só vivo sofrendo
um mal tão grave e tão desesperado,
que tanto é mais pesado
quanto a vida com ele é mais comprida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!

Suaves águas, pura penedia,
arvoredo sombrio, verde prado,
donde eu já tive livre o pensamento;
frescas flores, e vós, meu manso gado,
que já me acompanhastes na alegria,
não me deixeis agora no tormento.
Se do mal meu vos toca sentimento,
dai-me para ele ajuda,
que eu tenho a língua muda,
o alento me vai já desamparando.
Mas quando – ai triste! – quando
de um dia uma hora me virá contente,
que eu te veja presente,
pastor meu, e contigo esta alma unida?
Ai, quão devagar passa a triste vida!

Mas não sei se é sobrado atrevimento
querer-se esta alma minha unir contigo,
pois dela foste já tão desprezado.
Amor me livrará deste perigo;
que, despois que lá vires meu tormento,
creio que te haverás por bem vingado.
E se inda em ti durar o amor passado
e aquela fé tão pura,
eu estou bem segura
que hás lá de receber-me brandamente.
Aprenda em mi a gente
quão cara uma isenção com Amor custa.
A pena dá bem justa
a uma alma que lhe é pouco agradecida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!

Luis Vaz de Camões
(1524-1580)

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segunda-feira, maio 27, 2013

Em nome de tua ausência construí com loucura uma grande casa branca. E ao longo das paredes te chorei, dizem as lágrimas de Sophia de Mello Breyner.


Em nome

Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

quarta-feira, maio 22, 2013

Zefa, chegou o inverno, vai acontecer de tudo. Jorge de Lima está feliz, mas lembra à Zefa que tudo isso só com os poderes de Jesus Cristo.


Inverno

Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha d'água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!

Jorge de Lima
(1893-1953)

Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

segunda-feira, maio 20, 2013

Ela saíu da mão direita de Deus e é contemporânea do Gênesis. Para Abgar Renault, sua beleza é uma ilha de nenhum mar.


A intangível beleza

Saiu da mão direita de Deus e é contemporânea do Gênesis.

Seus curvos braços, feitos para fecharem-se,
ainda estão imóveis, em golfo abertos,
friamente, diante de todas as águas,
com seus peixes, suas ondas, seu sal cheio de música.
Apenas os estremece, às vezes, um ritmo de fuga ante o esplendor do fogo próximo.

Compõem sua boca as curvas do infinito e a luz,
e habitam seus olhos de maio e de distância
os vocábulos de oculto país, verdes, esveltos e evasivos.

O romper do dia espera o alvorecer dos seus pés no chão,
caem as noites e murcham os coraçõe ao esmorecer de suas pálpebras,
e as tardes refugiam-se em seus cabelos de crepúsculo.

Seu ser interior e corporal é a linfa de uma fonte ausente:
pensá-lo é escalar o vértice, regressar às origens,
ver a poesia nascendo e projetando no mundo o seu mistério.

Que gesto apartará as colunas e separará terras e águas?
Que tacto se delumbrará nos brancos astros?
Que lábio incendiará a ânfora no abismo?

(Do ninho de suas mãos obscuros pássaros cantam:
sua beleza é uma ilha de nenhum mar.)

Abgar Renault
(1901-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

Oswald de Andrade quer um poema livre da gramática, do som das palavras, de traços. Um poema que de tão livre traga em si a decisão de ser escrito ou não.


Risco

Um poema livre
da gramática, do som
das palavras
livre
de traços

Um poema irmão
de outros poemas
que bebem a correnteza
e brilham
pedras ao sol

Um poema
sem o gosto
de minha boca
livre da marca
de dentes em seu dorso
Um poema nascido
nas esquinas nos muros
com palavras pobres
com palavras podres
e
que de tão livre

traga em si a decisão
de ser escrito ou não

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

domingo, maio 19, 2013

Para Drummond, o único em tudo é Deus. E o resto é alucinação.


Único

O único assunto é Deus
o único problema é Deus
o único enigma é Deus
o único possível é Deus
o único impossível é Deus
o único absurdo é Deus
o único culpado é Deus
e o resto é alucinação.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, maio 17, 2013

Agora que é abril, Ledo Ivo vê que o seu amor aumenta. E ele a quer amar uma só vez todas as vezes, mesmo que ela se esconda.


Soneto de abril

Agora que é abril, e o mar se ausenta,
secando-se em si mesmo como um pranto,
vejo que o amor que te dedico aumenta
seguindo a trilha de meu próprio espanto.
Em mim, o teu espírito apresenta
todas as sugestões de um doce encanto
que em minha fonte não se dessedenta
por não ser fonte d'água, mas de canto.
Agora que é abril, e vão morrer
as formosas canções dos outros meses,
assim te quero, mesmo que te escondas:
amar-te uma só vez todas as vezes
em que sou carne e gesto, e fenecer
como uma voz chamada pelas ondas.

Ledo Ivo
(1924)

Mais sobre Ledo Ivo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAdo_Ivo


quinta-feira, maio 16, 2013

Uma grande paixão oculta, confessada por Gonçalves Dias. Lembra os tempos de colégio.


Como eu te amo

Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncio, e cores, e perfume, e vida,
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:

Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-te os lábios meus, — mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande

Amo em ti. — Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.
O que espero, cobiço, almejo, ou temo

De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo!
Esta oculta paixão, que mal suspeitas,

Que não vês, não supões, nem te eu revelo,
Só pode no silêncio achar consolo,
Na dor aumento, intérprete nas lágrimas.

De mim não saberás como te adoro;
Não te direi jamais,
Se te amo, e como, e a quanto extremo chega
Esta paixão voraz!

Se andas, sou o eco dos teus passos;
Da tua voz, se falas;
o murmúrio saudoso que responde
Ao suspiro que exalas.

No odor dos teus perfumes te procuro,
Tuas pegadas sigo;
Velo teus dias, te acompanho sempre,
E não me vês contigo!

Oculto e ignorado me desvelo
Por ti, que me não vês;
Aliso o teu caminho, esparjo flores,
Onde pisam teus pés.
Mesmo lendo estes versos, que m'inspiras,
— "Não pensa em mim", dirás:
Imagina-o, se o podes, que os meus lábios
Não to dirão jamais!

Sim, eu te amo; porém nunca
Saberás do meu amor;
A minha canção singela
Traiçoeira não revela
O prêmio santo que anela
O sofrer do trovador!

Sim, eu te amo; porém nunca
Dos lábios meus saberás,
Que é fundo como a desgraça,
Que o pranto não adelgaça,
Leve, qual sombra que passa,
Ou como um sonho fugaz!

Aos meus lábios, aos meus olhos
Do silêncio imponho a lei;
Mas lá onde a dor se esquece,
Onde a luz nunca falece,
Onde o prazer sempre cresce,
Lá saberás se te amei!

E então dirás: Objeto
Fui de santo e puro amor:
A sua canção singela;
Tudo agora me revela;
Já sei o prêmio que anela
O sofrer do trovador.

"Amou-me como se ama a luz querida,
Como se ama o silêncio, os sons, os céus,
Qual se amam cores e perfume e vida,
Os pais e a pátria, e a virtude e a Deus!"

Gonçalves Dias
(1823-1864)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Gon%C3%A7alves_Dias

quarta-feira, maio 15, 2013

Adeus, diz Leminski. Dez vezes, adeus.


Adeus


Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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terça-feira, maio 14, 2013

Nuno Júdice diz ao seu amor que sonhou com ela. Mas o poeta sabe que nenhum sonho pode ter habitantes.


Sonhei contigo

Sonhei contigo
embora nenhum sonho possa ter habitantes
tu, a quem chamo amor,
cada ano pudesse trazer um pouco mais de convicção
a esta palavra.

É verdade
o sonho poderá ter feito com que,
nesta rarefacção de ambos,
a tua presença se impusesse
como se cada gesto do poema te restituisse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus lábios
com o rebordo desta chávena de café já frio…

Então, bebo-o de um trago.
o mesmo se pode fazer ao amor,
quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço
-terra, água, nuvens, rios e o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência das fontes.

É isto, porém, que faz com que a solidão
não seja mais do que um lugar comum
saber que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me responda
quando, uma vez mais te chamo.

Nuno Júdice
(1949)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

segunda-feira, maio 13, 2013

Hilda Hilst diz que sempre se perdeu na criança que foi, tão confundida. Assim, ela responde aos que querem saber se ela pediu muito, ou se nada pediu, em sua vida.


Testamento lírico

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

domingo, maio 12, 2013

Uma mulher ao sol. Eis todo o desejo de Vinicius de Moraes.


Soneto da mulher ao sol

Uma mulher ao sol - eis todo o meu desejo
Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz
A flor dos lábios entreaberta para o beijo
A pele a fulgurar todo o pólen da luz.

Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol - eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.

Uma mulher ao sol sobre quem me debruce
Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente
E que ao se submeter se enfureça e soluce

E tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me busque novamente - e se deixa a dormir
Quando, pacificado, eu tiver de partir...

Vinícius de Moraes
(1902-1987)

Mais sobre Vinícius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sexta-feira, maio 10, 2013

Para Henriqueta Lisboa, o tempo é um fio bastante frágil. Um fio fino que à toa escapa.


O tempo é um fio

O tempo é um fio
bastante frágil
Um fio fino
que à toa escapa.

O tempo é um fio.
Tecei! Tecei!
Rendas de bilro
com gentileza.

Com mais empenho
franças espessas.
Malhas e redes
com mais astúcia.

O tempo é um fio
que vale muito.

Franças espessas
carregam frutos.
Malhas e redes
apanham peixes.

O tempo é um fio
por entre os dedos.
Escapa o fio,
perdeu-se o tempo.

Lá vai o tempo
como um farrapo
jogado à toa.

Mas ainda é tempo!

Soltai os potros
aos quatro ventos,
mandai os servos
de um pólo a outro,
vencei escarpas,
voltai com o tempo
que já se foi!...

Henriqueta Lisboa
(1904-1985)

Mais sobre Henriqueta Lisboa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Henriqueta_Lisboa

quinta-feira, maio 09, 2013

Quando acariciou o dorso dela, o coração de Thiago de Mello cresceu e cantou como um menino. Ele estava deslumbrado pelo brilho estrelado dos olhos de seu amor.


Flor de açucena

Quando acariciei o teu dorso,
campo de trigo dourado,
minha mão ficou pequena
como uma flor de açucena
que delicada desmaia
sob o peso do orvalho.
Mas meu coração cresceu
e cantou como um menino
deslumbrado pelo brilho
estrelado dos teus olhos.

Thiago de Mello
(1921)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

quarta-feira, maio 08, 2013

Maior felicidade que amar uma mulher é amar uma cidade. Quem disse isso foi o poeta Dante Milano.


A cidade

Ao ver os altos castelos
Do Alhambra, dos Alijares
Lavrados à maravilha,
El-rei Don Juan dizia:
"Se tu quisesses, Granada,
Contigo me casaria
E te daria como arras
Córdova e Sevilha!"

"Não sou solteira nem viúva,
Sou casada, rei Don Juan,
Com Abenámar o Mouro,
Senhor que muito me quer."

Maior felicidade
Que amar uma mulher,
Amor de longo olhar
E presente saudade,
Amor muito maior
É amar uma cidade!

Dante Milano
(1899-1991)

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terça-feira, maio 07, 2013

O amanhecer, na visão poética de Guimarães Rosa.


Amanhecer

Amanhecer
Floresce, na orilha da campina,
esguio ipê
de copa metálica e esterlina.

Das mil corolas,
saem vespas, abelhas e besouros,
polvilhados de ouro,
a enxamear no leste, onde vão pousando
nas piritas das acácias amarelas.

Dos charcos frios
sobem a caçá-los redes longas,
lentas e rasgadas de neblina.
Nuvens deslizam, despetaladas,
e altas, altas,
garças brancas planam.

Dançam fadas alvas,
cantam almas aladas,
na taça ampla,
na prata lavada,
na jarra clara da manhã...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

segunda-feira, maio 06, 2013

Presente, passado e futuro. A mulher em três tempos, por Murilo Mendes.


Mulher em três tempos

Minha boca está no presente,
O meu olhar, no passado,
Meu ventre está no futuro.
Minha boca toda a noite
Está na boca amorosa
Do meu marido atual,
Meu olhar está no olho
Do meu namorado antigo,
Meu ventre está no futuro
Do corpinho do meu filho.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes



domingo, maio 05, 2013

Fernando Pessoa sente o mundo ruir a seu redor, escombro a escombro. E os seus sentidos oscilam, bandeira rota ao vento.


O mundo rui

O mundo rui a meu redor, escombro a escombro.
Os meus sentidos oscilam, bandeira rota ao vento.
Que sombra de que o sol enche de frio e de assombro
A estrada vazia do conseguimento?

Busca um porto longe uma nau desconhecida
E esse é todo o sentido da minha vida.

Por um mar azul nocturno, estrelado no fundo,
Segue a sua rota a nau exterior ao mundo.

Mas o sentido de tudo está fechado no pasmo
Que exala a chama negra que acende em meu entusiasmo

Súbitas confissões de outro que eu fui outrora
Antes da vida e viu Deus e eu não o sou agora.

Fernando Pessoa
(1888-1935))

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


sexta-feira, maio 03, 2013

Em seu poema sobre a irrealidade, Cecília Meireles sente que não há passado nem há futuro. Tudo que ela abarca se faz presente.


Irrealidade

Como num sonho
aqui me vedes:
água escorrendo
por estas redes
de noite e dia.
A minha fala
parece mesmo
vir do meu lábio
e anda na sala
suspensa em asas
de alegoria.

Sou tão visível
que não se estranha
o meu sorriso.
E com tamanha
clareza pensa
que não preciso
dizer que vive
minha presença.

E estou de longe,
compadecida.
Minha vigília
é anfiteatro
que toda a vida
cerca, de frente.
Não há passado
nem há futuro.
Tudo que abarco
se faz presente.

Se me perguntam
pessoas, datas,
pequenas coisas
gratas e ingrata,
cifras e marcos
de quando e de onde,
- a minha fala
tão bem responde
que todos crêem
que estou na sala.

E ao meu sorriso
vós me sorris…
Correspondência
do paraíso
da nossa ausência
desconhecida
e tão feliz.

Cecília Meireles
(1901-1964)

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quinta-feira, maio 02, 2013

Para Florbela Espanca, longe dele são ermos os caminhos, luar nem rosas, noite silenciosas. Mas este amor é fumo leve que foge entre os seus dedos.


Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu amor pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

quarta-feira, maio 01, 2013

"Operário em construção", de Vinicius de Moraes. Para comemorar o Primeiro de Maio, Dia Mundial de todos os trabalhadores.



Operário em construção


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:–
Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era Ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer o tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, Cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão
Que a sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
-"Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
E o operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! -disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem pelo chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes