A vida já passei assaz contente
A vida já passei assaz contente;
livre tinha a vontade e o pensamento,
sem receios de Amor nem da Ventura.
Mas isto foi um bem de um só momento,
e à minha custa vejo claramente
que a vida não dá algum de muita dura.
No tempo em que eu vivia mais segura
de Amor e seu cuidado,
por me ver num estado
em que eu cuidei que Amor não tinha parte;
não sinto por qual arte
me vejo entregue a ele de tal sorte
que enquanto tarda a morte,
a esperança do bem tenho perdida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!
Quantas vezes eu triste aqui ouvia
o meu Felício, e outros mil pastores,
queixar-se em vão de minha crueldade!
E mais surda então eu a seus clamores
que áspide surda, ou surda penedia,
julgava os seus amores por vaidade.
Agora, em pago disto, a liberdade,
a vontade e o desejo
de todo entregue vejo
a quem, inda que brade, não responde
pois vejo que se esconde
já debaixo da terra este que eu chamo,
que é aquele a quem amo;
aquele a quem agora estou rendida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!
Que glória, Amor cruel, com meu tormento,
que louvor a teu nome acrescentaste?
Ou que te constrangeu a tal crueza,
que com tal pressa esta alma sujeitasse
a um mal, onde não basta o sofrimento?
Mas se, Amor, és cruel de natureza,
bastava usar comigo da aspereza
que usas com outra gente.
Mas tu, como semente
de ver-me estar morrendo te contentas,
quando mais me atormentas,
então desejas mais de atormentar-me;
e não queres matar-me
por que este mal de mi se não despida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!
Onde cousa acharei que alegre veja?
A quem chamarei já que me responda?
Quem me dará remédio à dor presente?
Não há bem, que de mi já não se esconda;
nem algum verei já, que a mi o seja,
porque está quem o foi da vida ausente.
Eu alguma não vi tão descontente,
que Amor tão mal tratasse,
que inda não esperasse
a seus males remédio achar vivendo.
Eu só vivo sofrendo
um mal tão grave e tão desesperado,
que tanto é mais pesado
quanto a vida com ele é mais comprida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!
Suaves águas, pura penedia,
arvoredo sombrio, verde prado,
donde eu já tive livre o pensamento;
frescas flores, e vós, meu manso gado,
que já me acompanhastes na alegria,
não me deixeis agora no tormento.
Se do mal meu vos toca sentimento,
dai-me para ele ajuda,
que eu tenho a língua muda,
o alento me vai já desamparando.
Mas quando – ai triste! – quando
de um dia uma hora me virá contente,
que eu te veja presente,
pastor meu, e contigo esta alma unida?
Ai, quão devagar passa a triste vida!
Mas não sei se é sobrado atrevimento
querer-se esta alma minha unir contigo,
pois dela foste já tão desprezado.
Amor me livrará deste perigo;
que, despois que lá vires meu tormento,
creio que te haverás por bem vingado.
E se inda em ti durar o amor passado
e aquela fé tão pura,
eu estou bem segura
que hás lá de receber-me brandamente.
Aprenda em mi a gente
quão cara uma isenção com Amor custa.
A pena dá bem justa
a uma alma que lhe é pouco agradecida.
Ai, quão devagar passa a triste vida!
Luis Vaz de Camões
(1524-1580)
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