sexta-feira, novembro 30, 2012

O pão de Açúcar e a poesia de cada dia, segundo Oswald de Andrade.


Escapulário

No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

quinta-feira, novembro 29, 2012

As ironias do desgosto sempre acabam por destruir as relações amorosas. Esta é a certeza que Cesário Verde demonstra em versos carregados de fel.


Ironias do desgosto

Onde é que te nasceu - dizia-me ela às vezes -
O horror calado e triste às coisas sepulcrais?
Por que é que não possuis a verve dos Franceses
E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais?

Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
As sombras d'um jazigo e as fundas abstrações,
E abrigas tanto fel no peito, que não sente
O abalo feminil das minhas expansões?

Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
Mas quando tentas rir parece, então, meu bem,
Que estão edificando um negro cadafalso
E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!

Eu vim - não sabes tu? - para gozar em maio,
No campo, a quietação banhada de prazer!
Não vês, ó descorado, as vestes com que saio,
E os júbilos que abril acaba de trazer?

Não vês que como a campina é toda embalsamada
E como nos alegra em cada nova flor?
E então por que é que tens na fronte consternada
Um não sei quê tocante e enternecedor?

E eu só lhe respondia: Escuta-me. Conforme
Tu vibras os cristais da boca musical,
Vai nos minando o tempo, o tempo - o cancro enorme
Que te há de corromper o corpo de vestal.

E eu calmamente sei, na dor que me amortalha,
Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,
A pouco e pouco há de ir tornando-se grisalha
E em breve ao quente sol e ao gás alvejará.

Cesário Verde
(1855-1886)

Mais sobre Cesário Verde em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde








quarta-feira, novembro 28, 2012

A moça da cidade foi morar na fazenda, numa casa velha feita pelo seu bisavô. E Raquel de Queiroz conta em versos como uma simples telha de vidro mudou a vida daquela moça.



Telha de vidro

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!

Raquel de Queiroz
(1910-2003)

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terça-feira, novembro 27, 2012

Lya Luft lembra-se dele em um instante absoluto. E diz que se é só isso que podem ter, que seja forte e que seja único.


Lembro-me de ti

Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.

Lya Luft
(1938)

Mais sobre em Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

segunda-feira, novembro 26, 2012

Murilo Mendes sofre com ciúme até do pai e da mãe da mulher amada, sem falar do homem que a desvirginou. E também de Deus, que o matando poderia extinguir enfim seu ciúme.


Poesia do ciúme

Eu nunca poderia aplacar esta ânsia absoluta,
Esta gana que tenho de ti
- Mesmo se te possuísse.
Eu tenho ciúme do teu pai e da tua mãe,
Eu tenho ciúme daquele que te desvirginou,
Eu tenho ciúme de Deus
Que fundiu o molde da tua alma rebelada,
De Deus que me matando poderia
Extinguir enfim meu ciúme
Na noite total sem pensamento e sem sexo.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

domingo, novembro 25, 2012

Vinicius achava que a tia era feia e tinha pêlos oleosos na perna, mas... Quem não passou por uma situação ao menos parecida com a que o poetinha confessa em seus versos?


O eleito

Quando eu era menor na grande moradia
De minha avó materna e de meu pobre avô
Muitas vezes senti, como alguém que sonhou
Pesar sobre meu corpo o olhar da minha tia

Miserável, na frente mesmo dos avós
Que, velhos, sem amor, conversavam comigo
Deixava-me molhar de um riso de mendigo
Tremendo à comoção de uma volúpia atroz.

Na penumbra da sala lívida, amarela
Que te viu, minha mãe, antes de mãe, ser filha
Faminto como um cão no cio, sem família
Tocava sob a mesa a perna quente dela.

Ficava assim, as mãos geladas, os pés úmidos
Sem forças para olhar aquela mulher feia
Que tinha pêlos oleosos sob a meia
E esmagava na blusa os belos seios túmidos.

A náusea de mim mesmo abria-me a garganta
Tão forte quanto o mal que me engrossava o sangue
E era como se eu fosse alguma coisa exangue
E como se ela fosse alguma coisa santa.

Meus sonhos de beleza e meus votos de ideal
Debandavam como asas tristes e malferidas
Meu sonho era beijar as nádegas partidas
Ao desvendar o nu daquele ser fatal.

Com mãos fantásticas eu via-me, anjo impuro
Ereto na treva, o ventre despido a meio
Feroz, a mastigar-lhe a carne azul do seio
Sentindo-me ferir no seu corpete duro.

Por fim, sem poder mais, contendo à toa o hausto
Do gozo, corria a chorar para o banheiro
Onde, entre vômitos, o olfato aberto ao cheiro
Acre, masturbava-me até ficar exausto.

Quem jamais poderá dizer o medo louco
O indizível pavor de voltar que me vinha
De transpor a porta, olhar minha avó velhinha
E meu finado avô, que adormecera um pouco.

E entretanto, cheio de angústia, delicado
De angústia, voltava, abria de manso a porta
Incapaz de ferir aquela paz já morta
Com a mais leve emoção de me sentir culpado.

Pobre criança! que Deus implacável fizera
Que perdesse tão cedo as ilusões mais belas
Tu que devias ir viajando entre as estrelas
A cantar e a correr tonto de primavera?!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes







quinta-feira, novembro 22, 2012

Eu tão isósceles, você ângulo. Vê bem onde pisas, pode ser o meu coração.


Eu tão isósceles


Eu tão isósceles
Você ângulo
Hipóteses
Sobre o meu tesão

Teses sínteses
Antíteses
Vê bem onde pises
Pode ser meu coração

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quarta-feira, novembro 21, 2012

Em sua primorosa obra de amor à Poesia*, José Paulo Cavalcanti Filho chegou à conclusão que o poeta tinha 127 heterônimos. E mesmo assim foi "um homem infeliz que sonhou ser tantos - e não conseguiu ser ele próprio".


Tudo quanto penso

Tudo quanto penso
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

*Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, Editora Record, Primeira Edição, 2011.

segunda-feira, novembro 19, 2012

Logo após a derrubada da ditadura salazarista, Sophia de Mello Breyner já se revolta contra os capitalistas da palavra que querem se aproveitar da Revolução dos Cravos. E sua revolta está carregada de fúria e raiva.


Com fúria e raiva

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu  porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

domingo, novembro 18, 2012

Na cidade adormecida primavera vem chegando. E Mario Quintana convida todos para que dancem com ele até não mais saber-se o motivo.


Canção da Primavera

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do cata-vento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

Mario Quintana
(1906-1994)

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sexta-feira, novembro 16, 2012

Para Affonso Romano de Sant'Anna, o mistério nunca termina. Começa do joelho para cima e do umbigo para baixo.


O mistério

O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

quarta-feira, novembro 14, 2012

Sob a leve tutela de deuses descuidosos, Ricardo Reis da verdade não quer mais que a vida. Pois os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade.


Sob a leve tutela

Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.

Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.

Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.


Ricardo Reis,
um dos heterônimos de Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa



terça-feira, novembro 13, 2012

Só alice com alice se parece. Assim é a Alice de Leminski.


Alice

ali

ali
se

se alice
ali se visse
quando alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece

Paulo Leminski
(1944-1989)

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segunda-feira, novembro 12, 2012

Desabusado, Antônio Jerônimo pediu, só por debique, um tostão de chuva a "padim" padre Cícero. E foi atendido, veio uma trovoada enorme, que matou até o seu cavalo cardão.


Tostão de chuva

Quem é Antonio Jerônimo? É o sitiante
Que mora no Fundão
Numa biboca pobre. É pobre. Dantes
Inda a coisa ia indo e ele possuía
Um cavalo cardão.
Mas a seca batera no roçado...
Vai, Antônio Jerônimo um belo dia
Só por debique de desabusado
Falou assim: "Pois que nosso padim
Pade Ciço que é milagreiro, contam,
Me mande um tostão de chuva pra mim".
Pois então nosso "padim" padre Cícero
Coçou a barba, matutando, e disse:
"Pros outros mando muita chuva não,
Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo
Vou mandar um tostão".
No outro dia veio uma chuva boa
Que foi uma festa pros nossos homens
E o milho agradeceu bem. Porém
No Fundão veio uma trovoada enorme
Quem numa átimo virou tudo em lagoa
E matou o cavalo de Antônio Jerônimo.
Matou o cavalo.

Mário de Andrade
(1892-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

domingo, novembro 11, 2012

Sede assim, qualquer coisa serena, isenta, fiel. Não como o resto dos homens, avisa Cecília Meireles.


Sugestão

Sede assim - qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim - qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.

Cecília Meireles

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sexta-feira, novembro 09, 2012

O navio desatraca. E Ana Cristina Cesar ainda o escuta folhear os últimos poemas com metade de um sorriso.


Ultimo adeus II

O navio desatraca
imagino um grande desastre sobre a terra
as lições levantam vôo,
agudas
pânicos felinos debruçados na amurada.

E na deck-chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade de um sorriso.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

quinta-feira, novembro 08, 2012

Ah, Lisboa com suas casas de várias cores. E, à força de ser ele, Álvaro de Campos dorme e esquece que existe.


Lisboa com suas casas

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força do diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força do monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quarta-feira, novembro 07, 2012

Cesário Verde quer aquela senhora inglesa porque odeia as carnações redondas. E como Balzac eternizou-lhe a singular beleza, ele tem o francês como seu rival.


Frígida

I

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.
II
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Expõe a majestade austera dos invernos.
Não cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.
III
Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
N'uma das mãos franzindo um lenço de cambraia!…
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!
IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei d'uma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e as palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!
V
Pudesse-me eu prostrar, n'um meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E trêmulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!…
VI
Cintila no seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda d'um fantasma.
VII
Metálica visão que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinção que fere,
As curvas de magreza e o lustre dos adornos!
VIII
Deslise como um astro, uma astro que declina;
Tão descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentidão d'uma corveta fina
Que nobremente vá n'um mar de calmaria.
IX
Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte!
E, ao, persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!
X
O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.
XI
Porém, não arderei aos seus contatos frios,
E não me enroscará nos serpentinos braços:
Receio suportar febrões e calefrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.
XII
E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, emfim, flexível e submisso,
Eu julgaria ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

terça-feira, novembro 06, 2012

Para Florbela Espanca, tudo é vaidade neste mundo vão, até os beijos de amor. Beijos que vão de boca em boca como pobres que vão de porta em porta.


Para quê?

Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos d'amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!

Só acredita neles quem é louca!
Beijos d'amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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segunda-feira, novembro 05, 2012

Ao ver escoar-se a vida humanamente em suas águas certas, Mário de Sá-Carneiro hesita. E detém-se às vezes na torrente das coisas geniais em que medita.


Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente 
Em suas águas certas, eu hesito, 
E detenho-me às vezes na torrente 
Das coisas geniais em que medito. 

Afronta-me um desejo de fugir 
Ao mistério que é meu e me seduz. 
Mas logo me triunfo. A sua luz 
Não há muitos que a saibam refletir. 

A minh'alma nostálgica de além, 
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, 
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto 
Que tenho a força de sumir também. 

Porque eu reajo. A vida, a natureza, 
Que são para o artista? Coisa alguma. 
O que devemos é saltar na bruma, 
Correr no azul à busca da beleza. 

É subir, é subir além dos céus 
Que as nossas almas só acumularam, 
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus 
Que as nossas mãos de auréola lá douraram. 

É partir sem temor contra a montanha 
Cingidos de quimera e d'irreal; 
Brandir a espada fulva e medieval, 
A cada hora acastelando em Espanha. 

É suscitar cores endoidecidas, 
Ser garra imperial enclavinhada, 
E numa extrema-unção d'alma ampliada, 
Viajar outros sentidos, outras vidas. 

Ser coluna de fumo, astro perdido, 
Forçar os turbilhões aladamente, 
Ser ramo de palmeira, água nascente 
E arco de ouro e chama distendido... 

Asa longínqua a sacudir loucura, 
Nuvem precoce de subtil vapor, 
Ânsia revolta de mistério e olor, 
Sombra, vertigem, ascensão--Altura! 

E eu dou-me todo neste fim de tarde 
À espira aérea que me eleva aos cumes. 
Doido de esfinges o horizonte arde, 
Mas fico ileso entre clarões e gumes!... 

Miragem roxa de nimbado encanto-- 
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço! 
Alastro, venço, chego e ultrapasso; 
Sou labirinto, sou licorne e acanto. 

Sei a Dist
ância, compreendo o Ar; 
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; 
Sou taça de cristal lançada ao mar, 
Diadema e timbre, elmo rial e cruz... 
.................................................... 
....................................................

O bando das quimeras longe assoma... 

Que apoteose imensa pelos céus! 
A cor já não é cor- é som e aroma! 
Vem-me saudades de ter sido Deus... 

....................................................
Ao triunfo maior, avante pois! 
O meu destino é outro--é alto e é raro. 
Unicamente custa muito caro: 
A tristeza de nunca sermos dois...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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domingo, novembro 04, 2012

Em 1956, irritado com algumas mazelas do Rio, Drummond ameaçou ir no rumo de Brasília. E foi? Foi não.


Destino Brasília

Vou no rumo de Brasília,
não é aqui meu lugar.
A liberdade, no exílio, 
já começa a definhar.

Já não posso ouvir meu rádio
dizer as coisas comuns.
Lá fundarei uma arcádia
e comerei jerimuns.

Lá não chegam portarias
do titular da Viação.
Lá correm livres os rios
e livre é meu coração.

Sobe o imposto de consumo?
Ônibus mais caro, trem?
Lá, sem condução alguma,
sento no chão com meu bem.

Vou no rumo de Brasília,
para bem longe do mar.
A selva é meu domicílio,
tão mais fácil de habitar.

Adeus, fumaça, adeus, fila,
adeus, carro matador.
Prefiro orquestra de grilo
ao silêncio do censor.

Se a lei contra a imprensa pega, 
jornal vira boletim
meteorológico, cego,
surdo, mudo, chocho enfim.

Escola? a da natureza.
Prato do dia? Arganaz.
Vou redescobrir, surpreso,
no mato, a prístina paz.

Vou no rumo de Brasília,
que o Rio está de amargar.
Da inquisição o concílio
me proíbe até pensar.

Se o Governo vai malito
e pensa que vai melhor,
quem mais lhe desmancha a fita
de pobre vestida à Dior?

Se chamo alguém de plagiário
(provando-o) me salta a lei:
Direto à Penitenciária,
por injúria grave? Eu sei.

Ladinos do bairro Fátima,
inocentes do Leblon,
que resta - dizei, num átimo -
salvo Glorinha Drummond?

Vou no rumo de Brasília,
o Catete vai ficar.
Se ele for, eu rogo auxílio
a Exu, monarca do ar.

Em Brasília ninguém tenta
espalhar promessa vã.
Transporte? ao tapa do vento,
monto na besta alazã.

É seu maior privilégio
a vida sem pose, ao sol,
a simplicidade egrégia
da selva como lençol...

Orquídea, lontra, cachoeiro
em sussurro musical.
Não há, nem de brincadeira,
Polícia Municipal.

Vou no rumo de Brasília,
e para me deliciar,
levo meu compadre Emílio Moura, 
de brando falar.

Cyro, Cruls, Gilberto Amado,
Aníbal, mago sutil,
Rodrigo M. F., apurada
essência do meu Brasil.

Não são fantasias bobas:
Portinari e seu pincel;
em vez de Orfeu, Vila-Lobos.
Bandeira - of course - : Manuel.

E amigos, amigas, certa
saudade do que era azul,
pois mesmo longe está perto
meu norte - da Zona Sul.

Vou no rumo de Brasília.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade


quinta-feira, novembro 01, 2012

Não, não e não. O impossível na poesia de Abgar Renault.


Soneto do impossível

Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.

Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.

Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.

Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault