domingo, novembro 04, 2012

Em 1956, irritado com algumas mazelas do Rio, Drummond ameaçou ir no rumo de Brasília. E foi? Foi não.


Destino Brasília

Vou no rumo de Brasília,
não é aqui meu lugar.
A liberdade, no exílio, 
já começa a definhar.

Já não posso ouvir meu rádio
dizer as coisas comuns.
Lá fundarei uma arcádia
e comerei jerimuns.

Lá não chegam portarias
do titular da Viação.
Lá correm livres os rios
e livre é meu coração.

Sobe o imposto de consumo?
Ônibus mais caro, trem?
Lá, sem condução alguma,
sento no chão com meu bem.

Vou no rumo de Brasília,
para bem longe do mar.
A selva é meu domicílio,
tão mais fácil de habitar.

Adeus, fumaça, adeus, fila,
adeus, carro matador.
Prefiro orquestra de grilo
ao silêncio do censor.

Se a lei contra a imprensa pega, 
jornal vira boletim
meteorológico, cego,
surdo, mudo, chocho enfim.

Escola? a da natureza.
Prato do dia? Arganaz.
Vou redescobrir, surpreso,
no mato, a prístina paz.

Vou no rumo de Brasília,
que o Rio está de amargar.
Da inquisição o concílio
me proíbe até pensar.

Se o Governo vai malito
e pensa que vai melhor,
quem mais lhe desmancha a fita
de pobre vestida à Dior?

Se chamo alguém de plagiário
(provando-o) me salta a lei:
Direto à Penitenciária,
por injúria grave? Eu sei.

Ladinos do bairro Fátima,
inocentes do Leblon,
que resta - dizei, num átimo -
salvo Glorinha Drummond?

Vou no rumo de Brasília,
o Catete vai ficar.
Se ele for, eu rogo auxílio
a Exu, monarca do ar.

Em Brasília ninguém tenta
espalhar promessa vã.
Transporte? ao tapa do vento,
monto na besta alazã.

É seu maior privilégio
a vida sem pose, ao sol,
a simplicidade egrégia
da selva como lençol...

Orquídea, lontra, cachoeiro
em sussurro musical.
Não há, nem de brincadeira,
Polícia Municipal.

Vou no rumo de Brasília,
e para me deliciar,
levo meu compadre Emílio Moura, 
de brando falar.

Cyro, Cruls, Gilberto Amado,
Aníbal, mago sutil,
Rodrigo M. F., apurada
essência do meu Brasil.

Não são fantasias bobas:
Portinari e seu pincel;
em vez de Orfeu, Vila-Lobos.
Bandeira - of course - : Manuel.

E amigos, amigas, certa
saudade do que era azul,
pois mesmo longe está perto
meu norte - da Zona Sul.

Vou no rumo de Brasília.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade


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