quinta-feira, novembro 30, 2006

Vale a pena ler e reler sempre esta obra-prima da Poesia. Para entender que não há melhor resposta para uma vida severina que o espetáculo da vida.


Morte Vida Severina

Auto de Natal Pernambucano

O retirante explica ao leitor quem é e a que vai


- O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de "ó irmãos das almas! Irmãos das almas! Não fui eu quem matei não!"

- A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
Dizei que eu saiba.
- A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
-E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
-Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
-E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
- Onde a caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
-E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
-Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
- E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
-Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.
-E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
-Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
-E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
-Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
-Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?
-Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
-E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
-Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
-Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
-Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
-E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
-Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
-E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente do chumbo
que tem guardada?
-Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
-E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
-Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
-E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
-Vou eu que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
-Mais sorte tem o defunto
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
-Toritama não cai longe,
irmãos das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
-Partamos enquanto é noite
irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

O retirante tem medo de se extraviar por seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão.

- Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas
sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha
entre uma conta e outra conta,
entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho que saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?

Na casa a que o retirante chega estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando a palavras dos cantadores

- Finado Severino,
quando passares em Jordão
e o demônios te atalharem
perguntando o que é que levas..
- Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
- Finado Severino,
etc...
- Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
- Finado Severino,
etc...
- Dize que coisas de não, ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.
- Uma excelência dizendo que a hora é hora.
- Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora.
- Duas excelências...
- dizendo é a hora da plantação.
- Ajunta os carreadores...
- que a terra vai colher a mão.

Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra.

- Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.

Dirige-se à mulher na janela que depois, descobre tratar-se de quem se saberá

- Muito bom dia senhora,
que nessa janela está
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
- Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
- Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
- Isso aqui de nada adianta,
poucos existe o que lavrar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
- Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
- Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar
diga-me ainda, compadre,
que mais fazias por lá?
- Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
- Esses roçados o banco
já não quer financiar
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?
- Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
- Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá
diga-me ainda, compadre
que mais fazia por lá?
- Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavras
pela seca faca solar.
- Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
- Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
- Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
- Em qualquer das cinco tachas
de um bangüê sei cozinhar
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
- Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
- Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
- Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
- Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
- Essa vida por aqui
é coisa familiar
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
- Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
- Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
- Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
- Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
- E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
- é, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
- E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
- De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
- E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar
não se precisa de limpa,
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar
e dão lucro imediato
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

O retirante chega à Zona da Mata, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.

- Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm água vitalícia.
Cacimbas por todo lado
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina
somente ali à distância
aquele bueiro de usina
somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina
e aquele cemitério ali,
branco de verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.

Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério.

- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
- é de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
- Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
- é uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
- é uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
- é uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

- Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
- Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
- Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
- Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
- Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
- Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
- Será de terra
e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
- Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
- Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
- Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
- Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.

- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
- Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
- Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)
- Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).

- Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
- Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
- Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
- Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
- Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
- Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.

- Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
- Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
- Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
- Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.

- Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
- Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
- Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha,
- Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.

- Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
- De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.
- Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
- E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
- Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
- Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme.

O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife.

-Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.
Agora é que compreendo
por que em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vivi a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.

Chegando ao Recife o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros.

-O dia hoje está difícil
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
-pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.
-é que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.
-Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não para o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.
-Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos bangunlezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros)
bairro também dos industriais,
dos membros das
associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.
-Só pedi que me mandasse
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra.
-Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se libertaram jamais.
-Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.
-Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa
onde se exige quepe
e farda engomada e limpa.
-Mas não foi pelas gorjetas, não,
que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.
-E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido?
-Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido.
-E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste?
-No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde.
-E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe?
-Passo para o dos industriários,
que também é o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.
-Passas para o dos operário,
deixas o dos pobres vários
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos.
-é, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.
-é a gente sem instituto,
gente de braços devolutos
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.
-é a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.
-é a gente retirante
que vem do Sertão de longe.
-Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
-E que então, ao chegar,
não tem mais o que esperar.
-Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.
-Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
-E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.
-Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.
-Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
-O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
-E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
-Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia
morre gente que nem vivia.
-E esse povo de lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitério esperando.
-Não é viagem o que fazem
vindo por essas caatingas, vargens
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.

O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe

-Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).

Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio

-Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
-Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
-Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
-Severino, retirante
pois não sei o que lhe conte
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
-Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
-Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
-Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
-Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alarga
e devasta a terra inteira.
-Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
-Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
-Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
-Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?
-Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
-Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?
-Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.
-Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá.

-Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito
e estais aí conversando
pois sabeis que ele é nascido.

Aparecem e se aproximam da casa do homem vizinhos, amigos, duas ciganas, etc.

-Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
-Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
-E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
-E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.

-Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
-Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
-E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
-E este rio de água, cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.

Começam a chegar pessoas trazendo presentes para o recém-nascido

- Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
- Minha pobreza tal é
que coisa alguma posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar
aqui todos são irmãos,
de leite, de lama, de ar.
- Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago este papel de jornal
para lhe servir de cobertor
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.
- Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
como não posso trazer
um olho d'água de Lagoa do Cerro,
trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.

- Minha pobreza tal é
que grande coisa não trago:
trago este canário da terra
que canta sorrindo e de estalo.
- Minha pobreza tal é
que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d'água
que só em Paudalho se fabrica.
- Minha pobreza tal é
que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro
de Severino de Tracunhaém.
- Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro
fabricava em Gravatá.

- Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.
- Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.
- Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
- Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.

- Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
- Siris apanhados no lamaçal
que já no avesso da rua Imperial.
- Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
- Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.

Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos.

- Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.

- Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.

Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc

- De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
- Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
- Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.

- De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.

- é tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
- Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
- Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
- é tão belo como as ondas
em sua adição infinita.

- Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria.
- Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia.
- Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia.
- Ou como o caderno novo quando a gente o principia.

- E belo porque o novo todo o velho contagia.
- Belo porque corrompe com sangue novo a anemia.
- Infecciona a miséria com vida nova e sadia.
- Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria.

O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte de nada.

- Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.

E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida
como a de há pouco, franzina
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://en.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Para Leminski, um bom poema leva anos, uma eternidade.


Um bom poema

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Paulo Leminski

(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quarta-feira, novembro 29, 2006

A quatro mãos escrevemos o roteiro para o palco do meu tempo: o meu destino e eu, confessa Lya. Porque nem sempre nos levamos a sério.


Não sou areia

Não sou areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
não sou apenas a pedra que rola
na marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.

A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

Lya Luft

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

terça-feira, novembro 28, 2006

O tempo é uma invenção da morte. Mas para Quintana, basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira.


Ah! Os relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia em for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais um necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...

Mario Quintana

(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Ah, as doces lembranças da passada glória! Por elas, Camões também desejava tornar a nascer.


Doces lembranças da passada glória

Doces lembranças da passada glória,
Que me tirou Fortuna roubadora,
Deixai-me repousar em paz uma hora,
Que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho n'alma larga história
Deste passado bem que nunca fora;
Ou fora, e não passara; mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro d'esquecido,
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.

Luiz Vaz de Camões

(1524-1580)

Mais sobre Luiz Vaz de Camões em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

sábado, novembro 25, 2006

Em um de seus mais críticos poemas, o homem se revoltava num comício dentro de sua alma. E repetia: Merda! Sou lúcido.

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem,
e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo! E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo. Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido! Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Álvaro de Campos

Um dos heterônimos de Fernando Pessoa

(1888-1935)

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Em seu canto de tanto amor, para Vinícius ela não é um sonho, é a existência.


Cântico

Não, tu não és um sonho, és a existência
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
No calmo peito teu. Tu és a estrela
Sem nome, és a namorada, és a cantiga
Do amor, és luz, és lírio, namorada!
Tu és todo o esplendor, o último claustro
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca
Minha, fosses a idéia, o sentimento
Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora
Ausente, amiga, eu não te perderia!
Amada! onde te deixas, onde vagas
Entre as vagas flores? e por que dormes
Entre os vagos rumores do mar? Tu
Primeira, última, trágica, esquecida
De mim! És linda, és alta! és sorridente
És como o verde do trigal maduro
Teus olhos têm a cor do firmamento
Céu castanho da tarde - são teus olhos!
Teu passo arrasta a doce poesia
Do amor! prende o poema em forma e cor
No espaço; para o astro do poente
És o levante, és o Sol! eu sou o gira
O gira, o girassol. És a soberba
Também, a jovem rosa purpurina
És rápida também, como a andorinha!
Doçura! lisa e murmurante... a água
Que corre no chão morno da montanha
És tu; tens muitas emoções; o pássaro
Do trópico inventou teu meigo nome
Duas vezes, de súbito encantado!
Dona do meu amor! sede constante
Do meu corpo de homem! melodia
Da minha poesia extraordinária!
Por que me arrastas? Por que me fascinas?
Por que me ensinas a morrer? teu sonho
Me leva o verso à sombra e à claridade.
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço
De ti, sou teu cantor humilde e terno
Teu silêncio, teu trêmulo sossego
Triste, onde se arrastam nostalgias
Melancólicas, ah, tão melancólicas...
Amiga, entra de súbito, pergunta
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri
Esse riso que é tosse de ternura
Carrega-me em teu seio, louca! sinto
A infância em teu amor! cresçamos juntos
Como se fora agora, e sempre; demos
Nomes graves às coisas impossíveis
Recriemos a mágica do sonho
Lânguida! ah, que o destino nada pode
Contra esse teu langor; és o penúltimo
Lirismo! encosta a tua face fresca
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo
Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma
É o último suspiro da poesia
O mar é nosso, a rosa tem seu nome
E recende mais pura ao seu chamado.
Julieta! Carlota! Beatriz!
Oh, deixa-me brincar, que te amo tanto
Que se não brinco, choro, e desse pranto
Desse pranto sem dor, que é o único amigo
Das horas más em que não estás comigo.

Vinícius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Quando se matam, os desiludidos do amor seguem iludidos, sem coração, sem tripas, sem amor. E suas amadas dançarão um samba sobre a tumba deles.

Necrológio dos desiludidos do amor

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

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Em seu berro, Clarice rasgava suas entranhas profundas. Nada tinha mais a perder, só lhe restava ficar nua.



Quero escrever o borrão vermelho de sangue

Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.
Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.
Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

Clarice Lispector
(1920-1977)

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Nos versos de Cecília, o homem tão inutilmente pensante e pensado só tem a tristeza para distingui-lo.

Noturno

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?

Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?

Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?

Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?

O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.

E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.

Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.

Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.

Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.

Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!

Cecília Meirelles

(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirelles em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em seus versos imensos de ansiedade, Florbela esperava por um amor que se fizesse ser eterno por toda a eternidade.


Escrava

Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!

Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a Terra e o Mar,
Pelos séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.

Ah! esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a eternidade...

Florbela Espanca

Mais sobre Florbela Espanca em

(1894-1930)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Na sentida dor de Machado de Assis, a noite escura e fria, melancólica, chora. E o poeta implora à Musa de olhos verdes: sê tu a aurora.


Musa dos olhos verdes

Musa dos olhos verdes, musa alada,
Ó divina esperança,
Consolo do ancião no extremo alento,
E sonho da criança;

Tu que junto do berço o infante cinges
C'os fúlgidos cabelos;
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;

Tu que fazes pulsar o seio às virgens;
Tu que às mães carinhosas
Enches o brando, tépido regaço
Com delicadas rosas;

Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!

Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.

Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.

Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!

Machado de Assis

(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

Não foi à toa que Vila-Lobos musicou este poema de Ascenso Ferreira. Quem não ficou com vontade de ir danado pra Catende, com vontade de chegar?


Trem de Alagoas

O sino bate,
o condutor apita o apito,
Solta o trem de ferro um grito,
põe-se logo a caminhar…

- Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...

Mergulham mocambos,
nos mangues molhados,
moleques, mulatos,
vêm vê-lo passar.

Adeus !
- Adeus !

Mangueiras, coqueiros,
cajueiros em flor,
cajueiros com frutos
já bons de chupar...

- Adeus morena do cabelo cacheado !

Mangabas maduras,
mamões amarelos,
mamões amarelos,
que amostram molengos
as mamas macias
pra a gente mamar

- Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...

Na boca da mata
ha furnas incríveis
que em coisas terríveis
nos fazem pensar:

- Ali dorme o Pai-da-Mata
- Ali é a casa das caiporas

- Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...

Meu Deus ! Já deixamos
a praia tão longe…
No entanto avistamos
bem perto outro mar...

Danou-se ! Se move,
se arqueia, faz onda...
Que nada ! É um partido
já bom de cortar...

- Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...

Cana caiana,
cana rôxa,
cana fita,
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar...

- Adeus morena do cabelo cacheado !

- Ali dorme o Pai-da-Matta !
- Ali é a casa das caiporas

- Vou danado pra Catende,
vou danado pra Catende
vou danado pra Catende
com vontade de chegar...

Ascenso Ferreira

(1895-1965)

Mais sobre Ascenso Ferreira em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascenso_Ferreira

Contra o ódio do terror e a praga da mentira, ao poeta só restou escrever um poema onde a rima rebenta a frase numa explosão de verdade.


A implosão da mentira ou o episódio do Riocentro

Fragmento 1

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente.

Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.

Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente. Mentem. Mentem caricaturalmente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,

mentem clara/mente
como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho.

Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente.

Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.

Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.

E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial? mente,
mente partidária? mente,
mente incivil? mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?

mente,
mente hereditária?

mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
-diária/mente.

Fragmento 3

Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partin-
do do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente. Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.

Fragmento 4

Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.

Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente. Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.

Fragmento 5

Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade. E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva.

Affonso Romano de Santa’Anna

Mais sobre Afonso Romano de Santa’Anna em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'ana

O poeta sabe que ninguém vê, ninguém acalenta o vencido. E que somente entre a negrura da terra poente alguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua.


História de um vencido

Sol alto. A terra escalda: é um forno. A flama oriunda
Da solar refração bate no mundo, acende
O pó, aclara o mar e por tudo se estende
E arde em tudo, mordendo a atra terra infecunda.
E o Velho veio para o labor cotidiano,
Triste, do alegre Sol ao grande globo quente
E pôs-se para aí, desoladoramente
A revolver da terra o atro e infecundo arcano.
Por seis horas seu braço empenhado na luta,
Fez reboar pelo solo, alta e descompassada
A dura vibração incômoda da enxada,
Rasgando, do agro solo, a superfície bruta.
Mas o braço cansou! Trabalhou... e o trabalho
-Do Eterno Bem motor principal e alavanca-
Arrancara-lhe a Crença assim como se arranca
De um ninho a seda branca e de uma árvore o galho!
Sangrou-lhe o coração a saudade da Aurora!
-O Hércules que ele fora! O fraco que ele hoje era!
E surpreendido viu que um abismo se erguera
Entre o fraco que era hoje, e entre o Hércules de outrora!
Pois havia de assim, nesta maldita senda
De sofrimento ignaro em sofrimento ignaro
Ir caminhando até tombar sem um amparo
No tremendo marnel da Desgraça tremenda?!

II

Noute! O silêncio vinha entrando pelo mundo
E ele, lúgubre e só, trôpego e cambaleando
Foi-se arrastando, foi aos poucos se arrastando,
Para as bordas fatais de um precipício fundo!
Quis um momento ainda olhar para o Passado...
E em tudo que o rodeava, oito vezes, funéreo
Horrorizado viu como num cemitério
Cadáveres de um lado e cinzas de outro lado!
De súbito, avistando uma frondosa tília
Julgou, louco, avistar a Árvore da Esperança...
E bateram-lhe então de chofre na lembrança
A casa que deixara, os filhos, a família!
Não morreria, pois! Somente morreria
Se da Vida, sozinho, ele pisasse os trilhos...
Que mal lhe haviam feito a esposa e a irmã e os filhos?!
Preciso era viver! Portanto, viveria!
Viveria! E a fecunda e deleitosa seara
Verde dos campos, onde arde e floresce a Crença,
Compensaria toda a sua dor imensa
Tal qual o Céu a dor de Cristo compensara!
E aos tropeços, tombando, o Velho caminhava...
Caminhava, e a sonhar, bêbado de miragem,
Nem viu que era chegado o termo da viagem,
E amplo, a rugir-lhe aos pés, o precipício estava.
Num instante viu tudo, e compreendendo tudo,
Quis fazer um esforço - o último esforço, e o braço
Pendeu exangue, o peito arqueou-se, o cansaço
Empolgara-o, e ele quis falar e estava mudo!
Mudo! E a quem contaria agora as suas mágoas?!
E trágico, no horror bruto da despedida
Abraçou-se com a Dor, abraçou-se com a Vida
E sepultou-se ali no coração das águas!
Cantavam muito ao longe uns carmes doloridos!
Eram tropeiros, era a turba trovadora
Que assim cantava, enquanto a Terra Vencedora
Celebrava ao luar a Missa dos Vencidos!
E o cadáver, a toa, a flux d'água, flutua!
Ninguém o vê, ninguém o acalenta, o acalenta...
Somente entre a negrura atra da terra poenta
Alguém beija, alguém vela o cadáver: a Lua!

Augusto dos Anjos

(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

A moça da vida queria a paixão, uma cama de catre e a presença do santo anjo do Senhor, o zeloso guardador. Que era um eunuco, acalmava ela a mãe.


Moça na Cama

Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas,
uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir, tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas, os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Para o poeta, toda a alma num cárcere anda presa. E pergunta, que chaveiro do Céu possui as chaves para abrir as portas do Mistério?


Cárcere das almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,
Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza
Quando a alma entre grilhões as liberdades
Sonha e, sonhando, as imortalidades
Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.

Ó almas presas, mudas e fechadas
Nas prisões colossais e abandonadas,
Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves,
que chaveiro do Céu possui as chaves
para abrir-vos as portas do Mistério?!

Cruz e Sousa

(1861-1898)

Mais sobre Cruz e Sousa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruz_e_Sousa

sexta-feira, novembro 17, 2006

Autopsicografia, de Fernando Pessoa e Tom Jobim, canta Tom Jobim.


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Na dor que fingia sentir, o poeta fingia tão bem a sua dor que todos só sentiam as dores que eles não têm.

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as dores que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Era uma manhã de setembro. E o poeta se derretia em gozo com os beijos mais castos da sua amada.


Era manhã de setembro

Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro.

Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro.

O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto

Ela me beijava o membro

Um passarinho cantava,
bem dentro da árvora, dentro
da terra, de mim, da morte

Morte e primavera em ramo
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede

Ela me beijando o membro

Tudo o que eu tivera sido
quando me fora defeso
já não formava sentido

Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama

Ela a me beijar o membro

Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas

Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha

tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio

como beijava uma santa
no mais divino transporte
e num solene arrepio

beijava beijava o membro

Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo

Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta

Ela me beijava o membro

O capítulo do ser
o mistério do existir
o desencontro de amar

eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia

radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa

para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa

e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo

Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em dezembro

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Quando os olhos se me cerram de desejo e os meus braços se estendem para ti, é porque viestes me ver à tardinha. Florbela cantava o amor como ninguém.

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

No lamento em meio à Desesperança, o poeta é apenas um pobre menino que envelheceu de repente.


Recordo ainda


Recordo ainda... e nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...

Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...

Estrada afora após segui... Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:

Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino... acreditai!...
Que envelheceu, um dia, de repente!...

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Para muitos, uma atitude crítica é infrutífera. Para Brecht, dêem armas à crítica e estados podem ser destruídos.


On the critical attitude

The critical attitude
Strikes many people as unfruitful
That is because they find the state
Impervious to their criticism
But what in this case is an unfruitful attitude
Is merely a feeble attitude. Give criticism arms
And states can be demolished by it.

Canalising a river
Grafting a fruit tree
Educating a person
Transforming a state
These are instances of fruitful criticism
And at the same time instances of art.

Bertolt Brecht

(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht





Na lembrança do último outono, nos olhos dela ardiam os crepúsculos e folhas secas de outuno giravam em sua alma.

Veinte poemas de amor
y una canción desesperada

Poema 6

Te recuerdo como eras en el último otoño.
Eras la boina gris y el corazón en calma.
En tus ojos peleaban las llamas del crepúsculo.
Y las hojas caían en el agua de tu alma.

Apegada a mis brazos como una enredadera,
las hojas recogían tu voz lenta y en calma.
Hoguera de estupor en que mi sed ardía.
Dulce jacinto azul torcido sobre mi alma.

Siento viajar tus ojos y es distante el otoño:
boina gris, voz de pájaro y corazón de casa
hacia donde emigraban mis profundos anhelos
y caían mis besos alegres como brasas.

Cielo desde un navío. Campo desde los cerros.
Tu recuerdo es de luz, de humo, de estanque en calma!
Más allá de tus ojos ardían los crepúsculos.
Hojas secas de otoño giraban en tu alma.

Pablo Neruda

(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Em um dia de julho, o coração do poeta sangra como uma fonte. Ela vai para o amor e ele ao encontro da morte.


Balada de un día de Julio



Esquilones de plata
Llevan los bueyes.

?Dónde vas, niña mía,
De sol y nieve?

?Voy a las margaritas
Del prado verde.

?El prado está muy lejos
Y miedo tiene.

?Al airón y a la sombra
Mi amor no teme.

?Teme al sol, niña mía,
De sol y nieve.

?Se fue de mis cabellos
Ya para siempre.

?Quién eres, blanca niña.
¿De dónde vienes?

?Vengo de los amores
Y de las fuentes.

Esquilones de plata
Llevan los bueyes.

?¿Qué llevas en la boca
Que se te enciende?

?La estrella de mi amante
Que vive y muere.

?¿Qué llevas en el pecho
Tan fino y leve?

?La espada de mi amante
Que vive y muere.

?¿Qué llevas en los ojos,
Negro y solemne?

?Mi pensamiento triste
Que siempre hiere.

?¿Por qué llevas un manto
Negro de muerte?

?¡Ay, yo soy la viudita
Triste y sin bienes!

Del conde del Laurel
De los Laureles.

?¿A quién buscas aquí
Si a nadie quieres?


?Busco el cuerpo del conde
De los Laureles.

?¿Tú buscas el amor,
Viudita aleve?
Tú buscas un amor
Que ojalá encuentres.

?Estrellitas del cielo
Son mis quereres,
¿Dónde hallaré a mi amante
Que vive y muere?

?Está muerto en el agua,
Niña de nieve,
Cubierto de nostalgias
Y de claveles.

?¡Ay! caballero errante
De los cipreses,
Una noche de luna
Mi alma te ofrece.

?Ah Isis soñadora.
Niña sin mieles
La que en bocas de niños
Su cuento vierte.
Mi corazón te ofrezco,
Corazón tenue,
Herido por los ojos
De las mujeres.

?Caballero galante,
Con Dios te quedes.

?Voy a buscar al conde
De los Laureles...

?Adiós mi doncellita,
Rosa durmiente,
Tú vas para el amor
Y yo a la muerte.

Esquilones de plata
Llevan los bueyes.

?Mi corazón desangra
Como una fuente.

Federico Garcia Lorca

(1898-1936)

Mais sobre Federico Garcia Lorca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Federico_Garc%C3%ADa_Lorca

Gullar diz que estamos todos presos à vida como numa jaula. E que para nos libertar, é preciso quebrar todas as armadilhas do mundo.


No mundo há muitas armadilhas

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha
Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?
Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje
A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

João Cabral sofria tanto com uma enxaqueca crônica que ergueu em versos um monumento à aspirina. Esses poetas...

Num monumento à aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

João Cabral de Melo Neto

(1920-1997)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

sábado, novembro 11, 2006

Fernando Pessoa e Edu Lobo, em "Bóiam leves, desatentos", canta Edu Lobo.

Os pensamentos de mágoa são coisas vestindo nadas. Bóiam leves, desatentos.

Bóiam leves, desatentos

Bóiam leves, desatentos
Meus pensamentos de mágoa,
como no sono dos ventos,
As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.
Bóiam como folhas mortas,
À tona de águas paradas.
São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas.
Sono de ser, sem remédio,

vestígio do que não foi,
Leve mágoa, breve tédio,
Não sei se pára, se flui;
Não sei se existe ou se dói.

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Drummond aprendeu que o amor no claro é sempre triste. Desobediente, ele disse tudo a alguém, alguém que agora sabe e sempre saberá.

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade