quinta-feira, outubro 31, 2013

Vai-se a vida, resta a canção. Não foi uma canção perdida, ficaste no meu coração, diz Cecília Meireles ao seu amor.


Dedicatória

Vai-se a vida,
resta a canção.
Não foi uma canção perdida.
Ficaste no meu coração.

.................................................

Queria só um sorriso.
Mas deram-me um beijo.
Perdi metade do juízo
e fui dar ao Paraíso.
São Pedro, vendo-me a cara,
dizia: "Mas que pequena!
Com uma estrela tão clara
numa boca tão morena!"

(Qual seria este tesouro?
Seria o teu beijo?
Seria o sorriso?
Ou apenas o ouro
do meu dente siso?)

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

domingo, outubro 27, 2013

A uma mulher, Murilo Mendes dedicou um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Em versos plenos de amor e dor.


A uma mulher

Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam logo em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens eternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

sexta-feira, outubro 25, 2013

O que eu quero, o que eu amo, o que desejo em ti, é o teu calor animal. De Mario Quintana, em seu bilhete com endereço.


Bilhete com endereço

Mas onde já se ouviu falar
Num amor à distancia,
Num tele-amor?!
Num amor de longe...
Eu sonho é um amor pertinho
Um amor juntinho...
E, depois,
Esse calor humano é uma coisa
Que todos - até os executivos - têm.
É algo que acaba se perdendo no ar,
No vento
No frio que agora faz...
Escuta!
O que eu quero,
O que eu amo,
O que desejo em ti,

É o teu calor animal!...

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

quinta-feira, outubro 24, 2013

Ana Cristina Cesar queria um beijo que tivesse um blue e que imitasse feliz a delicadeza que mergulha no reino do prazer. Mas era um blue feliz.


Um beijo

Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

domingo, outubro 20, 2013

De tanto amor é que, um dia, em teu corpo hei de morrer de amar mais do que pude. Assim é o amor total, segundo Vinicius de Moraes.


Soneto do amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, outubro 19, 2013

Para as mulheres que tanto amou, Vinicius de Moraes escreveu os seus mais belos poemas. Mas o seu poema de amor mais importante foi dedicado a todos nós, brasileiros.


Pátria minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…"

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

quinta-feira, outubro 17, 2013

Leminski pedia calma, calma ao coração. Afinal, dizia ele, logo mais a gente goza.


Sossegue coração

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora calma calma

logo mais a gente goza
perto do osso

Paulo Leminsky
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, outubro 14, 2013

Para Brecht, o cordão partido pode ser novamente atado. Mas, ali onde ele foi deixado, não será achado novamente.


O cordão partido

O cordão partido pode ser novamente atado
Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

domingo, outubro 13, 2013

Vinícius sente que a mulher que há de vir é a anunciada da sua poesia. E que ela será dele, só dele, como a força é do forte e a poesia é do poeta.


A que há de vir


Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

Vinícius de Moraes 
(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, outubro 12, 2013

A vez primeira que te vi, era eu menino e tu menina. Com saudade, lembra Manuel Bandeira sua primeira paixão.


Três idades

A vez primeira que te vi,
Era eu menino e tu menina.
Sorrias tanto... Havia em ti
Graça de instinto, airosa e fina.
Eras pequena, eras franzina...

Ao ver-te a rir numa gavota,
Meu coração entristeceu.
Por quê? Relembro, nota a nota,
Essa ária como enterneceu
O meu olhar cheio do teu.

Quando te vi segunda vez,
Já eras moça, e com que encanto
A adolescência em ti se fez!
Flor e botão...sorrias tanto...
E o teu sorriso foi meu pranto...

Já eras moça...Eu, um menino...
Como contar-te o que passei?
Seguiste alegre o teu destino...
Em pobres versos te chorei.
Teu caro nome abençoei.

Vejo-te agora. Oito anos faz,
Oito anos faz que não te via...
Quanta mudança o tempo traz
Em sua atroz monotonia!
Que é do teu riso de alegria?

Foi bem cruel o teu desgosto.
Essa tristeza ê que mo diz...
Ele marcou sobre o teu rosto
A imperecível cicatriz:
És triste até quando sorris...

Porém teu vulto conservou
A mesma graça ingênua e fina...
A desventura te afeiçoou 
À tua imagem de menina.
E estás delgada, estás franzina...

Manuel Bandeira
(1886-1968)

sexta-feira, outubro 11, 2013

Eu fui, mas o que fui já me não lembra; eu sou, mas o que sou tão pouco é. Falta ver, se é que falta, o que serei, a esperança de José Saramago.


Passado, Presente, Futuro 

Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

José Saramago
(1922-2010)
Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, outubro 09, 2013

Meia-noite amarela de sexta-feira, lua cheia, meia quaresma, no pequeno arraial. O assombramento toma conta da noite nos versos de Guimarães Rosa.


Assombramento

Meia-noite amarela de sexta-feira,
com lua cheia, na meia quaresma,
no pequeno arraial.

Tinidos secos de matracas,
gente cantando orações tétricas
em frente às cruzes das encruzilhadas,
pedindo ao povo que está dormindo
rezas para as almas do purgatório
que eles estão encomendando.

E logo atrás vêm vultos brancos,
almas penadas sussurrando,
com ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas.

Mulas-sem-cabeça galopam doidas,
pelas estradas,
queimando o capim com as chispas dos cascos.
Há lobisomens uivando,
na velha igreja tábuas rangendo.
caixões pretos junto das cruzes,
mortalhas largadas diante das portas,
uma mulher longa sentando nos telhados,
e o Pitorro, assentado no morro,
de chapéu na cabeça, cachimbando.
Por entre as sepulturas,
o fogo-fátuo de fósforo escorre:
é um grande raio da lua amarela,
que desceu, por engano, ao cemitério,
e lá vai fugindo,
assombrado, amedrontado,
sem tempo de sumir.
Latiram ao longe:
foi a noite, soltando os seus cachorros
"Corta-Vento", "Rompe-Ferro", "Acode-a-Tempo",
para o socorrer...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

terça-feira, outubro 08, 2013

Uma galinha assustada, de bico aberto, barbelas e cristas envermelhadas, só as artérias palpitando no pescoço. Para Adélia Prado, uma descoberta.


Dia

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

Adélia Prado
(1935)

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

segunda-feira, outubro 07, 2013

Eu deixarei o mundo com fúria. Não chorarei, não há soluço maior do que despedir-se da vida, diz Ferreira Gullar em seu poema de despedida.


Despedida

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.

Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

domingo, outubro 06, 2013

Eu te peço perdão por te amar de repente. Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos, diz Vinicius de Moraes à mulher amada.


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passados eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

sexta-feira, outubro 04, 2013

As pessoas sensíveis são capazes de fazer barbaridades, como ganhar dinheiro com o suor dos outros. Perdoai-lhes Senhor, porque eles sabem o que fazem


As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheias de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

quinta-feira, outubro 03, 2013

Affonso Romano de Sant'Anna sentiu tantas vezes a força de seus desejos que escreveu um poema de amor. Amor à vida.


Desejos

Disto eu gostaria:
ver a queda frutífera dos pinhões sobre o gramado
e não a queda do operário dos andaimes
e o sobe-e-desce de ditadores nos palácios.

Disto eu gostaria:
ouvir minha mulher contar:
- Vi naquela árvore um pica-pau em plena ação,
e não: - Os preços do mercado estão um horror!

Disto eu gostaria:
que a filha me narrasse:
-As formigas neste inverno estão dando tempo às flores,
e não:-Me assaltaram outra vez no ônibus do colégio.

Disto eu gostaria:
que os jornais trouxessem notícias das migrações
dos pássaros
que me falassem da constelação de Andrômeda
e da muralha de galáxias que, ansiosas, viajam
a 300 km por segundo ao nosso encontro.

Disto eu gostaria:
saber a floração de cada planta,
as mais silvestres sobretudo,
e não a cotação das bolsas
nem as glórias literárias.

Disto eu gostaria:
ser aquele pequeno inseto de olhos luminosos
que a mulher descobriu à noite no gramado
para quem o escuro é o melhor dos mundos.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

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terça-feira, outubro 01, 2013

Deprimido, Murilo Mendes diz que a mulher não é o amor, a poesia é o amor. E a poesia da ausência da mulher é equivalente à poesia da posse da mulher.


A desconsoladora

Mulher, eu te procuro continuamente. É mais fácil achar Deus, do que te
achar.

Tenho por ti uma grande atração e repulsão - ao mesmo tempo.

Eu, adormeço com teu amor e deperto com o ódio a ti. E te destruo e te
construo a todo o instante.

Hás de me perseguir até a imortalidade. A paz da mulher não é a paz de
Deus.

A mulher não é o amor. A poesia é o amor. A poesia da ausência da mulher
é equivalente à poesia da posse da mulher.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes