quarta-feira, agosto 31, 2011
Oswald de Andrade escreveu um poema sobre os soldados brasileiros que lutaram contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial. E foi bombardeado por parte da crítica, por que será?
Canto do pracinha só
Soldado
Resoluto e pequenino
Do Brasil
Levaste na tua sacola
As cores claras da aurora
Levaste no teu bornal
As cores quentes do sol
Levaste no teu fuzil
A fúlgida flor de anil
Da bandeira do Brasil
Para o mundo libertar
Nas noites do tombadilho
Quando pávido espiavas
As estrelas no plúmbeo mar
Por sobre o teu capacete
Um cruzeiro de prata
Fazia o sinal da cruz
Que tua mãe ensinou
Da torre negra e sombria
Do teu carro de assalto
Da baioneta calada
Da revolta artilharia
Da asa do teu avião
O facho da liberdade
Crepitou na epopéia
Alçado por tua mão
Pracinha tu és povo
Calejado do Brasil
Carregas como um noivado
A morte no teu fuzil
Agora deita o teu peito
No regaço da pátria
Conta, não fiques mudo
Brigaste em Castelnuovo
Subiste em Montecastelo
Fala do boche sanhudo
Que te encontrou na batalha
Na hora letal e fria
Pegaste o porco nazista
Sangraste o porco fascista
Que pretendeu macular
O teu bocado de pão
O teu bocado de honra
O teu bocado de lar
Vou te contar a história
Do Zé Tedesco e do Fritz
Da Lurdinha e do Lurdão
Que metralhavam o chão
Onde eu estava deitado
A bala zunia pertinho
Matou Carlo e Chiquinho
Quebrou vidro, quebrou pedra
Queria o mundo acabar
Queria o mundo enlutar
Mas eu ouvia baixinho
A voz da Pátria falar
Caminha soldado
Pra frente da luta
Que a luta é vitória
É canto de glória
A morte recria
A morte respeita
Quem sabe lutar
Outros deixaste esperando
No comovido poema do lar
Não tenho família, não tenho
Ninguém pra me desvelar
Sou sozinho no mundo
Não tenho família, não tenho
Ninguém pra me desvelar
Sou sozinho no mundo
Não tenho ninho nem lar
Amargo remôo a pena
Do homem que foi jogado
Na dura roda do azar
Não conheci pai e mãe
Não tenho por quem lutar
Se aqui ficar debruçado
Por mim ninguém vem chorar
Não pracinha querido
Marcha pra frente da luta
A vida dos brasileiros
Depende do teu combate
Faze com que tua pátria
No jogo da confusão
O mundo inteiro arrebate
Nasceste no berço verde
Da terra de Castro Alves
Da terra de Patrocínio
Da terra que não suporta
Os ferros da escravidão
Luta pracinha, luta
Contra toda tirania
Ataca o ódio, a inveja
Dilacera a vilania
Há tanta cobra na terra
Há tanta cobra na mar
Há tanta cobra no mundo
Tanto, tanto Calabar
Não, pracinha dorido
A cobra que está fumando
A todos há de vencer
A todos há de fumar
Tua missão é maior
Que a simples luta da guerra
Tua missão é tirar
Da ruína um mundo melhor
Vou teus irmãos convocar
João, pracinha do Norte
Pedro, pracinha do Sul
Antonio, de Mato Grosso
Ricardo, da Paraíba
Francisco, do Ceará
Negro do cais da Bahia
Mineiro do Sabará
Ofereço-te quarenta e quatro milhões
Novecentos e noventa e nove mil
Novecentos e noventa e nove irmãos
Que mais tu queres, brasileiro?
Conquistastes a atmosfera antes de conquistar a liberdade
Na passarela de Bartolomeu de Gusmão
Bebeste o leite
Dos seringais atolados do Amazonas
O sal que te nutre é do Rio Grande do Norte
A carne que te enrijece é do Rio Grande do Sul
E no deserto antigo de Volta Redonda
Encastelaste as torres metálicas da siderurgia
A Pátria te promete os abraços do porvir
E te oferece a humilde oblata de sua grave realidade
Pátria lavada de lágrimas
Sangrada de suores
Atropelada pelos sicários do latifúndio,
Gravada de rebeldias, de revelações
Pátria dos coronéis que arcabusaram a liberdade
Absurda pátria da mortalidade infantil
Dos patrões que mataram a vida
No seio das operárias tornadas infecundas
Pelas tarefas
Pátria trágica
Que dá maleita, isolamento, saudade e atropelo
E as farturas vertiginosas dos estômagos vazios
O ouro da tua bandeira
Não descora na línfa amarela dos rios
O teu verde não mais significa
A agonia das crianças empaludadas
E teu azul não beija apenas as grossas chagas
Que estrelam os mendigos dos caminhos
A tua noite não desce sempre
Sobre a física dos cortiços
A iluminação melancólica dos parques
E o prumo neutro dos arranha-céus
Pátria majestosa
Desde os Inconfidentes e os Andradas
Os grandes padres rebeldes
Roma, Caneca, Toledo e Rolim
Pátria das musas e das guerrilheiras
Barbara Heliodora, Marília, Anita Garibaldi
Pátria eleita de Tomás Antonio Gonzaga
Pátria dos namorados, dos insubmissos e dos mártires
Fogueira de Antonio José
Alarma de Vida Rica
Proclamação do Ipiranga
Bandeira partida de Copacabana
Muralha queimada do 3º Regimento
Pátria de Luiz Carlos Prestes
Sou Felipe dos Santos
Sou o Zumbi dos Palmares
Oswald de Andrade
(1890-1954)
Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Oswald de Andrade
terça-feira, agosto 30, 2011
Ouvir de manhã uma única voz, dormir escutando uma única voz. É tudo o que quero, é tudo o que deseja Manuel Bandeira.
A Paz
Ter em minhas mãos
Uns jasmins com sol,
Com o primeiro sol;
Saber que amanhece
Em meu coração;
Ouvir de manhã
Uma única voz...
É tudo o que quero.
Regressar sem ódios,
Calmo adormecer,
Sonhar ter nas mãos
Silindras com sol,
Com o último sol;
Dormir escutando
Uma única voz...
É tudo o que quero.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
(/code)
(code)
Marcadores:
Manuel Bandeira
segunda-feira, agosto 29, 2011
Preso à sua classe e a algumas roupas, Drummond vai de branco pela rua cinzenta. E nasceu uma flor, que furou o asfalto, a náusea, o tédio e o ódio.
A flor e a náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
domingo, agosto 28, 2011
Tudo o que sou ficou com o momento, e o momento parou. Que a vida tenha fim nesse momento, implora Fernando Pessoa.
Pousa
Pousa, um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento,
Que a vida tenha fim
Nesse momento!
No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.
Só tua alma! sem tu
Só o teu pensamento
E eu vendo, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Fernando Pessoa
sábado, agosto 27, 2011
Você é louco? Não, sou poeta, respondeu em versos Mario Quintana.
Simultaneidade
- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo!
Eu creio em Deus! Deus é um absurdo!
Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.
Mario Quintana
(1906-1994)
Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
(/code)
(code)
Marcadores:
Mario Quintana
sexta-feira, agosto 26, 2011
Adélia Prado aprendeu que o gênio mau da noite a forçava com saudade e desgosto pelo mundo. E que a salvação opera nos abismos.
Estação de maio
A salvação opera nos abismos.
Na estação indescritível,
o gênio mau da noite me forçava
com saudade e desgosto pelo mundo.
A relva estremecia
mas não era pra mim,
nem os pássaros da tarde.
Cães, crianças, ladridos,
despossuíam-me.
Então rezei: salva-me, Mãe de Deus,
antes do tentador com seus enganos.
A senhora está perdida?
Disse o menino,
é por aqui.
Voltei-me
e reconheci as pedras da manhã.
Adélia Prado
(1935)
Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado
(/code)
(code)
Marcadores:
Adélia Prado
quinta-feira, agosto 25, 2011
Em mil novecentos e oitenta e sempre, Leminski dançava ao luar, ao som da valsa "A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia". Ah, não se faz mais tempo como antigamente.
Blade Runner Waltz
Em mil novecentos e oitenta e sempre,
ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao som da valsa
A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
ah, não se faz mais tempo
como antigamente
Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.
Em mil novecentos e oitenta e sempre,
ah, que tempos aqueles,
dançamos ao luar, ao som da valsa
A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,
nome, confesso, um pouco longo,
mas os tempos, aquele tempo,
ah, não se faz mais tempo
como antigamente
Aquilo sim é que eram horas,
dias enormes, semanas anos, minutos milênios,
e toda aquela fortuna em tempo
a gente gastava em bobagens,
amar, sonhar, dançar ao som da valsa,
aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento
que a gente dançava em algum setembro
daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
(/code)
(code)
Marcadores:
Paulo Leminski
terça-feira, agosto 23, 2011
Affonso Romano de Sant'Anna começa a amar as coisas de um modo diferente. Com o despreendimento que só têm os que amando tudo o que perderam já não mentem.
Despedidas
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)
Mais sobre Affonso Romano dew Sant'Anna em]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna
(/code)
(code)
Marcadores:
Affonso Romano de Sant'Anna
segunda-feira, agosto 22, 2011
Não é mentira a dor que dói em mim. É outra, no sofrimento de Ana Cristina Cesar.
Fisionomia
Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar
(/code)
(code)
Marcadores:
Ana Cristina Cesar
domingo, agosto 21, 2011
Os amantes se amam cruelmente, um se beija no outro, refletido. Deixaram de existir, mas o existido continua a doer eternamente.
Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.
Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.
Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.
E eles quedam mordidos para sempre,
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
sábado, agosto 20, 2011
Este poema exigiu 7 folhas de papel para Abgar Renault escrevê-lo. E para ele, 7 é um mau número, é o número 13 da sua vida.
7
Este poema exigiu 7 folhas de papel.
Para escrevê-lo já fumei raivosamente 7 cigarros
e rasguei-o 7 vezes.
7 é um mau número: é o número 13 da minha vida.
Segundo várias aritméticas, não é divisível por 2,
e eu tenho horror a todos os números (e a todas as coisas)
não divisíveis por 2.
Sexta-feira, 7...
Isto hoje não acaba bem...
Vai a chuva ficar chovendo para sempre.
O meu relógio vai continuar disparado,
marcando horas inexistentes.
Ah se os ponteiros andassem para trás!
Ah se ao menos a chuva chovesse para cima
e eu fizesse destes nulos versos
uma folha noturna e molhada!
Abgar Renault
(1901-1995)
Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault
(/code)
(code)
Marcadores:
Abgar Renault
sexta-feira, agosto 19, 2011
Ricardo Reis quer dos deuses só que não o lembrem. Assim, será livre, sem dita nem desdita.
Quero dos deuses
Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre - sem dita nem desdita.
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam: ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.
A quem deuses concedem
Nada, tem liberdade.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Ricardo Reis
quinta-feira, agosto 18, 2011
Saramago sabe que outro sol mais aberto lhe dará aos acentos do canto outra harmonia. E na sombra ele dirá que se anuncia a toalha de luz por onde vá.
Contracanto
Aqui, longe do sol, que mais farei
Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei.
Mas neste débil canto há outra voz
Que tenta libertar-se da surdina,
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem nas mós.
Outro sol mais aberto me dará
Aos acentos do canto outra harmonia,
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.
José Saramago
(1922-2010)
Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(/code)
(code)
Marcadores:
José Saramago
quarta-feira, agosto 17, 2011
Quem for louco que volte, disse Leminski. E você, o que acha?
Quem for louco que volte
vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte
quem for louco
que volte
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
(/code)
(code)
Marcadores:
Paulo Leminski
terça-feira, agosto 16, 2011
Para Vinicius, talvez nos imensos limites da pátria estejam os puros. E apenas nele o ilimitado, longe de tudo, longe mesmo do amor longe dele.
Solilóquio
Talvez os imensos limites da pátria me lembrem os puros
E amargue em meu coração a descrença.
Sinto-me tão cansado de sofrer, tão cansado! - algum dia, em alguma parte
Hei de lançar também as âncoras das promessas
Mas no meu coração intranquilo não há senão fome e sede
De lembranças inexistentes.
O que resta da grande paisagem de pensamentos vividos
Dize, minha alma, senão o vazio?
São verdades as lágrimas, os estremecimentos, os tédios longos
As caminhadas infinitas no oco da eterna voz que te obriga?
E no entanto o que crê em ti não tem o teu amor aprisionado
Escravo de fruições efêmeras...
Ah, será para sempre assim...o beijo pouco do tempo
Na face presa da etrnidade
E em todos os momentos a sensação pobre de estar vivendo
E ter em ti somente o que não pode ser vivido
E em todos os momentos a beleza, e apenas
Num só momento a prece...
Nunca me sorrirão vozes infantis no corpo, e quem sabe por tê-las
Muito ardentemente desejado...
Talvez os limites da pátria me lembrem os puros e enlouqueça
Em mim o que não foi da carne conquistado.
Muitas vezes hei de me dizer que não sou senão juventude
No seio do pântano triste.
Quero-te, porém, vida, súplica! o medo de mim mesmo
Não há na minha saudade.
É que dói não viver em amor e renúncia
Quando o amor e a renúncia são terras dentro de mim
E uma vez mais me deitarei no frio, guia de luz perdido
Sem mistérios e sem sombra.
Bem viram os que temeram a minha angústia e as que se disseram:
- Ele perdeu-se no mar!
No mar estou perdido, sem céu e sem terra e sem sede de água
E nada senão minha carne resiste aos apelos do ermo...
O que restará de ti, homem triste, que não seja a tua tristeza
Fruto sobre a terra morta...
Não pensar, talvez...Caminhar ciliciando a carne
Sobre o corpo macerado da vida
Ser um milhão na mesma cidade dasabitada
E sendo apenas um, ir acordando o amor e a angústia
E da inquietação vinda e multiplicada, arrancar um riso sem força
Sobre as paisagens inúteis.
Mas, oh, saber... - saber, até o fundo do conhecimento
Sobre as aves e os lírios!
Saber a pureza bailando o pensamento como um gênio perfeito
E na alma os cantos límpidos e o vôo de uma poesia!
E nada poder, nada, senão ir e vir como a sombra do condenado
Pelo silêncio em escuta...
E não sou um covarde - sofro pelas manhãs e pelas tardes
E pelas noites desvaneço...
No entanto, é covarde que me sinto no olhar dos que me amam
E no prazer que arranco cem vezes da carne ou do espírito que quero
Ai de mim, tão grande, tão pequeno...- e quando o digo intimamente!
E em ambos, sem pânico...
E me pergunto: Serei vazio de amor como os ciprestes
No seio da ventania?
Serei vazio de serenidade como as águas no seio do abismo
Ou como os parasitas no seio da mata serei vazio de humildade?
Ou serei o amor eu mesmo e a calma e a humildade eu mesmo
No seio do infinito vazio?
E me pergunto: O que é o perigo , onde a sua fascinação profunda
E o gosto ardente de morrer?
Não é a morte o meu voto murmurante
Que caminha comigo pelas estradas e adormece no meu leito?
O que é morrer senão viver placidamente
Na imutável espera?
Nada respondo - nada responde o desespero
Solidão sem desvario.
Mas resta, resta a ânsia das palavras murmuradas ao vento
E a emoção das visões vividas no seu melhor momento
Resta a posse longínqua e em eterna lembrança
Da imagem única.
Resta?...Já me disse blasfêmias no âmago do prazer sentido
Sobre o corpo nu da mulher
Já arranquei de mim mesmo o sumo da sabedoria
Para fazê-lo vibrar dolorosamente à minha vontade
E no entanto ...posso me glorificar de ter sido forte
Contra o que sempre foi?
Hão de ir todos, todos, para as celebrações e para os ritos
Ficarei em casa, sem lar
Hei de ouvir as vozes dos amantes que não se entediam
E dos amigos que não se amam e não lutam
As portas abertas, à espera dos passos do retardatário
Não receberei ninguém.
Talvez nos imensos limites da pátria estejam os puros
E apenas em mim o ilimitado...
Mas oh, cerrar os olhos, dormir, dormir longe de tudo
Longe mesmo do amor longe de mim!
E enquanto se vão todos , heróicos santos, sem mentira ou sem verdade
Ficar, sem perverança...
Vinicius de Moraes
(1913-1990)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes
(/code)
(code)
Marcadores:
Vinicius de Moraes
segunda-feira, agosto 15, 2011
O dia em que Murilo Mendes confessou que gostaria de ter sido Adão. Para ser como o primeiro poeta, ao mesmo tempo pai, mãe, irmão, esposo e amante.
O primeiro poeta
Carne cansada!
E eu com os olhos desmedidamente abertos,
O coração aberto desde o amanhecer da vida.
Antes eu tivesse dormido um sono fundo
E o Criador fizesse nascer uma mulher do meu flanco,
Apresentando-me essa mulher filha da noite.
Ó Adão, só tu foste ao mesmo tempo pai, mãe, irmão, esposo e amante.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
(/code)
(code)
Marcadores:
Murilo Mendes
domingo, agosto 14, 2011
Em meio à depressão, Fernando Pessoa diz que tudo quanto sonhou tem perdido antes de o ter. E que um verso ao menos ficou do inobtido, música de perder.
Tudo quanto
Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.
Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.
A ti talvez, que não te têm dado.
Darão enfim...
A mim... Sei que eu que duro e inato fado
Me espera a mim?
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Fernando Pessoa
sábado, agosto 13, 2011
Dante Milano pede perdão à Lígia pelos poetas que a desnudam, a divinizam, a prostituem. Mas em seus versos inteira a possui.
Elegia a Lígia
Lígia, teu nome de elegia
Te dá ao corpo moço um ar antigo
E cria em meu ouvido lento ritmo
Que me arrasta o absorto espírito
Para o verso e sua inútil tortura.
Tôrso de ânfora esguia!
Só o que amou deveras um quadro, um vaso, um objeto precioso,
Pode sentir o relevo suave do teu ventre,
Corpo de mulher,
Forma antiga e novíssima.
Perdoa aos poetas que te desnudam, te divinizam, te prostituem.
Em meus versos inteira te possuo.
Que importa a fêmea que se nega?
Transformada em poema,
Amo-te ainda mais!
Ajoelho agarrado a teus joelhos,
Não com palavras de fé
Mas impudente e irreverente
Profanando mas adorando
A tua imagem desfigurada.
Dante Milano
(1899-1991)
Mais sobre Dante Milano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano
(/code)
(code)
Marcadores:
Dante Milano
quinta-feira, agosto 11, 2011
A vida é eterna, diz Adélia Prado. Para os irmãos, ela diz que é preciso louvar a Deus, repartir a côdea, o boi, vosso marido e esposa e, mais que tudo, a palavra sem fel.
Homilia
Quem dentre vós
dirá convictamente:
os alquimistas morreram
- aqueles simples -
morreram os conquistadores,
os reis
os tocadores de alaúde,
os mágicos.
Oh, engano!
a vida é eterna, irmãos,
aquietai-vos, pois, em vossas lidas,
louvai a deus e reparti a côdea
o boi, vosso marido e esposa
e sobretudo
e mais que tudo
a palavra sem fel.
dirá convictamente:
os alquimistas morreram
- aqueles simples -
morreram os conquistadores,
os reis
os tocadores de alaúde,
os mágicos.
Oh, engano!
a vida é eterna, irmãos,
aquietai-vos, pois, em vossas lidas,
louvai a deus e reparti a côdea
o boi, vosso marido e esposa
e sobretudo
e mais que tudo
a palavra sem fel.
Adélia Prado
(1935)
Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado
(/code)
(code)
Marcadores:
Adélia Prado
quarta-feira, agosto 10, 2011
Para Oswald de Andrade, o poeta nasceu compromissado com a liberdade. E inutilmente conheceu a Estrela do Pastor.
Fronteira
Quero estudar filosofia em Paris
Não pode ser
Só se o compadre Antunes te mandar
Mas a vida mesmo assim é boa
O compadre Antunes faliu
A vida é boa
O compadre Antunes morreu
Velho sino mudo
Que paras o teu ritmo no pânico
E aceleras os teus passos
Na sedição
A semente frutifica sem aviso
O mascarado encherá de guizos tua mesa farta
Não pode ser
Mesmo assim a vida é boa
Poeta nasceste compromissado com a liberdade
E inutilmente conheceste a Estrela do Pastor
Oswald de Andrade
(1890-1954)
Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Oswald de Andrade
terça-feira, agosto 09, 2011
Num mundo de espelhos, Mario Quintana quer saber: quem foi que tomou agora o fio da minha vida? Que outro lábio canta nossa eterna primeira canção?
Vidas
Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.
Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.
E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...
Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?
Mario Quintana
(1906-1994)
Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
(/code)
(code)
Marcadores:
Mario Quintana
segunda-feira, agosto 08, 2011
Hoje até parece incrível, mas para Cruz e Sousa a dança do ventre era macabra e multiforme. Um verme estranho, colossal, enorme, do demônio sangrento da luxúria.
Dança do ventre
Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.
O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.
Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!
Cruz e Sousa
(1861-1898)
Mais sobre Cruz e Sousa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruz_e_Sousa
(/code)
(code)
Marcadores:
Cruz e Sousa
domingo, agosto 07, 2011
Em seu pequeno museu sentimental, Drummond vai beijando a memória daqueles beijos. Beijos que da boca deslizavam para o abismo de flores e resinas.
No pequeno museu sentimental
No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.
Apalpo, acaricio a flora negra,
e negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.
Os movimentos vivos no pretérito
enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.
Vou beijando a memória desses beijos.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
sábado, agosto 06, 2011
No tempo em que festejavam o dia dos seus anos, Álvaro de Campos era feliz e ninguém estava morto.Restou a raiva de não ter trazido o passado roubado.
Aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus! , o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos.
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Alvaro de Campos
sexta-feira, agosto 05, 2011
Luis Vaz de Camões diz à Senhora que Deus não quer que ela seja ingrata. E que não deseja sofrer esta pena rigorosa que o valor dela lhe obriga.
Tão crua Ninfa, nem tão fugitiva
Tão crua Ninfa, nem tão fugitiva,
com lindo pé pisou
a verde erva, nem colheu as brancas flores,
soltando seus cabelos d'ouro fino
ao vento que em mil doces nós os olhos ata,
nem tão linda, discreta e tão fermosa
como esta minha imiga.
Aquilo que em pessoa hoje viva
no mundo não se achou,
quis nela a Natureza, seus primores
mostrando, que se achasse de contino:
castidade e beleza; üa me mata,
a outra, de suave e deleitosa,
me faz doce a fadiga.
Mas esta bela fera, tão esquiva,
que o prazer me roubou,
quis-mo pagar seus únicos louvores,
cantando eu num estilo dela indino;
porque, se de louvor tão alto trata,
não sei eu tão baixo verso e prosa
que escreva nem que diga.
Aquela luz que a do Sol claro priva,
e a minha me cegou;
aquele mover de olhos, minhas dores
causando do olhar manso e divino;
o doce rir, que esta alma desbarata,
faz a sua pena desejosa
e de seu mal amiga.
Dos belos olhos veio a a flama viva
que n'alma se ateou
com a lenha de vossos disfavores,
queimando dentro o coração mofino,
cujo fim, por mor dano, se dilata
com a esperança falsa e duvidosa
que forçado é que siga.
Minha
ou vossa vendo-se cativa
quem Deus livre criou,
se aqueixa desses olhos roubadores,
culpando ao claro raio peregrino;
mas logo a luz suave, que a resgata,
de vossa linda vista graciosa
a faz que se desdiga.
quem Deus livre criou,
se aqueixa desses olhos roubadores,
culpando ao claro raio peregrino;
mas logo a luz suave, que a resgata,
de vossa linda vista graciosa
a faz que se desdiga.
Nenhüa
que no mundo humana viva,
que o Criador formou
por milagre maior entre os maiores,
formou um feito de tal Feitor dino;
Deus não quer que sejais, Senhora, ingrata,
mas que ajudeis üa alma desditosa
que em vós servir periga:
que o Criador formou
por milagre maior entre os maiores,
formou um feito de tal Feitor dino;
Deus não quer que sejais, Senhora, ingrata,
mas que ajudeis üa alma desditosa
que em vós servir periga:
a
sofrer esta pena rigorosa
vosso valor me obriga.
vosso valor me obriga.
(1524-1580)
Mais sobre Luis Vaz de Camões em
(/code)
(code)
Marcadores:
Luís Vaz de Camões
quinta-feira, agosto 04, 2011
Fazes comigo o mesmo que fizeste com os pronomes, pede Bastos Tigre àquela mulher. Ela o deixa perturbado com a sua sintaxe feminina.
Sintaxe Feminina
Leio: "Meu bem não passa-se um só dia
Que de você não lembre-me"... Ora dá-se!
Mas que terrível idiossincrasia!
Este anjo tem as regras de sintaxe!
Continuo: "Em ti penso noite e dia...
Se como eu amo a ti, você me amasse!
"Não! É demais! Com bruta grosseria
A gramática insulta em plena face!
Respondo: "Sofres? Sofrerei contigo...
Por que razão te ralas e consomes?
Não vês em mim teu dedicado amigo?
Jamais, assim, por teu algoz me tomes!
Tu me colocas mal! Fazes comigo
O mesmo que fizeste com os pronomes!"...
Bastos Tigre
(1882-1957)
Mais sobre Bastos Tigre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bastos_Tigre
(/code)
(code)
Marcadores:
Bastos Tigre
quarta-feira, agosto 03, 2011
Affonso Romano está amando e não percebe porque tem medo. Mas está amando tanto que nem a ele mesmo revela este segredo.
Amor e medo
Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.
Affonso Romano de Sant'Anna
(1937 )
Mais sobre Affonso Romano de Sant' Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna
(/code)
(code)
Marcadores:
Affonso Romano de Sant'Anna
terça-feira, agosto 02, 2011
A propósito do nada, Ferreira Gullar escreveu um poema.
A propósito do nada
sou
para o outro
este corpo esta
voz
sou o que digo
e faço
enquanto posso
mas
para mim
só sou
se penso que sou
enfim
se sou
a consciência
de mim
e quando
vinda a morte
ela se apague
serei o que alguém acaso
salve
do olvido
já que
para mim
(lume apagado)
nunca terei existido
Ferreira Gullar
(1930)
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
(/code)
(code)
Marcadores:
Ferreira Gullar
segunda-feira, agosto 01, 2011
No misérrimo desterro onde habita, Ricardo Reis é fiel, sem que queira, àquele antigo erro pelo qual está proscrito. O erro de querer ser igual a alguém feliz.
Aqui
Aqui, neste misérrimo desterro
Onde, nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz, em suma - quando a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser eu.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.m.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
http://en.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Ricardo Reis
Assinar:
Postagens (Atom)