sábado, maio 20, 2006

Como diz o poeta, são pássaros que chegam.


Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana



Octavio Paz, poeta mexicano, Premio Nobel de Literatura de 1990. E um dos seus mais lindos poemas.


Antes del comienzo


Ruidos confusos,
claridad incierta
Otro día comienza.
Es un cuarto en penumbra
y dos cuerpos tendidos.
En mi frente me pierdo
por un llano sin nadie.
Ya las horas afilan sus navajas.
Pero a mi lado tú respiras;
entrañable y remota
fluyes y no te mueves.
Inaccesible si te pienso,
con los ojos te palpo,
te miro con las manos.
Los sueños nos separan
y la sangre nos junta:
somos un río de latidos.
Bajo tus párpados madura
la semilla del sol.
El mundo
no es real todavía,
el tiempo duda:
sólo es cierto
el calor de tu piel.
En tu respiración escucho
la marea del ser,
la sílaba olvidada del Comienzo.


Octavio Paz
(1914-1998)

Mais sobre Octavio Paz em
http://en.wikipedia.org/wiki/Octavio_Paz

"Muy graciosa es la doncella", de Gil Vicente. Considerada uma das 10 melhores poesias da língua espanhola.


Muy graciosa es la doncella


Muy graciosa es la doncella,
¡cómo es bella y hermosa!

Digas tú, el marinero
que en las naves vivías,
si la nave o la vela o la estrella
es tan bella.

Digas tú, el caballero
que las armas vestías,
si el caballo o las armas o la guerra
es tan bella.

Digas tú, el pastorcico
que el ganadico guardas,
si el ganado o los valles o la sierra
es tan bella.

Gil Vicente
(1465-1536)

Mais sobre Gil Vicente em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gil_Vicente

"Segue o teu destino", de Ricardo Reis*. Como disse o poeta, os deuses são deuses porque não se pensam.



Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Para muitos, um dos mais belos poemas de Neruda.


Poema I


Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
te pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mi cuerpo de labriego salvaje te socava
y hace saltar el hijo del fondo de la tierra.

Fui solo como un túnel.
De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como un arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.

Pero cae la hora de la venganza, y te amo.
Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme.
Ah los vasos del pecho! Ah los ojos de ausencia!
Ah las rosas del pubis! Ah tu voz lenta y triste!

Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia sin límite, mi camino indeciso!
Oscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

sexta-feira, maio 19, 2006

Até hoje os estudiosos da obra de Blake discutem se ele era um artista um gênio, um místico ou um louco? E não chegam nunca a uma conclusão.


A Song


Sweet dreams, form a shade
O'er my lovely infant's head!
Sweet dreams of pleasant streams
By happy, silent, moony beams!

Sweet Sleep, with soft down
Weave thy brows an infant crown
Sweet Sleep, angel mild,
Hover o'er my happy child!

Sweet smiles, in the night
Hover over my delight!
Sweet smiles, mother's smile,
All the livelong night beguile.

Sweet moans, dovelike sighs,
Chase not slumber from thine eyes!
Sweet moan, sweeter smile,
All the dovelike moans beguile.

Sleep, sleep, happy child!
All creation slept and smiled.
Sleep, sleep, happy sleep,
While o'er thee doth mother weep.

Sweet babe, in thy face
Holy image I can trace;
Sweet babe, once like thee
Thy Maker lay, and wept for me:

Wept for me, for thee, for all,
When He was an infant small.
Thou His image ever see,
Heavenly face that smiles on thee!

Smiles on thee, on me, on all,
Who became an infant small;
Infant smiles are his own smiles;
Heaven and earth to peace beguiles.

William Blake
(1757-1827)

Mais sobre William Blake em
http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Blake

Keats até que não queria muito, não?


Give Me Women, Wine, and Snuff

Give me women, wine, and snuff
Untill I cry out "hold, enough!"
You may do so sans objection
Till the day of resurrection:
For, bless my beard, they aye shall be
My beloved Trinity.

John Keats
(1796-1821)

Mais sobre John Keats em
http://en.wikipedia.org/wiki/John_Keats

Os versos podem até ser ser ásperos e duros, mas a poesia será sempre uma canção de amor.


E por que haverias de querer


E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.


Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

O que você acha, existe amor que não é imprevisto?


Canção do Amor Imprevisto


Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E minha poesia é um vicio triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com tua boca fresca de madrugada,
Com teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel,
sem compreender nada,
numa alegria atônita...
A súbita alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Estes versos talvez sejam os preferidos e os mais conhecidos da língua portuguesa. Mas o poeta sempre sofre a dor que deveras sente.


Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

terça-feira, maio 16, 2006

A interrogação, quem a faz?


Olho as Minhas Mãos


Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras !
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço ?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação !
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?
Quem faz - em mim - esta interrogação ?

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

A exploração dos camponeses pelo Coronel. Infelizmente, uma história bem antiga no Brasil..


João Boa Morte Cabra Marcado para Morrer


Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro".
Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

segunda-feira, maio 15, 2006

A matemática da poesia.


Um bom poema


um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto


Paulo Leminski
(1944-1989)

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Para Neruda, amor de soldado era amor malvado.


El amor del soldado


(de Los versos del capitan)
En plena guerra te llevo la vida
a ser el amor del soldado.
Con tu pobre vestito de seda,
tus uñas de piedra falsa,
te toco caminar por el fuego.

Ven aca, vagabunda,
ven a beber sobre mi pecho rojo rocio.
No querias saber donde andabas,
eras la compañera de baile,
no tenias partido ni patria.
Y ahora a mi lado caminando
ves que conmigo va la vida
y que detras esta la muerte.
Ya no puedes volver a bailar
con tu traje de seda en la sala.
Te vas a romper los zapatos,
pero vas a crecer en la marcha.
Tienes que andar sobre las espinas
dejando gotitas de sangre.
Besame de nuevo, querida.
Limpia el fusil, camarada.

Pablo Neruda
(1904 -1973)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Com a sua famosa e crônica enxaqueca, o poeta se rendeu aos encantos da aspirina.


Num monumento à aspirina


Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.


João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Por que tudo é tão difícil e complicado no amor?


Escreve-me ...


Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!

Escreve-me!Há tanto,há tanto tempo
Que te não vejo, amor!Meu coração
Morreu já,e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração! "Amo-te!"

Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!

Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

domingo, maio 14, 2006

Este é um dos poemas mais citados em todo o mundo. E, por incrível que pareça, é muito pouco conhecido.


Romance sonámbulo


Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura
ella sueña en su baranda,
verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Verde que te quiero verde.
Bajo la luna gitana, las cosas le están mirando
y ella no puede mirarlas.

Verde que te quiero verde.
Grandes estrellas de escarcha,
vienen con el pez de sombra
que abre el camino del alba.
La higuera frota su viento
con la lija de sus ramas,
y el monte, gato garduño,
eriza sus pitas agrias.
¿Pero quién vendrá? ¿Y por dónde...?
Ella sigue en su baranda,
verde carne, pelo verde,
soñando en la mar amarga.

Compadre, quiero cambiar
mi caballo por su casa,
mi montura por su espejo,
mi cuchillo por su manta.
Compadre, vengo sangrando,
desde los montes de Cabra.
Si yo pudiera, mocito,
ese trato se cerraba.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
Compadre, quiero morir
decentemente en mi cama.
De acero, si puede ser,
con las sábanas de holanda.
¿No ves la herida que tengo
desde el pecho a la garganta?
Trescientas rosas morenas
lleva tu pechera blanca.
Tu sangre rezuma y huele
alrededor de tu faja.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
Dejadme subir al menos
hasta las altas barandas,
dejadme subir, dejadme,
hasta las verdes barandas.
Barandales de la luna
por donde retumba el agua.

Ya suben los dos compadres
hacia las altas barandas.
Dejando un rastro de sangre.
Dejando un rastro de lágrimas.
Temblaban en los tejados
farolillos de hojalata.
Mil panderos de cristal,
herían la madrugada.

Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
Los dos compadres subieron.
El largo viento, dejaba
en la boca un raro gusto
de hiel, de menta y de albahaca.
¡Compadre! ¿Dónde está, dime?
¿Dónde está mi niña amarga?
¡Cuántas veces te esperó!
¡Cuántas veces te esperara,
cara fresca, negro pelo,
en esta verde baranda!

Sobre el rostro del aljibe
se mecía la gitana.
Verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Un carámbano de luna
la sostiene sobre el agua.
La noche su puso íntima
como una pequeña plaza.
Guardias civiles borrachos,
en la puerta golpeaban.
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar.
Y el caballo en la montaña.

Federico Garcia Lorca
(1889-1936)

Mais sobre Federico Garcia Lorca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Federico_Garc%C3%ADa_Lorca

Fernando Pessoa escreveu este poema pensando em alguém como eu.


Para onde vai a minha vida, e quem a leva?


Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala
Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala

Não me compreendo nem no que, compreeendendo, faço.
Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.
É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.
Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
Por que me destes o sentimento de um rumo,
Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão
Com um destino escondido de mim nos meus atos?
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos eu goze esse nada, sem fé, mas com calma,
Ao menos durma viver, como uma praia esquecida..."

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Quando chega o tempo em que não adianta morrer e a vida é uma ordem, os ombros suportam o mundo.


Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada espera de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais do que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentros dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Este poema do Álvaro de Campos não tem nada de ridículo. Muito pelo contrário.


Todas as cartas de amor são ridículas


Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Apenas um dos motivos que levaram Vinicius a ser perseguido pela Ditadura Militar.


Operário em construção



E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:–
Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era Ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer o tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, Cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão
Que a sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
-"Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
E o operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! -disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem pelo chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes


sábado, maio 13, 2006

A magnifíca Cecília Meireles e seus versos tristes e poderosos.


Canção Póstuma


Fiz uma canção para dar-te;
porém tu já estavas morrendo.
A Morte é um poderoso vento.
E é um suspiro tão tímido a Arte...

É um suspiro tímido e breve
como o da respiração diária.
Choro da pomba. E a Morte é uma águia
cujo grito ninguém descreve.

Vim cantar-te a canção do mundo,
mas estás de ouvidos fechados
para os meus lábios inexatos
- atento a um canto mais profundo.

E estou como alguém que chegasse
ao centro do mar, comparando
aquele universo de pranto
com a lágrima da sua face.

E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que arte
se ocupam as pessoas mortas.

Por isso é tão desesperada
a pequena, humana cantiga.
Talvez dure mais que a vida.
Mas à Morte não diz mais nada.


Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Chaplin, nos versos de Drummond. Artistas para sempre eternos.


Canto ao homem do Povo - Charles Chaplin


I
Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

II
A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.

És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.

Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.

E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. O rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.

III
Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras do teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.

Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.
Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.

Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.

IV
O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,
mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão a cabana se faz lua.

Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo o desejo, na noite, de comunicação.

Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.
Então encaminhas no gelo e rondas o grito.

Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os copos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite... e não te vêem,
tu pequeno, tu simples, tu qualquer.

Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.

V
Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano

apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos

VI
Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,

ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Quem sabe um pouquinho da vida, não pode deixar de concordar com o poeta. Afinal, onde é que há gente no mundo?


Poema em Linha Reta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Quem escreveu estes versos entendia mesmo do assunto. Demais da conta, até.


Soneto de separação


De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o presentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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Não somos só nós que temos nossos sonhos. Os poetas, então.


Dreams


Oh! that my young life were a lasting dream!
My spirit not awakening, till the beam
Of an Eternity should bring the morrow.
Yes! tho' that long dream were of hopeless sorrow,
'Twere better than the cold reality
Of waking life, to him whose heart must be,
And hath been still, upon the lovely earth,
A chaos of deep passion, from his birth.
But should it be- that dream eternally
Continuing- as dreams have been to me
In my young boyhood- should it thus be given,
'Twere folly still to hope for higher Heaven.
For I have revell'd, when the sun was bright
I' the summer sky, in dreams of living light
And loveliness,- have left my very heart
In climes of my imagining, apart
From mine own home, with beings that have been
Of mine own thought- what more could I have seen?
'Twas once- and only once- and the wild hour
From my remembrance shall not pass- some power
Or spell had bound me- 'twas the chilly wind
Came o'er me in the night, and left behind
Its image on my spirit- or the moon
Shone on my slumbers in her lofty noon
Too coldly- or the stars- howe'er it was
That dream was as that night-wind- let it pass.

I have been happy, tho' in a dream.
I have been happy- and I love the theme:
Dreams! in their vivid coloring of life,
As in that fleeting, shadowy, misty strife
Of semblance with reality, which brings
To the delirious eye, more lovely things
Of Paradise and Love- and all our own!
Than young Hope in his sunniest hour hath known.


Edgar Allan Poe
(1809-1849)

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quinta-feira, maio 11, 2006

Elegia por um amor não correspondido no inverno da vida, na Trilogia da Paixão, por Goethe.

Trilogia da Paixão

Obra-prima em três poemas
Goethe aparece nessa obra com três poemas que, juntos, são conhecidos como "Trilogia da Paixão" - A Werther, Elegia e Reconciliação -. O mais famoso deles é "Elegia", que depois passou a ser conhecido como "Elegia em Marienbad". Foi escrito quando Goethe estava com 74 anos e se apaixonou por uma jovem de 19 anos, Ulrike von Levetzow. Pediu-a em casamento, mas Ulrike disse não. O resultado está aqui:

Elegia
E quando o homem emudece em seu tormento
A mim me deu um deus dizer tudo o que sofro.

Que hei de esperar agora para tornar a vê-la,
Da flor ainda fechada deste dia?
O paraíso, o inferno estão-te abertos;
Que oscilantes sentimentos no teu peito! -Não há como duvidar!
Ei-la à porta do céu,
É Ela que te eleva e te acolhe em seus braços.

Foste assim recebido então no Paraíso,
Como se merecesses vida eterna e bela;
Não te ficou desejo esperança ou anseio,
Tinha aqui o seu termo a aspiração mais íntima.
E na contemplação desta única beleza
Logo a fonte secou das lágrimas saudosas.

Como o dia agitava as suas asas céleres
E parecia levar ante si os minutos!
O beijo da tardinha, selo fiel a unir:E assim será ainda para o sol de amanhã.
As horas, semelhantes no seu fluir brando,
Como irmãs eram, mas nenhuma igual às outras.

Esse último beijo, doce e cruel, rompeu
Enredo esplêndido de amores entrelaçados.
Meu passo ora se apressa, ora pára, e evita
O limiar, como expulso por anjo de fogo;
O olhar fixa desanimado o caminho sombrio,
Volta-se ainda para trás, vê a porta fechada.

E sobre si fechado agora, o coração,
Como se jamais se abrira, e horas felizes,
Rivais em brilho dos astros todos do céu,
Não tivesse sentido nunca ao lado dela;
E desgosto, pesar, censura, pesadelo
O carregam neste ambiente que o sufoca.

Pois não te resta ainda o mundo? Estes rochedos
Não estão eles coroados de sagradas sombras?
Não amadurece os frutos? Um campo verde
Não corre à beira do rio entre bosques e prados?
E não se arqueia essa Grandeza além dos mundos,
Ora rica de formas, ora em breve sem formas?

Quão leve e graciosa, em tecido claro e suave,
Qual Serafim, de entre o coro de nuvens pesadas,
Como que igual a Ela, no céu azul,
Forma esbelta paira de aroma resplandecente;
Tal qual tua a viste bailar em dança alegre,
Das formas adoráveis a mais adorável.

Mas é só por momentos que atrever-te podes
A reter em vez dela um etéreo fantasma;
Regressa ao coração! Melhor a encontrarás,
É lá que Ela se move em figuras mudáveis;
Em muitas se converte a Forma Uma,
Em milhares delas, cada vez mais querida.

Como para receber-me Ela esperava à porta,
E, degrau a degrau, me levava à Felicidade;
Depois do último beijo me alcançava ainda
Para me premir nos lábios o último de todos:
Tão nítida, tão viva fica a imagem da Amada
Inscrita com chamas no coração fiel.

No coração, firme qual muralha de castelos
Que para Ela se guarda e dentro em si a guarda,
E por Ela se alegra ao sentir que ainda vive,
E só sabe de si quando Ela se revela,
E se sente livre em prisões tão amadas,
E não luta senão de gratidão por Ela.

Se apagadas estavam dentro de mim
A capacidade e a precisão de amar,
O desejo de esperança de alegres projetos,
De decisões, de ação veloz, logo voltou!
E se o amor jamais deu ânimo ao amante,
Ficou provado em mim do modo mais amável.

E só graças a Ela! - Que íntimo temor
De importuno peso dentro da alma e do corpo!
O olhar rodeado de imagens horrorosas
Na aridez de um coração deserto e oprimido;
Eis que alvorece a esperança à porta conhecida,
E Ela mesma aparece à luz de um sol suave.

À paz de Deus, que aqui na terra vos concede
Mais ventura que a razão - dizem os livros -
Comparo esta paz serena do amor
Na presença do ser entre todos amado;
Repousa o coração, nada vem perturbar
Este profundo sentir de só lhe pertencer.

No mais puro do peito uma ânsia se agita
De espontâneos nos darmos só por gratidão
A alguma coisa de mais alto, puro, desconhecido,
Que em nós resolve o Enigma Inominado;
Chamamos-lhe: Piedade! - Esse êxtase felizSinto-o dentro de mim quando estou perante Ela.

Ao seu olhar, como ao do sol que nos governa,
Ao seu hálito, como às brisas primaveris,
Funde, bem rígido de gelo que estivesse,
O egoísmo no fundo de antros hibernais;
Nem interesse mesquinho ou vontade que durem,
Tudo isso o vento leva quando Ela vem.

É como se Ela dissesse: "Hora após hora
Se nos oferta amigável a vida;
Do que ontem passou bem pouco já sabemos;
O que amanhã virá é proibido sabê-lo;
E sempre que ao cair da noite tive medo,Ao pôr-do-sol eu via ainda algo que me alegrava."

"Faz pois como eu faço e olha, alegre e sensato,
O momento de frente! Sem qualquer demora!Acolhe-o depressa, benévolo e vivaz,
Quer para a alegria na ação, quer para o amor;
Onde tu estejas, sê tudo, infantil sempre,
E assim serás tudo, e serás invencível."

Bem fácil te é falar - pensei -; pois um deus
Te deu por companhia a graça do instante,
E cada qual se sente, em tua graciosa presença,
Mesmo nesse momento o dileto dos Destinos;
Assusta-me o sinal que me manda afastar-me
De ti - para quê tão alta sabedoria?!

E agora estou longe! Ao minuto presente
O que é que lhe convém? Não saberia dizê-lo;
Com a beleza me oferece ele muitas coisas boas
Que apenas pesam, e tenho que repeli-las;
Uma ânsia indomável faz-me andar errante,
E lágrimas sem fim é tudo o que me resta.

Ora brotai então! E correi sem parar,
Que este fogo interior sufocar não podeis!
Violento furor me dilacera o peito
Onde a vida e a morte ferem luta feroz.
Para as dores do corpo, sim, remédios encontraria;
Mas ao espírito falta a decisão, o querer,

O poder compreender: - Como passar sem Ela?
E vai repetindo mil vezes essa imagem,
Que ora paira hesitante, ora lhe é arrancada,
Ora confusa, ora brilhante em pura luz;
Como poderia dar-me o mínimo conforto
Este fluxo e refluxo, este vir e partir?
***
Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!
Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;
Segui vosso caminho! Olhai o mundo aberto.
A imensa terra, o céu sublime e grande;
Observai, procurai, colecionai os fatos,
Balbuciai o mistério da Natureza.

Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,
Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;
À prova me puseram, deram-me Pandora,
De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;
Impeliram-me para a boca dadivosa,
Separaram-me dela, e assim me aniquilam.


Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832)

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A descoberta de quem não se conhecia. E se achou, por amor.


Eu


Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim... e não me via!

Andava a procurar-me -Pobre louca!-
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!

Florbela Espanca
(1894-1930)

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Los ultimos versos que yo le escribo, el ultimo dolor que ella me causa. Pablo Neruda, en un canto de dolor.

Puedo Escribir Los Versos Más Tristes Esta Noche

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".
El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces, ella también me quiso.
En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Como no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido
Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo
La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta de haberla perdido.
Aunque ésta sea el último dolor que ella me causa,
y éstos los últimos versos que yo le escribo.

Pablo Neruda
(1904-1973)

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A donzela que era casada e também era infiel. Tudo nos versos do poeta, no papel de um gitano legítimo.


A casada infiel


(A Lydia Cabrerae à sua negrinha)


E eu que fui levá-la ao rio
Certo de que era donzela,
Mas bem que tinha marido.
Foi a noite de São Tiago
E quase por compromisso.
As lâmpadas se apagaram
E se acenderam os grilos.
Já nas últimas esquinas
Toquei seus peitos dormidos,
Que de pronto se me abriram
Como ramos de jacinto.
A goma de sua anágua
Vinha ranger-me no ouvido
Como seda que dez facas
Rasgassem em pedacinhos.
Sem luz de prata nas copas
As árvores têm crescido
E um horizonte de cães
Ladra bem longe do rio.

Após franqueadas as brenhas,
Franqueados juncos e espinhos,
Por baixo de seus cabelos
Fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou seu vestido.
Eu, cinturão e revolver.
Ela, seus quatro corpinhos.

Nem nardos nem caracóis
Têm cútis com tanto viço,
Nem os cristais sob a lua
Alumbram com igual brilho.
Sua coxas me escapavam
Como peixes surpreendidos,
Metade cheias de lume,
Metade cheias de frio.
Galopei naquela noite
Pelo melhor dos caminhos,
Montado em potra nácar
Sem rédeas e sem estribos.
As coisas que ela me disse,
Por ser homem não repito
Faz a luz do entendimento
Que eu seja assim comedido.
Suja de beijos e areia,
Eu levei-a então do rio.
Contra o vento se batiam
As baionetas dos lírios

Portei-me como quem sou.
Como gitano legítimo.
Dei-lhe cesta de costura,
Grande, de cetim palhiço,
E não quis enamorar-me,
Pois ela, tendo marido,
Me disse que era donzela
Quando eu a levava ao rio.

Federico Garcia Lorca
(1898-1936)

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Como tudo seria diferente se a Poesia governasse o coração de todos os homens.


Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)


Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade,
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.


Thiago de Melo

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Em versos, a vida se indo aos pouquinhos.


Como a morte se infiltra


Certo dia, não se levanta
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz por que:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
E nem pode apoiar-se nela.

Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

Outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração ?
Muda de cama. Eis seu caixão.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Deve ser mais ou menos assim mesmo. Terrível.


Como a morte se infiltra


Certo dia, não se levanta
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz por que:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
E nem pode apoiar-se nela.

Dia a dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia a dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

Outra semana sempre adiada,
que ele não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração ?
Muda de cama. Eis seu caixão.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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O espelho não não me prova que envelheço, diz Shakespeare. Todos os dias o espelho desmente o bardo.


Espelho não me prova que envelheço


O espelho não me prova que envelheço
Enquanto andares par com a mocidade;
Mas se de rugas vir teu rosto impresso,
Já sei que a Morte a minha vida invade.

Pois toda essa beleza que te veste
Vem de meu coração, que é teu espelho;
O meu vive em teu peito, e o teu me deste:
Por isso como posso ser mais velho?

Portanto, amor, tenhas de ti cuidado
Que eu, não por mim, antes por ti, terei;
Levar teu coração, tão desvelado
Qual ama guarda o doce infante, eu hei.

E nem penses em volta, morto o meu,
Pois para sempre é que me deste o teu.

William Shakespeare
(1564-1616)

Mais sobre William Shakespeare em
http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Shakespeare

O homem ainda vai ser bom para o homem. Aí, lembrai-vos de nós, como pediu Brecht.


Aos que vierem depois de nós


Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fonte sem rugas
denota insensibilidade.
Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo.

Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, - espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.


Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Quando era apenas um adolescente, estes versos carregados de dor e amargura me marcaram para sempre.


Versos íntimos

Vês ! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera !
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro
A mão que afaga é a mesma que apedreja

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga
Escarra nessa boca que te beija.


Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Este poema é tão lindo que até dá para entender o último desejo de Mário de Andrade. Entender mesmo.


Quando eu morrer quero ficar


Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

Saudades do meu Recife. Meu também, mesmo tão diferente do cantado pelo imortal Bandeira.


Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha
Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade
......onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora
......onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
- Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.

Manoel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Sempre tem uma morena dessas no destino de um homem. E Vinicius sabia disso como ninguém.


A volta da mulher morena


Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Sentimento do Mundo. Poucos, muito poucos, como Drummond, sabem o seu significado.


Sentimento do mundo 

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1997)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade