segunda-feira, maio 31, 2010

Se não és a louca do rio, por que morres, noiva? Se tu és a que eu conheci menina, por que não estás dormindo sobre o meu peito, pergunta Schmidt.


Noiva

Noiva, acaso és, a real afogada?
És a louca do rio, noiva?
Se não és, por que cantas assim
E te enfeitas de flores?
Se não és, noiva, por que morres?
Por que levam teu corpo branco
Para tão longe – noiva – para tão longe?
Se tu és a que eu conheci menina
Por que não estás dormindo sobre o meu peito,
sossegada, noiva?

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

Quando eu morrer, não soltem meu cavalo nas pedras do meu pasto incendiado. Fustiguem-lhe com a espora de ouro até matá-lo, pede Ariano Suassuna.


Lápide


Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.

Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.

Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido

que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

domingo, maio 30, 2010

De tudo quanto foi o meu passo caprichoso na vida, restará uma pedra que havia em meio do caminho. O resto se esfuma, no modesta pensar de Drummond.


Legado


Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi o meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

Carlos Drummond de Andrade
(1902 - 1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, maio 29, 2010

Vamos volta, o mais é dor, vem e chora comigo o tempo que o amor não nos deu. Em versos de puro amor, Vinicius chora a derradeira primavera.


Derradeira primavera


Põe a mão na minha mão
Só nos resta uma canção
Vamos, volta, o mais é dor
Ouve só uma vez mais
A última vez, a última voz
A voz de um trovador

Fecha os olhos devagar
Vem e chora comigo
O tempo que o amor não nos deu
Toda a infinita espera
O que não foi só teu e meu
Nessa derradeira primavera

Vinicius de Moraes

(1913-1980)


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

sexta-feira, maio 28, 2010

Beijos mais beijos, Mário de Andrade vem de amores com a sua amada. São milhões de beijos proferidos, insaciáveis.


Beijos mais beijos


Beijos mais beijos,
Milhões de beijos preferidos,
Venho de amores com a minha amada,
Insaciáveis.

Rosas mais rosas,
Milhões de rosas paulistanas,
Venho de sustos com a minha amiga,
Implacáveis.

Luzes mais luzes,
Luzes perdidas na garoa,
Trago tristezas no peito vivo,
Implacáveis.

Ideais, ideais,
Ideais raivosos do insofrido,
Trago verdades novas na boca,
Insaciáveis.

Jornais, jornais,
Notícias que enchem e esvaziam,
- Me dá uma bomba sem retardamento,
Implacável!

Horas mais horas,
Rio do meu mistério esquivo,
- Me dá violetas pelos meus dedos
Insaciáveis...

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

Fausto Guedes quer ouvir o coração falar, e não os homens a falar por ele. Pois se a força da vida é o sentimento, fez-se a palavra pra mentir a vida.


Eu quero ouvir o coração falar


Eu quero ouvir o coração falar
e não os homens a falar por ele!
Enquanto a gente fala, há de parar
no peito a vida estranha que o impede.

Independente à forma de o expressar,
o sentimento existe, e ai daquele
coração triste que se julgue dar
na cerração em que a palavra o vele.

Astro no peito, é sobre a língua chaga.
Dizer uma alegria ou um tormento
é um mar em que sempre se naufraga.

Era a essência de Deus vista e atingida!
Se é a força da vida o sentimento,
fez-se a palavra pra mentir a vida.


Fausto Guedes Teixeira
(1871-1940)

Mais sobre Fausto Guedes Teixeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fausto_Guedes_Teixeira

quinta-feira, maio 27, 2010

Na ode de Ricardo Reis, acima da verdade estão os deuses. No seu calmo Olimpo são eles outra Natureza, não pertence à ciência conhecê-los.


Acima da verdade


Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
não pertence a ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Para Artur de Azevedo, os olhos lânguidos do seu doce amor deveriam estar cobertos por uma discreta folha de parreira. Por decoro...


Por decoro


Quando me esperas, palpitando amores,
e os lábios grossos e úmidos me estendes,
e do teu corpo cálido desprendes
desconhecido olor de estranhas flores;

quando, toda suspiros e fervores,
nesta prisão de músculos te prendes,
e aos meus beijos de sátiro te rendes,
furtando às rosas as purpúreas cores;

os olhos teus, inexpressivamente,
entrefechados, lânguidos, tranquilos,
olham, meu doce amor, de tal maneira,

que, se olhassem assim, publicamente,
deveria, perdoa-me, cobri-los
uma discreta folha de parreira.

Artur Azevedo
(1855-1908)

Mais sobre Artur de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_de_Azevedo

quarta-feira, maio 26, 2010

Coisas numeradas de um a trinta e cinco que Mario Quintana julgou importante registrar. Algumas memoráveis, outras...


Coisas numeradas de um a trinta e cinco


I

Não esquecer que as nuvens estão improvisando sempre, mas a culpa
é do vento.

II

Ah, essas esculturas de gaze do vento, sempre errantes entre o céu e a
terra, como os sonhos do homem.

III

A Vitória de Samotrácia: vento petrificado.

IV

A Gioconda é uma chata.

V

Há poetas cheios de detritos que vão arrastando tudo na corrente. Às
vezes, quando muito, uma cachorra morta. Às vezes o belo cadáver de
Ofélia.

VI

Hamlet, meu condiscípulo de dúvidas...

VII

Há poetas que fazem música de câmara: Verlaine, Laforgue, para apenas
citar gente minha... Victor Hugo era outra coisa. Vitor Hugo era o
General da Banda!

VIII

Mas para que interpretarem um poema? Um poema já é uma
interpretação.

IX

Os psiquiatras são incuráveis?

X

Vagas notas esparsas... Leitores há que gostam disso. E até desconfio
que, para alguns desses leitores de que tanto gosto, os livros deveriam ser
compostos apenas de entrelinhas.

XI

Os velhos, quanto mais velhos, mas vírgulas usam.

XII

O ruim dos filmes de faroeste é que os tiroteios acordam a gente
no melhor do sono.

XIII

O ruim das negras é que elas nunca parecem despidas.

XIV

Se cortassem as mesuras dos filmes japoneses, não sobraria um único
de longa-metragem.

XV

No mundo não há nada mais importante do que os políticos das
cidades pequenas.

XVI

Nós não perdemos os mortos, os mortos é que nos perdem.

XVII

A rede das estrelas é uma incômoda teia de aranha sobre a face da
Eternidade.

XVIII

A voz do vento... Ninguém sabe o que o vento quer dizer... Quem
perguntar por que, de nada adianta comprar um livro de poemas.

XIX

Um dia de chuva é bom para a gente comprar livros de poemas... Quem
perguntar por que, de nada lhe adianta comprar um livro de poemas.

XX

As viagens ilustram, como dizem? As viagens aproveitam alguma coisa?
Não sei, mas desconfio que depois da sua visita aos Estados Unidos a
Gioconda deve ter voltado com um sorrido muito mais enigmático.

XXI

O que há de terrível nos robôs não é como eles se parecem conosco,
mas como nós nos parecemos com eles.

XXII

Buscas a perfeição? Não sejas vulgar. A autenticidade é muito mais
difícil.

XXIII

Quanto à arte engajada, eu só te pergunto: - Que significação política
tem o crepúsculo?

XXIV

A noite picotada de grilos...

XXV

Maltratar os poetas é indício de mau caráter.

XXVI

Coragem não é documento: os gangsters também são heróis.

XXVII

A vida nutre-se da morte, e não a morte da vida, como julgam alguns
pessimistas.

XXVVIII

E por falar em pessimismo, naquela ainda indecisa mas já histórica
manhã de 2 de abril de 1964, ouvi, no Largo dos Medeiros, um velho dizer
a outro: "A coisa não pode estar boa! Anda muita gente de cara alegre..."

XXIX

Já repararam? Antes, em todas as vitrinas de brique, havia sempre um
busto de Napoleão. Agora, sumiram-se!
As vitrinas de brique são o último estágio da glória.

XXX

Esses que apreciam num escritor a opulência de Linguagem devem ser
os mesmos que se babam de puro êxtase diante das senhoras bem fornidas.

XXXI

...ser xipófago deve ser tão incômodo como ser casado...

XXXII

Me lembro de um colga de ginásio que tirou sua própria cachola e
escrevia em seus cadernos e livros, com letra caprichada, o seguinte:
"Estudo, és tudo!". Teve o fim que merecia.

XXXIII

Se não fosse Van Gogh, o que seria do amarelo?

XXXIV

A Vênus de Milo tem cabeça e cérebro de ovelha.

XXXV

Por que ainda ninguém se lembrou de pintar uma mulher nua de
óculos?

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em tom de acalanto, Paulo Henriques Britto constata, com uma ponta de orgulho, a cotidiana e mínima vitória. Mais uma noite a dois, um dia a menos.


Acalanto


Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
ao aconchego de um outro corpo morno.

Paulo Henriques Britto

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Henriques_Britto

terça-feira, maio 25, 2010

Dorme, dorme o tempo em que não podias dormir. Prepara-te para dormir teu corpo e teu amor contigo, diz Murilo Mendes à mulher amada.


O sono


Dorme.
Dorme o tempo em que não podias dormir.
Dorme não só tu,
Prepara-te para dormir teu corpo e teu amor contigo.
Dorme o que não foste, o que nunca serás.
Dorme o incêndio dos atos esquecidos,
A qualidade a distância o rumo do pensamento.

O pássaro magnético volta-se,
As árvores trocam os braços,
O castelo parou de andar.

Dorme.
Que pena não poder me ver - puro - dormindo.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Na noite tão preta como carvão, a gente falava de assombração. E Ascenso Ferreira conta em versos as histórias que aconteciam no Engenho Alegria.


A mula de padre


Um dia no engenho,
Já tarde da noite
Que estava tão preta
Como carvão...
A gente falava de assombração:

— O avô de Zé Pinga-Fogo
Amanheceu morto na mata
Com o peito varado
Pela canela do Pé-de-Espeto!
— O cachorro de Brabo Manso
Levou, sexta-feira passada,
Uma surra das caiporas!
— A Mula de Padre quis beber o sangue
Da mulher de Chico Lolão...

Na noite preta como carvão
A gente falava de assombração!
Lá em baixo a almanjarra,
A rara almanjarra,
Gemia e rangia
Oue o Engenho Alegria
É bom moedor...

Eh Andorinha!
Eh Moça-Branca!
Eh Beija-Flor. . .

Pela bagaceira
Os bois ruminavam
E as éguas pastavam
Esperando a vez
De entrar no rojão...
Foi quando se deu
A coisa esquisita:
Mordendo, rinchando,
As pôpas e aos pulos
Se pondo de pé
Com artes do cão,
Surgiu uma besta sem ser dali não...

— Atallia a bicha, Baraúna!
— Sustenta o laço, Maracanã!
E a besta agarrada
Entrou na almanjarra,
Tocou-se-lhe a peia
Até de manhã ...

E depois que ela foi solta
Entupiu no oco do mundo!
Num abrir e fechar d'olhos
A maldita se encantou...

De tardinha.
Gente vinda
Da cidade
Trouxe a nova
De que a ama
De seu padre
Serrador
Amanhecera tão surrada
Que causa compaixão!

.....................................
Na noite tão preta como carvão
A gente falava de assombração.


Ascenso Ferreira
(1895-1965)

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segunda-feira, maio 24, 2010

Manoel de Barros acha bom é corromper o silêncio das palavras. E gosta de viajar por palavras do que de trem.


Bom é corromper o silêncio das palavras


Bom é corromper o silêncio das palavras.

Como seja:

1. Uma rã me pedra. (A rã me corrompeu para
pedra. Retirou meus limites de ser humano
e me ampliou para coisa. A rã se tornou
o sujeito pessoal da frase e me largou no
chão a criar musgos para tapete de insetos
e de frades.)

2. Um passarinho me árvore. (O passarinho me
transgrediu para árvore. Deixou-me aos
ventos e às chuvas. Ele mesmo me bosteia
de dia e me desperta nas manhãs).

3. Os jardins se borboletam. (Significa que
os jardins se esvaziaram de suas sépalas
e de sua pétalas? Significa que os jardins
se abrem agora só para o buliço das
borboletas?)

4. Folhas secas me outonam. (Folhas secas que
forram o chão das tardes me trasmudaram
para outono? Eu sou meu outono.)

Gosto de viajar por palavras do que de trem.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Aquele sábado passado deixou profundas marcas em Cesário Verde. Apesar do vigoroso e formidável beijo, ele sente que acabou o grande amor.


Noite fechada

Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado templo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
Não sei que tentação é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dumas minas,
E à crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho

O quadro interior, dum que à candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do bêbado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E galões marciais de pechisbeque,

E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu sonoro
Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenção de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E, ao passo que eu te ouvia abstratamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter às portas, às barreiras,
Em que uma negra multidão se apinha
De tecelões, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei, já que não amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé, pensando nisto.

E tu que não serás somente minha,
As carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
À gaiola do teu terceiro andar!

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

domingo, maio 23, 2010

Nesta cidade vivo há 40 anos, há 40 anos vivo esta cidade, a cidade me vive há 40 anos. Para Drummond, a cada instante morre um Rio amantiamado.


Elegia carioca


Nesta cidade vivo há 40 anos
há 40 anos vivo esta cidade
a cidade me vive há 40 anos.

Sou testemunha
cúmplice
objeto
triturado confuso agradecido nostálgico
Onde está, que fugiu, minha Avenida Rio Branco
espacial verdolenga baunilhada
eterna como éramos eternos
entre duas guerras próximas?
O Café Belas-Artes onde está?
E as francesas do bar do Palace Hotel
e os olhos do vermute que se despiam
no crepúsculo ouro-lilás de 34?

Estou rico de passarelas e vivências
túneis nos morros e cá dentro multiplicam-se
rumo a barras-além-da tijuca imperscrutáveis
Sou todo uma engenharia em movimento
já não tenho pernas: motor
ligado pifado recalcitrante
projeto
algarismo sigla perfuração
na cidade código

Onde estão Rodrigo, Aníbal e Manuel
Otávio, Eneida, Candinho, em que Galeão
Gastão espera o jato da Amazônia?
Marco encontros que não se realizam
na abolida José Olympio de Ouvidor
Ficou, é certo, a espelharia da Colombo
mas tenho que tomar café em pé
e só Ary preserva os ritos
da descuidada prosa companheira
Padeiros entregam a domicílio
o pão quentinho da alegria
o bonde leva amizades motorneiras
as casas de morar deixam-se morar
sem ambição de um dia se tornarem
tours d'ivoire entre barracos sórdidos
o rádio espalha no ar Carmem Miranda
a Câmara discursa
os maiôs revelam 50%
mas prometem bonificações sucesivas
O Brasil será redimido pelo socialismo utópico
Getúlio sorri, baforando o charutão
Rio diverso múltiplo
desordenado sob tantos planos
ordenadores desfigurados geniais
ferido nas encostas
poluído nas fontes e nas ondas
Rio onde viver é uma promissória sempre renovada
e o sol da praia paga nossas dívidas
da classe média
enquanto multidões penduradas nos trens elétricos
desfilam interminavelmente
na indistinção entre vida e morte
futebol e carnaval e vão caindo
pelo leito da estrada os morituros

Ser um contigo, ó cidade
é prêmio ou pena? Já nem sei
se te pranteio ou te agradeço
por este jantar de luz que me ofereces
e a ácida sobremesa de problemas
que comigo repartes
no incessante fazer-te, desfazer-se
que um Rio novo molda a cada instante
e a cada instante mata
um Rio amantiamado há 40 anos.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, maio 22, 2010

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos. Vinte anos inúteis, vinte anos perdidos, no sofrido lamento de Álvaro Campos.


Realidade


Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado - ou, pelo menos, não dou por isto -
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada.
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada.

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1889-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sexta-feira, maio 21, 2010

Para Cecília Meireles, nem é preciso fazer nada para se estar na alma de tudo. Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno.


Êxtase


Deixa-te estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.

Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.

Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslizam os planetas, na abundância do tempo que cai.
Nós somos um tênue pólen dos mundos...

Deixa-te estar neste embalo de água gerando círculos.

Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras ambíguas.

Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.

Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Nos versos de Menotti del Picchia, Carolina não fez nenhum ruído quando foi-se embora. Mansa e discreta para não perturbar nem o sono das rosas.


Carolina


Ela não fez nenhum ruído quando foi-se embora.

Nós estávamos na varanda esperando.
Quê? Sua libertação ou a nossa?
A vida é egoísta. Uma agonia é uma corrente
que chumba os sãos
ao remorso de saber que o sol é alegre
e que é bom sorver a vida por todos os poros.

Oh! largar aquele leito, cansar! beber! fazer besteiras!

Sempre fora humilde e tinha medo de dar trabalho aos outros.

Quando meu irmão voltou do quarto,
disse:

- Ela está morta.

Estava tranquila, tranquila, tranquila...

Saímos aliviado para o quintal.
O céu era azul e as flores murchavam sob a força do sol,
nenhuma rajada de brisa mexia com as folhas paradas
e no céu não se ouvia nenhum ruído.

Ficamos perplexos!
Até seu vôo ela desferira manso e discreto
para não perturbar nem o sono das rosas.

Menotti del Picchia
(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

quinta-feira, maio 20, 2010

João de Deus tem no coração os cabelos loiros daquela mulher. A mulher da sua vida, cada vez mais linda.


Cabelo loiro


Tenho no coração
um santuário de oiro.
altar de adoração
a um cabelo loiro.

Loiro ou castanho, aquele
que em tempo me prendeu.
E de quem era ele?
Bem sabes que era teu.

E vê-lo hoje ainda
mais belo... que surpresa!
Deliciosa inglesa!
Que cada vez mais linda!

João de Deus
(1830-1896)

quarta-feira, maio 19, 2010

Em seu poema da solidão, Ferreira Gullar sente que brotou da carne o clima alucinatório. E que a lua o acolherá.


Poema da solidão


Rente às paredes do corpo
solidificou-se a noite
Não dela, brotou da carne
o clima alucinatório
A noite não cessará!

Roça a casa o rio mudo
que nas sombras se extravia
Na sua líquida noite
arrasta corpos translúcidos
que rolam por sobre flores.
Noturnas margens. Silêncio.
O rio me quererá.

A névoa me limita os os olhos
e dissipa as ventanias.
A lua fantasmagórica
de movediço contorno
floresce nas águas fundas
A lua me acolherá.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Este inferno de amar, como eu amo! Quem me pôs aqui na alma esta chama que alenta e consome, pergunta Almeida Garrett em seus versos.


Este inferno de amar


Este inferno de amar - como eu amo!
Quem mo pôs aqui na alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra; o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei...dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Que fêz ela? Eu que fiz? - Não o sei
Mas nessa hora a viver comecei...

Almeida Garrett
(1799-1854)

Mais sobre Almeida Garrett em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Garrett

terça-feira, maio 18, 2010

Só tu soubeste ouvir onde cantava a fonte oculta. Só tu soubeste achar-me e te foste, lamenta Mario Quintana em seu retrato do poeta na idade ingrata.


Retrato do poeta na idade ingrata


A minha alma era uma paisagem hirsuta:
cactos, palmas híspidas,
estranhas flores que atemorizavam (seriam aranhas
carnívoras?) parecia
um texto obscuro com pontuação excessiva;
tudo porque me estavam apontando alguns fios de barba;
e cada fio era uma baioneta calada contra o mundo:

tu
com
a graça aérea de um helicóptero ou de uma libélula
soubeste achar - naquilo - onde o campo de pouso,
soubeste ouvir onde cantava
pura
a fonte oculta...

Só tu soubeste achar-me... e te foste!

Mario Quintana
(1906-1994) )

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em meio às valas negras, o foguetório anuncia a chegada do carregamento. E tudo isso acontece no Morro dos Prazeres, nos versos de Waly Salomão.


A missa do Morro dos Prazeres


Sursum corda.
Ao alto os corações.
Subir,
com toda alegoria em cima,
subir,
subir a parada
que a lua cheia é a hóstia consagrada na vala negra aberta,
subir,
que o foguetório anuncia a chegada do carregamento,
subir,
querubim errante transformista,
subir,
o incensório da esquadrilha da fumaça-mãe,
subir,
como se inalasse a neve do Monte Fuji,
subir,
o visgo da jaca já gruda na pele,
subir,
salvam pipocos da chefia do movimento,
subir,
soou a hora da elevação,
subir que o morro é batizado
com a graça de Morro dos Prazeres
- topograficamente situado no Rio de Janeiro.
Subir o morro
que a missa católica do asfalto
- sem os paramentos e as jaculatórias do latim da infância -
pouco difere de reunião de condomínio,
sacrifício sem entusiasmós.

Waly Salomão
(1943-2003)

Mais sobre Waly Salomão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Waly_Salom%C3%A3o

segunda-feira, maio 17, 2010

Nos versos de Vinicius, depois de atravessar muitos caminhos, um homem chegou a uma estrada cheia de calma e luz. O homem olhou dentro de si e voltou.


Velha história

Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias…
Os únicos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.
E o homem se lembrou dos outros caminhos.
Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
Lá havia tempestade e havia bonança
Havia sombra e havia luz.

O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Para Alice Ruiz, viver ou morrer é o de menos. E a vida inteira pode ser qualquer momento, ser feliz ou não questão de talento.


Mesmo que morra


mesmo que eu morra
dessa morte disforme
o esquecimento
não lamento

viver ou morrer
é o de menos
a vida inteira
pode ser
qualquer momento
ser feliz ou não
questão de talento

quanto ao resto
este poema
que não fiz
fica ao vento
mãos mais hábeis
inventem

Alice Ruiz

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz


domingo, maio 16, 2010

Por que é que sois tão cruel, pergunta Sá-Carneiro à senhora dos olhos lindos. E antes porém de partir dessa vida, ele implora a esmola de um olhar.


Senhora dos olhos lindos,
dai-me a esmola de um olhar


Senhora dos olhos lindos,
Por que é que sois tão cruel?
As pombas não têm fel,
E vós sois pomba, senhora...
Tormentos vários, infindos,
Sem dó, me fazeis sofrer...
Morto, vós me qu'reis ver,
Não é verdade, traidora?
Respondei! Ficais calada!
Neste caso, adivinhei...
Pois muito bem! morrerei...
Morrerei, sem ter pesar!...
Minha vida amargurada
Eu vos vou dar, deusa qu'rida...
Antes porém da partida
Dai-me a esmola de um olhar.

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Para Lílitchka, Mayakovsky escreveu os mais belos versos de amor. E sabendo do fel da mágoa ressentida, já falava em apertar na têmpora o gatilho.


Lílitchka!

Em lugar de uma carta

Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto -
um capítulo de inferno de Krutchônikh.
Recorda -
Atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração - aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu "hall" escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua.
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor, meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mais a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos - rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

Vladimir Mayakovsky

(1893-1930 )

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski

sábado, maio 15, 2010

Alberto Caeiro não quer o presente, quer a realidade. Ele quer as coisas que existem, não o tempo que as mede.


Vive, dizes


Vive, dizes no presente,
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa



Maria Teresa Horta cumpre os seus limites, não cumprindo as regras. Ela não pretende mais do que o limite.


Não pretendo mais do que o limite


Não pretendo mais do que o limite,
que para além do limite
já se entrega

Eu cumpro os meus
limites,
não cumprindo as regras

Maria Teresa Horta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

sexta-feira, maio 14, 2010

Para Leminski, só o durante dura aquilo que o dia adiante adia. E formas estranhas assume a vida, como a fúria que quer seja lá o que flor.



Desastre de uma idéia

desastre de uma idéia
só o durante dura
aquilo que o dia adiante adia

estranhas formas assume a vida
quando eu como tudo que me convida
e coisa alguma me sacia

formas estranhas assume a fome
quando o dia é desordem
e meu sonho dorme

fome da china fome da índia
fome que ainda não tomou cor
essa fúria que quer
seja lá o que flor

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Para Alexandre O'Neill, há palavras que nos beijam como se tivessem boca. E que nos transportam aonde a noite é mais forte, ao silêncio dos amantes.



Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos tranportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes.


Alexandre O'Neill
(1924-1986)

Mais sobre Alexandre O'Neill em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_O%27Neill






quinta-feira, maio 13, 2010

Thiago de Mello teve um chão todo feito de certezas e um caminho umedecido de dúvidas. Agora, cresce nele a certeza de que vale a pena o amor.


As ensinanças da dúvida


Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que o fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.

Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor.

Thiago de Mello

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Não interrogues, não perguntes e não colecione dejetos, o teu destino és tu. Despe-te, não há outro caminho, ensina em versos Eugénio de Andrade.


Sobre o caminho


Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não colecciones dejectos o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quarta-feira, maio 12, 2010

Aonde estás, amor, aonde? Florbela Espanca grita a sua dor, a sua dor intensa, uma saudade enorme, uma saudade imensa.


Aonde?...


Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde...aonde...aonde?...
O eco ao pé de mim segreda...desgraçada...
E só a voz do eco, irônica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantante como um rio banhado de luar!

Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E só a voz do eco à minha voz responde...

Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde... aonde...aonde?...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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Este livro, meu filho, é jazz do coração. Enfie a carapuça e cante, puro açúcar branco e blue, diz em versos Ana Cristina Cesar.


Este livro

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
total, tilintar de verdade que você seduz,
charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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terça-feira, maio 11, 2010

Na estória de Hilda Hilst, Leocádia era sábia. E sua neta "Chapéu", de vermelho só tinha a gruta e um certo mel na língua suja.


A Chapéu


Leocádia era sábia.
Sua neta "Chapéu"
De vermelho só tinha a gruta
E um certo mel na língua suja.
Sai bruaca
Da tua toca imunda!(dizia-lhe a neta)
Aí vem Lobão!
Prepara-lhe confeitos
Carnes, esqueletos
Pois bem sabes
Que a bichona peluda
É o nosso ganha-pão.
A velha Leocádia estremunhada
Respondia à neta:
Ando cansada de ser explorada
Pois da última vez
Lobão deu pra três
E eu não recebi o meu quinhão!
E tu, e tu Chapéu, minha nega
Não fazendo nada
Com essa choca preta.
Preta de choca, nona,
Mas irmã do capeta.
Lobão: Que discussões estéreis
Que azáfama de línguas!
A manhã está clara e tão bonita!
Voejam andorinhas
Não vêdes?
Tragam-me carnes, cordeiros,
Salsas verdes.
E por que tens, ó velha
Os dentes agrandados?
Pareces de mim um arremedo!
Ás vezes te miro
E sinto que tens un nabo
Perfeito pro meu buraco.
Aaaaiii! Grita Chapéu.
Num átimo percebo tudo!
Enganaram-me! Vó Leocádia
E Lobão
Fornicam desde sempre
Atrás do meu fogão!

Moral da estória:
um id oculto mascara o seu produto.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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Eu te amo, perdidamente. Até depois que o universo caia sobre mim, suavemente, diz Adalgisa Nery ao eterno amor de sua vida.


Poema da amante


Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Nery
(1905-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

segunda-feira, maio 10, 2010

Nada que sou me interessa, nada que sou me pertence, nada que sou eu serei. Belos versos de um poema triste de Fernando Pessoa.


Nada que sou


Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer cousa que tem pressa
Terá pressa em vão.

Nada que sou me pertence.
Se existo em que me conheço
Qualquer cousa que me vence
Depressa a esqueço.

Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
Um sonho do que terei.
Só o que não hei de ter.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Na vizinhança, os comentários se sucedem veladamente. Tudo por causa da indiscrição de Zefa Lavadeira, nos versos de Mauro Mota.



Indiscrição


Os comentários se sucedem veladamente
- Uma menina! Ainda de meias curtas!
Tudo por causa da indiscrição de Zefa Lavadeira,
que andou dizendo a toda gente
que Marieta já era moça.

Mauro Mota
(1911-1984)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

domingo, maio 09, 2010

Se fosse Rei do Mundo, Drummond baixaria uma lei: Mãe não morre nunca. A lei que todos os filhos pedem a Deus, todos os dias.

Para sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.

Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, maio 08, 2010

8 de maio de 1945: com o russo em Berlim, a Humanidade derrota o nazi-fascismo. Hoje, é importante lembrar que o ovo da serpente continua por aí.


Com o russo em Berlim


Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranquilo,
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina:um dia entrar
com o russo em Berlim.

Minha boca fechada se crispava.
Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.


Pois também a palavra era proibida.
As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.

Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.

Eu esperei na China e em todo canto,
em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado,
com o russo em Berlim.

Cidades que perdi, horas queimando
na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.

O campo, o campo, sobretudo o campo
espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.

Nas camadas marítimas, os peixes
me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
com o russo em Berlim.

Essa batalha no ar, que me traspassa
(mas estou no cinema,e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).

Muitos de mim saíram pelo mar.
Em mim o que é melhor está lutando.
Possa também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.
Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.

Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.


Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.

Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.

Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, maio 07, 2010

Não te encontro, não te alcanço. Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reiventada, descobre Cecília Meireles em versos de amor.


Reinvenção


A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projecto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Quem amava mais, quem perdeu mais? Enesto Cardenal, o seu amor, ou ambos?


Al perderte yo a ti


Al perderte yo a ti tú y yo hemos perdido:
yo porque tú eras lo que yo más amaba
y tú porque yo era el que te amaba más.
Pero de nosotros dos tú pierdes más que yo:
porque yo podré amar a otras como te amaba a ti
pero a ti no te amarán como te amaba yo.

Ernesto Cardenal

Mais sobre Ernesto Cardenal em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ernesto_Cardenal


quinta-feira, maio 06, 2010

Em 1940, em plena guerra mundial, Drummond já alertava para a insensibilidade da burguesia. Para os inocentes do Leblon, era fácil esquecer.


Inocentes do Leblon


Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

O que eu perdi não foi um sonho bom. Foi a felicidade da ignorância, a última rubra flor da mocidade, na dor de Abgar Renault.


Fim


O que eu perdi não foi um sonho bom,
não foi o fruto a embebedar meus lábios,
não foi uma canção de raro som,
nem a graça de alguns momentos sábios.

O que eu perdi, como quem perde uma outra infância,
foi o sentido do enternecimento,
foi a felicidade da ignorância, foi, em verdade,
na minha carne e no meu pensamento,
a última rubra flor do fim da mocidade.

E dói - não esse gesto ausente, a que se apagam
as flores mais solares, mas uma hora,
- flor de momento numa breve aurora -
hora longínqua, esquiva e para sempre morta,
em cuja escura, inacessível porta
noturnos olhos cegamente vagam.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

quarta-feira, maio 05, 2010

Sou nada, e entanto agora eis-me centro finito do círculo infinito de mar e céus afora. Estou onde está Deus, confessa em versos Manuel Bandeira.


Embalo


No balanço das águas,
Ao trépido pulsar
Da máquina, embalar
As persistentes mágoas
Das peremptas feridas...
Beber o céu nos ventos
Sabendo a sonolentos
Sais e iodados relentos.
Anseios de insofridas
Esperas e esperanças
Diluem-se na bruma
Como na vaga a espuma
- Flores de espumas mansas -
Que a um lado e outro abotoa
Da cortadora proa.
Azuis de águas e céus...
Sou nada, e entanto agora
Eis-me centro finito
Do círculo infinito
De mar e céus afora.
- Estou onde está Deus.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Para seu amor, Sophia de Mello Breyner criará um dia puro. Livre como o vento e repetido como o florir das ondas ordenadas.


Prece


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

terça-feira, maio 04, 2010

Nos lábios do menino Mario Quintana, queimava-se, ignorada, a palavra mágica. Poesia.


O menino louco


Eu te paguei minha pesada moeda,
Poesia...
Ó teus espelhos deformantes e límpidos
Como a água! Sim, desde menino,
Meus olhos se abriam insones como flores no escuro
Até que, longe, no horizonte, eu via
A Lua vindo, esbelta como um lírio...
Às vezes numa túnica de Infanta
Sonâmbula...Às vezes virginalmente nua...
E era branca como as nozes que os esquilos
descascam na mata...
Pura como um punhal de sacrifício...
(Em meus lábios queimava-se, ignorada,
a palavra mágica!)

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
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Ouço bater o teu coração nesta manhã. E o dia de hoje é o dia que desejas, diz em versos Nuno Júdice à mulher amada.


Amanhecer


Ouço bater o teu coração nesta manhã
em que uma luz de argila constrói o busto
do tempo, que um dia descobrirás dentro
de ti, e onde irás reconhecer um rosto
outrora amado. Mas não esperes; o dia de hoje é
o dia que desejas, e não é todas as manhãs
que esta luz te abraça com o seu fulgor
de ave, convidando-te a partir até ao fim
da terra. Não precisas de levar contigo
mais do que o sorriso que se abriu
no instante em que o sol nasceu; e
poderás enchê-lo com as palavras que
tantas vezes esboçaste, sem as dizer,
e agora fazem parte dos teus lábios
como a flor, que pertencia ao caule de onde
a cortei, para a deixar na mesa
que ficará vazia.

Nuno Júdice

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

segunda-feira, maio 03, 2010

O mundo é sem sentido quanto mais vasto é. Mas a estranheza do mundo se dissipa em você, diz em versos Ferreira Gullar.


Estranheza do mundo


Olho a árvore e indago:
está aí para quê?
O mundo é sem sentido
quanto mais vasto é.
Esta pedra esta folha
este mar sem tamanho
fecham-se em si, me
repelem.
Pervago em um mundo estranho.
Mas em meio à estranheza
do mundo, descubro
uma nova beleza
com que me deslumbro;
é teu doce sorriso
é tua pele macia
são teus olhos brilhando
é essa tua alegria.
Olho a árvore e já
não pergunto "para quê"?
A estranheza do mundo
se dissipa em você.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Eu sou o que não existe entre o que existe. Eu sou o poeta Ismael Nery, que às vezes não gosta de si.


Eu


Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou a unidade infinita
Eu sou um deus com princípio
Eu sou poeta!

Eu tenho raiva de ter nascido eu,
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.

Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos.
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo o mundo.

Ismael Nery
(1900-1934)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ismael_Nery

domingo, maio 02, 2010

Alberto Caeiro é um guardador de rebanhos. Ele sabe a verdade e é feliz.


Sou um guardador de rebanhos


Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao cumprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, maio 01, 2010

"Operário em construção", de Vinicius de Moraes. Um belo poema para comemorar o 1º de Maio.


Operário em construção



E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:–
Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.

Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era Ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer o tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, Cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que a sua marmita
Era o prato do patrão
Que a sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que a sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
-"Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
E o operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! -disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem pelo chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes