segunda-feira, abril 06, 2009

Cora Coralina conta em versos porque todos gostam de Maria. São estas coisas dos Reinos da Cidade de Goiás.


Coisas de Goiás: Maria


Maria, das muitas que rolam pelo mundo.
Maria pobre. Não tem casa nem morada.
Vive como quer.
Tem seu mundo e suas vaidades. Suas trouxas e seus botões.
Seus haveres. Trouxa de pano na cabeça.
Pedaços, sobras, retalhada.
Centenas de botões, desusados, coloridos, madre-pérola, louça,
vidro, plástico, variados, pregados em tiras pendentes.
Enfeitando. Mostruário.
Tem mais, uns caídos, bambinelas, enfeites, argolas, coisas dela.
Seus figurinos, figurações, arte decorativa,
criação, inventos de Maria.
Maria grampinho, diz a gente da cidade.
Maria sete saias, diz a gente impiedosa da cidade.
Maria. Companheira certa e compulsada.
Inquilina da Casa Velha da Ponte...
Digo mal. Usucapião tem ela, só de meu tempo,
vinte e seis anos.
Tão grande a Casa Velha da Ponte...
Tão vazia de gente, tão cheia de sonhos, fantasmas e papelada,
tradicionais papéis de circunstância.
Seus fantasmas, enterro de ouro. Lendas e legendas.
Cabem todas as Marias desvalidas do mundo e da minha cidade.
Quem foi o pai, e a mãe e a avó de Maria?
Quantos anos tem Maria? Como foi que nasceu? De que jeito sobreviveu?
Estacou no tempo, procura sempre no quintal seus grampinhos
repassados na densa e penteada camada capilar,
onde acomoda em equilíbrio singular seus misterios...
Teres e mordomias e seus botões alegres, coloridos, seriados,
chapeando a veste, que por ser pobre não deixa de ser nobre,
resguarda sua nudez casta, inviolada.
Sete blusas, sete saias, remendos, cento de botões
cem números de grampinhos. Muito séria, não dá confiança.
Garrafa de plástico inseparável. Água, leite, mezinha, será...
Entre Maria, a casa é sua.
Nem precisa mandar. Seus direitos sem deveres,
vai pela manhã e volta pela tarde.
Suas saias, seus botões, seus grampinhos, seu sério,
muda e certa.
Maria é feliz. Não sabe dessas coisas sutis e tem quem a ame.
Uma família distinta da cidade, que a conheceu em tempos
dá referência: Maria tinha até leitura e fazia croché,
ponto de marca, costurava.
Tem a moça Salma, humana e linda, flor da cidade,
luz da sociedade goiana, ela preza Maria e fala
como fala a generosidade das jovens: Maria me contava estórias
quando eu era pequena.
Fui carregada nos braços da Maria.

Meus filhos e netos quando chegam perguntam:
"E Maria, ainda dorme aqui?"
Todos gostam de Maria, e eu também.

Estas coisas dos Reinos
da
Cidade de Goiás.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Um comentário:

  1. DOCE CORA CORALINA...

    Cora Coralina
    seus conselhos
    de mulher vivida

    vida sertaneja
    de pelejas
    de causos

    contados
    à beira do fogo
    de cócoras

    seus olhos
    curiosos
    coriscos

    legaram
    imagens
    delícias

    as paisagens
    de seus dias
    de seu tempo

    de seu povo
    dos sertões
    dos serões

    do seu canto
    doce simples
    recantos

    sua lira
    cristalinas
    poesias

    para se viver
    se entender
    aparente difícil

    de modo simples
    como quem prevê
    no balanço das árvores

    a mudança do tempo
    ventanias
    e chuvas...

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