sábado, abril 30, 2011

Um homem do mundo perguntou a Adélia Prado: o que você pensa do sexo? Uma das maravilhas da criação, ela respondeu.


Entrevista

Um homem do mundo me perguntou:
o que você pensa do sexo?
Um das maravilhas da criação, eu respondi.
Ele ficou atrapalhado, porque confunde as coisas
e esperava que eu dissesse maldição,
só porque antes lhe confiara:
o destino do homem é a santidade.
A mulher que me perguntara cheia de ódio:
você raspa lá? Perguntou sorrindo,
achando que assim melhor me assassinava.
Magníficos são o cálice e a vara que ele contém,
peludo ou não.
Santo, santo, santo é o amor de Deus,
não porque uso luva ou navalha.
Que pode contra ele o excremento?
Mesmo a rosa, que pode a seu favor?
"Se cobre a multidão dos pecados e é benigno,
como a morte duro, como o inferno tenaz",
descansa em teu amor, que bem estás.


Adélia Prado
(1935)

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

sexta-feira, abril 29, 2011

A Camões, o amor da Senhora parecia preço honesto. Tanto que, quanto mais lhe pagava, mais lhe devia.


Quem vê, Senhora, claro e manifesto

Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder de vista só em vê-los,
Já não o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já não me fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.

Porque  é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.


Luis Vaz de Camões
(1524-1580)

Mais sobre Luis Vaz de Camões em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_de_Cam%C3%B5es

quinta-feira, abril 28, 2011

Em sua canção para poder viver, Cassiano Ricardo diz tudo que ela precisava ouvir. Mesmo que peça mais um bis, "ao palco"!



Canção para poder viver

Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.

Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água.

E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa.

Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!

Cassiano Ricardo
(1894-1975)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo



quarta-feira, abril 27, 2011

Para Guimarães Rosa, há uma hora certa, no meio da noite, em que todas as águas dormem. Só a água dos olhos nunca tem sono.



Todas as águas dormem
 

Há uma hora certa,
no meio de noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas de folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...

Mas nem todos dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

terça-feira, abril 26, 2011

Leminski carrega o peso da lua e, para nós, deixa o sono. O sonho, não.



Carrego o peso da lua

Carrego o peso da lua,
Três paixões mal curadas,
Um saara de páginas,
Essa infinita madrugada.

Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono. 
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, abril 25, 2011

Aos jogos infantis, Vinicius sempre preferia os jogos de Maria mexendo os quadris. É que Maria sempre tinha dó dele...


Jogos e folguedos: Maria Mulata

Aos coros infantis
Sempre preferia
Os jogos de Maria
Mexendo os quadris.

- Maria, levanta a saia
Maria, suspende o braço
Maria, me dá um cheirinho
Do capim do teu sovaco.

Maria sempre tinha
Dó de mim.

- Bento-que-o-bento-frade
- Frade!
Na boca do forno
De manhãzinha
Eu e Maria.

- Tá quente, Maria...
(Maria estava sempre quente)

- Pique, Maria...
(E a luta arfante, úmida e silenciosa)

Dou-lhe uma
Dou-lhe duas
Dou-lhe três...


Vinicius de Morais
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

domingo, abril 24, 2011

Ao sentir de azul inocente os olhos do agiota, Álvaro de Campos admite que sempre teve, feliz ou infelizmente, a sensibilidade humanizada. E que toda a morte sempre lhe doeu pessoalmente.


Que lindos olhos

Que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do agiota!

Santo Deus, que encontramento esta vida!

Tive sempre, feliz ou infelizmente, a sensibilidade humanizada,
E toda a morte me doeu sempre pessoalmente,
Sim, não só pelo mistério de ficar inexpressivo o orgânico,
Mas de maneira direta, cá do coração.

Como o sol doura as casas des réprobos!
Poderei odiá-los sem desfazer no sol?

Afinal que coisa a pensar com o sentimento distraído
Por causa dos olhos de criança de uma criança...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, abril 23, 2011

Murilo Mendes vê os pobres chegarem, nus e famintos. E reconhece: nós os fizemos assim.



Os pobres

Chegam nus, chegam famintos
À grade dos nossos olhos.
Expulsos da tempestade de fogo
Vêm de qualquer parte do mundo,
Ancoram na nossa inércia.

Precisam de olhos novos, de outras mãos,
Precisam de arados e sapatos,
De lanternas e bandas de música,
Da visão do licorne
E da comunidade com Jesus.

Os pobres nus e famintos
Nós os fizemos assim.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, abril 21, 2011

Para Augusto dos Anjos, aquela mulher tinha no olhar a chama cruel que arrastava os corações. E morreu tendo no corpo o verme do pecado.



Pecadora

Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o símb'lo do Pecado.

Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.

No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza
tornou-se a pecadora vil. Do fado,

Do destino fatal, presa, morria
Uma noute entre as vascas da agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

terça-feira, abril 19, 2011

Quem sou eu? Como dizer pouco me importa? Em versos amargos, Ferreira Gullar vive a história do homem.


Quem sou eu?

Quem sou eu dentro da minha boca?
Quem sou eu nos meus dentes
detrás dos dentes
na língua que se move
presa no fundo da garganta? que nome tenho
na escuridão do esôfago?
no estômago
na química
dos intestinos?

Quem em mim secreta
saliva? excreta
fezes?
quem enbranquece em meus cabelos
e vira pus nas gengivas?

Quem sou eu
ao lado da Biblioteca Nacional
tão frágil, meu deus, na noite
sob as estrelas?
e no entanto impávido!
(a mexer no armário de roupas
num apartamento da Tenente Possolo
em 1952
vivo a história do homem).

J'irai sous la terre
et toi, tu marcheras dans le soleil.

Tudo o que sobrará de mim
é papel impresso.
Com um pouco de manhã
engastado nas sílabas, é certo, mas
que é isso
em comparação com meu corpo real? meu
corpo
onde a alegria é possível
se mãos lhe tocam os pêlos
se uma boca o beija
o saliva
o chupa com dois olhos brilhantes?

E sou então
praia vento floresta
resposta sem pergunta
o eixo do corpo
na saliva dourada
giro
e giramos
com o verão que se estende por todo o hemisfério sul.

Como dizer então: pouco
me importa a morte?
E sobretudo se existem as histórias em quadrinhos
e os programas de televisão
que continuarão a passar noite após noite
no recesso dos lares
numa terça-feira que antecede à quarta
numa quinta-feira que antecede à sexta
ou num sábado
ou num domingo.
Como dizer
pouco me importa?

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar


segunda-feira, abril 18, 2011

Manuel Bandeira viu Teresa apenas três vezes. Na última, não viu mais nada.



Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas


Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

sexta-feira, abril 15, 2011

Que me resta meu Deus? Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro, diz Álvares de Azevedo em versos de desespero.



Adeus, meus sonhos!

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!
Misérrimo! Votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto,
E minha'alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.
Que me resta, meu Deus?
Morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já não vejo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!!!

Álvares de Azevedo
(1831-1852)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

quinta-feira, abril 14, 2011

Mão certeira com a água, intimidade com a terra, empenho do coração. Assim se faz o poema, segundo Eugénio de Andrade.


A arte dos versos

Toda a ciência está aqui,
na maneira coom esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quarta-feira, abril 13, 2011

Manuel Bandeira quer a estrela da manhã. E pede: meus amigos, meus inimigos, procurem a estrela da manhã, pura ou degradada até a última baixeza.


Estrela da manhã

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem malsexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e o sacritão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas
de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

segunda-feira, abril 11, 2011

Quem me quiser maltratar, quem me quiser renegar, quem me quiser esquecer, faça-o agora. É o que sente Cecília Meireles em seu pequeno mundo sem chaves, quase como uma sepultura.



Quem me quiser maltratar

Quem me quiser maltratar;
maltrate-me agora,
pois é tarde, e cansado
de trabalhos e penas,
quem se defende a esta hora?

Quem me quiser renegar,
renegue-me agora,
porque o meu sono é tão grande
que tudo aceito - nem sinto
se alguém se for embora.

Quem me quiser esquecer,
esqueça-me agora:
que eu não lamento nem sofro,
tonta do dia excessivo.
Tão sem força, quem chora?

(Noite imóvel, noite escura,
forrada de sedas suaves,
pequeno mundo sem chaves,
quase como a sepultura.)

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

domingo, abril 10, 2011

Não facilite com a palavra amor, não a empregue sem razão acima de toda razão. Não a pronuncie, recomenda um amargo Drummond.



O seu santo nome

Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, abril 09, 2011

No poema de Manoel de Barros, para o patrão Sebastião só servia para urubuzeiro. Mas um dia pegaram Sebastião a prosear em estrangeiro com os urubus.


O urubuzeiro

Meu amigo Sebastião estourou a infância dele e mais
duas pernas.
No mergulho contra uma pedra na Cacimba da Saúde.
Quarenta ano mais tarde Sebastião remava uma canoa
no rio Paraguaio.
E deu o barranco de uma charqueada.
Sebastião subiu o barranco se arrastando como um
caranquejo trôpego
Até a casa do patrão e pediu um trabalho.
O patrão olhou para aquele pedaço de pessoa e disse:
Você me serve para urubuzeiro.
(Urubuzeiro era tarefa de espantar os urubus que
atentavam nos tendais de carne).
Trabalho de Sebastião era espantar os urubus.
Sebastião espantava espantava espantava.
Os urubus voltavam de bandos.
Sebastião espantava espantava.
Um dia pegaram Sebastião a prosear em estrangeiro
com os urubus.
Chegou que Sebastião permitiu que os urubus
fizessem farra nas carnes.
Os urubus faziam farra e conversavam em estrangeiro
com Sebastião.
Veio o patrão e mandou Sebastião para o manicômio.
No manicômio ninguém compreendia a língua de
Sebastião.
De forma que Sebastião despencou do seu normal
E foi encontrado na rua falando sozinho em
estrangeiro.


Manoel de Barros
(1916)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

quinta-feira, abril 07, 2011

Na tua mão de paz, na tua mão de guerra, se já nasceu amor, faz ninho a mágoa. Saramago em tempo de paz e de guerra.


De Paz e de Guerra

Na mão serena que num gesto de onda
Em estátua musical o ar modela.

Na mão torcida que num frio de gelo
A parede do tempo em fundos gritos risca.

Na mão de febre que num suor de chama
Em cinzas vai tornando quanto toca.

Na mão de seda que num afago de asa
Faz abrir os sonhos como fontes de água.

Na tua mão de paz, na tua mão de guerra,
Se já nasceu amor, faz ninho a mágoa.

José Saramago 
(1922-2010)

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, abril 06, 2011

Doem os olhos, tremem as mãos, palpita o espírito de Abgar Renault. E ele tem o coração cheio de coisas para dizer.



Desintegração

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer...
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação.

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos tremem ainda ao contato
imaterial, sub-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo...

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita! Tenho o coração cheio de coisas para dizer...
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

terça-feira, abril 05, 2011

O homem ainda vai ser bom para o homem. Aí, lembrai-vos de nós, como pediu Bertolt Brecht.


Aos que vierem depois de nós

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fonte sem rugas
denota insensibilidade.
Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo.

Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, - espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Bertolt Brecht
( 1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://en.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

segunda-feira, abril 04, 2011

Sophia de Mello Breyner sabe que não é perfeição nem maravilha, E imperfeita, não pode comungar na perfeição aos deuses oferecida.


Pra minha imperfeição

Pra minha imperfeição está suspenso
Em cada flor da terra um tédio imenso.

Todo o milagre, toda a maravilha
Torna mais funda a minha solidão.
E todo o esplendor pra mim é vão,
Pois não sou perfeição nem maravilha.

As flores, as manhãs, o vento, o mar
Não podem embalar a minha vida.
Imperfeita não posso comungar
Na perfeição aos deuses oferecida.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

sábado, abril 02, 2011

Para Alberto Caeiro, o que nós vemos das cousas são as cousas. O essencial é saber ver, e nem pensar quando se vê, nem ver quando se pensa.


O que nós vemos das cousas 

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Porque veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver qundo se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso ( triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendisagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

As lágrimas que Florbela chora, ninguém as vê brotar dentro da alma. E ninguém as vê cair dentro dela.


Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

sexta-feira, abril 01, 2011

Para Leminski, os poemas são idéias. Ontem, coisa inteira, hoje, apenas manchas.



Azuis como os sorrisos das crianças

Azuis como os sorrisos das crianças
e pesados como os provérbios das velhas
anos cultivei a idéia do poema,
coisa inteira, ovo, ânsia e antena,
meus poemas são idéias
ontem, coisa inteira, hoje, apenas manchas

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski