domingo, maio 31, 2009

Quando olho para mim não me percebo. Nem sei bem se sou quem em mim sente, reconhece Álvaro de Campos depois de muito se perguntar.


Quando olho
para mim não me percebo


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Não sei bem se sou eu quem em mim sente.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Lya Luft diz que em tantos breves anos foram se trocando mais que desigualdades, semelhanças. E aos poucos dois são um, sem que deixem de ser plurais.


Tão sutilmente em tantos breves anos


Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Os prantos de amargores de Casimiro de Abreu são prantos cheios de dores. Saudades dos seus amores, saudades da sua terra.


Saudades


Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar;
Quando a lua majestosa
Surgindo linda e formosa,
Como donzela vaidosa
Nas águas se vai mirar!

Nessas horas de silêncio
De tristezas e de amor,
Eu gosto de ouvir ao longe,
Cheio de mágoa e de dor,
O sino do campanário
Que fala tão solitário
Com esse som mortuário
Que nos enche de pavor.

Então - proscrito e sozinho -
Eu solto aos ecos da serra
Suspiros dessa saudade
Que no meu peito se encerra
Esses prantos de amargores
São prantos cheios de dores:
Saudades - Dos meus amores
Saudades - da minha terra!

Casimiro de Abreu
(1839-1860)

Mais sobre Casimiro de Abreu em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Casimiro_de_Abreu

sábado, maio 30, 2009

Augusto dos Anjos confessa ser um amante da dor. E que sua maior ventura é estar de posse de claridades absolutas.


Hino à dor


Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam...

És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!

Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tato
Prendo a orquestra de chamas que executas...

E, assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha maior ventura é estar de posse
De tuas claridades absolutas!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Sempre a Razão vencida foi de Amor. Mas, quando a pedido do coração, quis o Amor ser vencido da Razão, Camões escreveu um de seus mais belos poemas.


Sempre a Razão vencida foi de Amor


Sempre a Razão vencida foi de Amor,
mas, porque assi o pedia o coração,
quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
que perde suas forças a afeição,
porque não perca a pena o seu rigor.
Pois nunca houve fraqueza no querer,
mas antes muito mais se esforça assim
um contrário com outro por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
não creio que é razão; mas há de ser
inclinação que eu tenho contra mim.


Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

Mais sobre Luís Vaz de Camões em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

Há vozes que clamam por mim, há vozes que gritam meu nome, diz Adalgisa Nery. Procurando quem chama, sua memória desce aos abismos escuros.


Mistério


Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranquilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência
Na ânsia de saber quem grita.

Adalgisa Nery
(1905-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

sexta-feira, maio 29, 2009

Como saberia amar-te, mulher, como saberia amar-te, amar-te como nunca soube ninguém. Nos versos de Neruda, a louca paixão pela mulher amada.


Amor


Mujer, yo hubiera sido tu hijo, por beberte
la leche de los senos como de un manantial,
por mirarte e sentirte a mi lado y tenerte
en la risa de oro y la voz de cristal.
Por sentirte en mis venas como Dios en los rios
y adorarte en los tristes huesos de polvo y cal,
porque tu ser pasara sin pena al lado mío
y saliera en la estrofa - limpio de todo mal -.

Cómo sabría amarte, mujer, cómo sabría
amarte, amarte como nadie supo jamás!
Morir y todavia
amarte más.
Y todavia
amarte más
y más.

Pablo Neruda
(1904-1973 )

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Leminski tem a impressão que já disse tudo. E tudo foi tão de repente.


Já disse de nós


Já disse de nós.
Já disse de mim.
Já disse do mundo.
Já disse agora,
eu que já disse nunca.
Todo mundo sabe,
eu já disse muito.

Tenho a impressão
que já disse tudo.
E tudo foi tão de repente.


Paulo Leminski
(1944-1989 )

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quinta-feira, maio 28, 2009

De Vinicius à mulher do povo: Ao teu encontro onde estiveres, pois assim querem os malmequeres. Porque és tu santa entre as mulheres, te encontrarei!


Valsa à mulher do povo


Oferenda

Oh minha amiga da face múltipla
Do corpo periódico e geral!
Lúdica, efêmera, inconsútil
Musa central-ferroviária!
Possa esta valsa lenta e súbita
Levemente copacabanal
Fazer brotar do povo a flux
A tua imagem abruptamente
Ó antideusa!

Valsa

Te encontrarei na barca Cubango, nas amplas salas da Cubango
Vestida de tangolamango
Te encontrarei!
Te encontrarei nas brancas praias, pelas pudendas brancas praias
Itinerante de gandaias
Te encontrarei. Te encontrarei nas feiras-livres
Entre moringas e vassouras, emolduradas de cenouras
Te encontrarei. Te encontrarei, te encontrarei
Nos longos footings suburbanos, tecendo os sonhos mais humanos
Capaz de todos os enganos
Te encontrarei. Te encontrarei nos cais noturnos
Junto a marítimos soturnos, sombras de becos taciturnos
Te encontrarei. Te encontrarei, oh mariposa
Oh taxi-girl, oh virginete pregada aos homens a alfinete
De corpo saxe e clarinete
Te encontrarei. Oh pulcra, oh pálida, oh pudica
Oh grã-cupincha, oh nova-rica
Que nunca sais da minha dica: sim, eu irei
Ao teu encontro onde estiveres
Pois que assim querem os malmequeres
Porque és tu santa entre as mulheres
Te encontrarei!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

No silêncio mais fundo, em que a vida se fez perenidade, José Saramago procura a mão dela e decifra a causa de querer e não querer. Final, intimidade.


Intimidade


No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não querer, final, intimidade.

José Saramago

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, maio 27, 2009

Alberto Caeiro & Tom Jobim, em "O Tejo não é o rio de minha aldeia", canta Tom Jobim.



Link para fazer o download do poema em mp3 do canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/7486597-7b8

O Tejo


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Porque o Tejo não é o rio que corrre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior que o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
e mais sobre Antonio Carlos Jobim em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Carlos_Jobim

Oswald de Andrade vê a metalúrgica a pleno vapor para aumentar os lucros dos seus donos. E lá embaixo os operários forjam as primeiras lascas de aço.


Metalúrgica


1300º à sombra dos telheiros retos
12000 cavalos invisíveis pensando
40000 toneladas de níquel amarelo
Para sair do nível das águas esponjosas
E uma estrada de ferro nascendo do solo
Os fornos entroncados
Dão o guso e a escória
A refinação planta barras
E lá embaixo os operários
Forjam as primeiras lascas do aço

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

terça-feira, maio 26, 2009

São tantas as Marias na vida de Manuel Bandeira que é um nunca acabar. Mas a melhor das Marias foi aquela que ele perdeu.


Canção de muitas Marias


Uma, duas, três Marias,
Tira o pé da noite escura.
Se uma Maria é demais,
Duas, três, que não seria?

Uma é Maria da Graça,
Outra é Maria Adelaide:
Uma tem o pai pau-d'água,
Outra tem o pai alcaide.

A terceira é tão distante
Que só vendo por binóculo.
Essa é Maria das Neves,
Que chora e sofre do fígado!

Há mais Marias na terra,
Tantas que é um não acabar,
- Mais que as estrelas no céu,
Mais que as folhas na floresta,
Mais que as areias no mar!

Por uma saltei de vara.
Por outra estudei tupi.
Mas a melhor das Marias
Foi aquela que eu perdi.

Essa foi a Mária Cândida
(Mária, digam por favor),
Minha Maria enfermeira,
Tão forte e morreu de gripe,
Tão pura e não teve sorte,
Maria do meu amor.

E depois dessa Maria,
Que foi cândida no nome,
Cândida no coração;
Que em vida foi a das Dores.
E hoje é Maria do Céu:
Não cantarei mais nenhuma,
Que a minha lira estalou,
Que a minha lira morreu!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Um passeio de Gilberto Freyre pelas velhas janelas do Recife e de Olinda. São poucos os que conhecem a poesia do autor de Casa Grande & Senzala.


Velhas janelas do Recife e de Olinda


Velhas janelas do Recife e de Olinda
últimos olhos para as cidades que se transformam.

Da janela escancarada no nicho da Igreja do Livramento,
todas as noites desce sobre o bairro, sobre o Recife todo um
longo olhar de queixa; e outro olho de queixa é o do nicho
do Convento do Carmo, que às vezes também se escancara
e se ilumina.

Nas ruas napolitanas
do bairro de São José
com as roupas a secar
ainda se encntram antigas
janelas quadriculadas
os xadrezes dos postigos
que outrora amouriscavam
todo o Recife.

Em Olinda, na rua do Amparo,
existe o abalcoado levantino
que romantiza toda a rua, à noite.
Na varanda parece debruçar-se
doce figura de mulher que chama
o cauteloso amante em capa negra
para um encontro como nas estampas
do tempo de Romeu e Julieta.
Através do xadrez
dessas velhas janelas
as mulheres de outrora
de um saber quase árabe
gulosamente olhavam
o que ia lá fora.

Essas velhas janelas
tomavam ar de festa
apenas durante os
dias de procissão.
Botavam-lhe as sanefas
de damasco e de seda,
ou de veludo, orgulho
das arcas e baús
dessas casas fidalgas,
as mulheres então
olhavam nas varandas
ou ficavam de joelhos
sobre os abalcoados
benzendo-se e rezando
diante da procissão.

Imagens tristes de Nossos Senhores
e de Nossas Senhoras cujos olhos
eram de queixa e dor; santos, andores,
padres gordos de murças e de rendas;
frades com seus cordões, os irmãos de opas
e escapulários de variadas cores.

Ficavam na varanda
e no abalcoado, as mulheres
entre o pelo-sinal
e entre a rua e as sanefas.
Essas velhas janelas...

Gilberto Freyre
(1900-1987)

Mais sobre Gilberto Freyre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Freyre

segunda-feira, maio 25, 2009

Em sua última cantiga, Cecília Meireles diz que ondas seguidas de saudade caminharão na direção do seu amor. Caminharão, sem nenhuma finalidade.


A última cantiga


Num dia que não se advinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-se: "Era a expressão
que ela ultimamente tinha."

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça
- toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito "Não".

E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Ela cantava tão bem que toda a vizinhança passou a invejá-la. E Hilda Hilst conta a incrível maldade que aquelas mulheres fizeram com a cantora.


A cantora gritante


Cantava tão bem
Subiam-lhe oitavas
Tantas tão claras
Na garganta alva
Que toda vizinhança
passou a invejá- la.
(As mulheres, eu digo,
porque os maridos
às pampas excitados
de lhe ouvir os trinados,
a cada noite
em suas gordas consortes
enfiavam os bagos).
Curvadas, claudicantes
De xerecas inchadas
Maldizendo a sorte
Resolveram calar
A cantora gritante.
Certa noite...de muita escuridão
De lua negra e chuvas
Arrumaram o jumento Fodão a um toco negro.
E pelos gorgomilos
Arrastaram também
A Garganta Alva
Pros baixios do bicho.
Petrificado
O jumento Fodão
Eternizou o nabo
Na garganta-tesão... aquela
Que cantava tão bem
Oitavas tão claras
Na garganta alva.

Moral da estória:
Se o teu canto é bonito
Cuida que não seja um grito.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

domingo, maio 24, 2009

Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo, mas eu simplesmente sinto com a imaginação, não uso o coração. Assim, Fernando Pessoa explica seu ofício.


Isto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Semente, muito mais do que raízes. Adélia Prado quer o que antes da vida foi o profundo sono das espécies, a graça de um estado.


Exausto


Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Em plena ascensão do nazismo, Bertolt Brecht descobre algumas semelhanças entre governos e jovens artistas. Um poema para ser muito pensado.


O governo como artista

1

Na construção de palácios e estádios
Gasta-se muito dinheiro. Nisso
O governo se parece com o jovem artista que
Não teme a fome, quando se trata
De tornar seu nome famoso. No entanto
A fome que o governo não teme
É a fome de outros, ou seja
Do povo.

2.

Assim como o artista
O governo dispões de poderes sobrenaturais
Sem que lhe digam algo
Sabe de tudo. O que sabe fazer
Não aprendeu. Nada aprendeu.
Sua formação tem falhas, entretanto
É magicamente capaz
De em tudo interferir, tudo determinar
Também o que não compreende.

3.

Um artista pode, como se sabe, ser um tolo e no entanto
Ser um grande artista. Também nisso
O governo parece um artista. Dizem de Rembrandt
Que ele não pintaria de outra maneira, se tivesse nascido sem mãos.
Assim também pode-se dizer do governo
Que não governaria de outro modo
Talvez nascido sem cabeça.

4.

Espantoso no artista
É o dom da invenção. Quando ouvimos o governo
Descrevendo a situação, dizemos
Como inventa! Pela economia
O artista tem apenas desprezo, e bem assim
É notório como o governo despreza a economia. Naturalmente
Ele tem alguns ricos patronos. E como todo artista
Vive do dinheiro que arrecada.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

sábado, maio 23, 2009

Florbela Espanca sente uma saudade que nem sabe de onde vem. Na noite, ela nunca sabe quem é, nem o que tem.


Noite de saudade


A noite vem poisando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a benção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a noite escura!

Por que és assim tão 'scura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma Saudade igual a que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Aurélio Buarque de Holanda conhece como ninguém as palavras. E com elas também cria lindos poemas.


Soneto

Amar-te – não por gozo da vaidade,
Não movido de orgulho ou de ambição,
Não à procura da felicidade,
Não por divertimento à solidão.

Amar-te – não por tua mocidade
- Risos, cores e luzes de verão -
E menos por fugir à ociosidade,
Como exercício para o coração.

Amar-te por amar-te: sem agora:
Sem amanhã, sem ontem, sem mesquinha
Esperança de amor, sem causa ou rumo.

Trazer-te incorporada vida fora,
Carne de minha carne, filha minha,
Viver do fogo em que ardo e me consumo.

Aurélio Buarque de Holanda

(1910-1989)

Mais sobre Aurélio Buarque de Holanda em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Aur%C3%A9lio_Buarque_de_Holanda_Ferreira



No poema de Olavo Bilac, a música brasileira tem todo o feitiço do pecado humano. É um beijo de três saudades, uma flor amorosa de três raças tristes.


Música brasileira

Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac_(poeta)

sexta-feira, maio 22, 2009

O poema brasileiro de Ferreira Gullar é um poema triste, muito triste. Mesmo que os números de hoje sejam diferentes do que os de 40 anos atrás.


Poema brasileiro


No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Por que ela se despe? Por que ela se veste? Nuno Júdice não entende aquela mulher, mas se disser que não a quer, ele confessará que está mentindo.


Ninfa apanhada no bosque


Por que se despe? Ou por
que se veste? Entre um e outro
movimento, é o corpo que
se oferece. A quem? Para
quê? Não se sabe quem
a merece: fauno à deriva
em campos sem ninguém,
ou amante perdido
à sua mercê. É para ti
que ela olha? Ou para
mim, que a pinto? No seu
pedaço de campo, talvez
me acolha; e se disser
que não a quero, minto.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

quinta-feira, maio 21, 2009

Em versos, Drummond diz que também já foi brasileiro. E que ponteou viola, guiou forde e aprendeu na mesa dos bares que o nacionalismo é uma virtude.


Também já fui brasileiro


Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Se eu morresse amanhã, não me bateria tanto amor no peito. Mas essa é a dor da vida que devora, diz Álvares de Azevedo em um de seus belos poemas.


Se eu morresse amanhã


Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia da glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Álvares de Azevedo
(1831-1852)

Mais sobre Álvares de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

quarta-feira, maio 20, 2009

Naquele dia, uma linda e alegre menina entrou correndo no céu. E Mario Quintana conta em versos a história triste da mulher perdida.


Pequena crônica policial


Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...

Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no céu?
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Cora Coralina lamenta a decadência do velho sobrado. E sente que com ele vão desabando as senhoras e cavalheiros daquela época, tão desusados...


Velho sobrado


Um montão disforme. Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almolfadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.

Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha enfolhada,
berrante de flores amarelas
cingindo tudo.
Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho.
No alto, instala-se, dominadora,
uma jovem gameleira, dona do futuro.
Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
- um muro.

Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas,
de ferro forjado,
cede.

Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
O sobradão dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje. Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados - passantes e vizinhos.
Aos poucos, a "fortaleza" desabando.

Quem se lembra?
Quem se esquece?

Padre Vicente José Vieira.
D. Irene Manso Serradourada.
D. Virgínia Vieira
- grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica da cidade.
Benjamim Vieira,
Rodolfo Luz Vieira,
Ludugero,
Angela,
Débora. Maria...
tão distante a gente do sobrado...

Bailes e saraus antigos.
Cortesia. Sociedade goiana.
Senhoras e cavalheiros...
- tão desusados...
O passado...

A escadaria de patamares
vai subindo...subindo...
Portas no alto.
À direita. À esquerda.
Se abrindo, familiares.

Salas. Antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes forradas de papel,
desenho de querubins, segurando
cornucópia e laços.
Retratos de antepassados,
solenes, empertigados.
Gente de dantes.

Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas
sustentando
jarrões pesados.
Antigas flores
de que ninguém mais fala!
Rosa cheirosa de Alexandria.
Sempre-viva. Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jardim-do-cabo. Resedá.
Um aroma esquecido
- manjerona.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

terça-feira, maio 19, 2009

No belo poema de Vinicius de Moraes, sua amada veio de leve, veio de longe, em silêncio. E ela vai lhe sugar o sangue, que é a luz da vida.


A que vem de longe


A minha amada veio de leve
A minha amada veio de longe
A minha amada veio em silêncio
Ninguém se iluda.

A minha amada veio da treva
Surgiu da noite qual dura estrela
Sempre que penso no seu martírio
Morro de espanto.

A minha amada veio impassível
Os pés luzindo de luz macia
Os alvos braços em cruz abertos
Alta e solene.

Ao ver-me posto, triste e vazio
Num passo rápido a mim chegou-se
E com singelo, doce ademane
Roçou-me os lábios.

Deixei-me preso ao seu rosto grave
Preso ao seu riso no entanto ausente
Inconsciente de que chorava
Sem dar-me conta.

Depois senti-lhe o tímido tato
Dos lentos dedos a tocar-me o peito
E as unhas longas se me cravarem
Profundamente.

Aprisionado num só maneio
Ela cobriu-me de seus cabelos
E os duros lábios no meu pescoço
Pôs-se a sugar-me.

Muitas auroras transpareceram
Do meu crescente ficar exangue
Enquanto a amada suga-me o sangue
Que é a luz da vida.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Cassiano Ricardo diz que o destino dói como uma bofetada em seu rosto. Porque em seu rosto ele está nu, originalmente.


O acusado


Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia
De chorar, me vinham de outros olhos.

Já o sangue que caminha em minhas veias pro futuro
Era um rio.

Quando eu nasci já as estrelas estavam em seus lugares
Definitivamente
Sem que eu lhes pudesse, ao menos, pedir que influíssem
Desta ou daquela forma, em meu destino.

Eu era o irmão de tudo: ainda agora sinto a nostalgia
Do azul severo, dramático e unânime.
Sal - parentesco da água do oceano com a dos meus olhos,
Na explicação da minha origem.

Quando eu nasci, já havia o signo do zodíaco.

Só, o meu rosto, este meu frágil rosto é que não
Quando eu nasci.

Este rosto que é meti, mas não por causa dos retratos
Ou dos espelhos.

Este rosto que é meu, porque é nele
Que o destino me dói como uma bofetada.
Porque nele estou nu, originalmente.
Porque tudo o que faço se parece comigo.
Porque é com ele que entro no espetáculo.
Porque os pássaros fogem de mim, se o descubro
Ou vêm pousar em mim quando eu o escondo.

Cassiano Ricardo
(1895-1974 )

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

domingo, maio 17, 2009

Do que quero renego, se o querê-lo me pesa na vontade. Nada que haja vale que lhe concedamos uma atenção que doa, canta Ricardo Reis em sua ode.


Do que quero


Do que quero renego, se o querê-lo
Me pesa na vontade. Nada que haja
Vale que lhe concedamos
Uma atenção que doa.
Meu balde exponho à chuva, por ter água.
Minha vontade, assim, ao mundo exponho,
Recebo o que me é dado,
E o que falta não quero.

O que me é dado quero
Depois de dado, grato.

Nem quero mais que o dado
Ou que o tido desejo.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Para Thiago de Mello, um dia as colunas da injustiça vão desabar. Mas só quando o povo souber achar o caminho que leva à libertação.


Quando a verdade for flama


As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da servidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Brasileiro sossegado, dorme teu sono calado. Em sua toada, Pedro Nava quer o sono do irmão proteger.


Toadas para meu irmão


Nem eu posso esconder
que esta noite fina assim
seja a mesma noite assu
que assombra Taquarassu!

Que seja a mesma noite densa
soturno enorme abajada
escondendo o sofrimento
dos brasileiros calados!

Mas fosse a noite maior
mais densa, mais abajada
mesmo assim seria fraca
e se deixaria varar
pela ternura que eu mando
voando com a força do vento
- Meu pensamento rasgando
o assombro da noite assu
vai velar sono cansado
dos brasileiros calados...

O sono tão sossegado
de um brasileiro cansado
dormindo na noite assu
que esmaga Taquarassu!

Da cidade outro poeta
quer a distância varar
pra ver o sono do irmão
seu descanso proteger!

Dorme teu sono José...

(...)

Meu pensamento voando
nesta noite fina assim
vai fugindo da cidade
desgarra sertão afora
pra vigiar bem de perto
o doce sono sossegado
dum brasileiro calado!

Te beijo de leve nos olhos
te beijo de leve na face
te beijo o cabelo inteirinho
te beijo no coração...

Brasileiro sossegado
dorme teu sono calado...

Dorme teu sono José...
E me perdoa, meu Mano
se eu não posso cantar
cantos mansos pro teu sono!
Quem me dera, mas não posso!
Pois na noite da cidade
Só de pensar no teu sono,
as veias ficaram doendo
O corpo todo sem jeito
fiquei esquisito, palavra!
Coração no peito calado...
Que dor nos nervos senti
de não ter voz pra falar
(o coração no peito calado)
de não ter choro pra chorar
de palavra não achar,
dor(i)da boa sincera

como aquela comovida
achada por Mário de Andrade
(aquela tão comovida)
que acalantou de São Paulo
o brasileiro do Acre...
Te beijo o cabelo inteirinho
te beijo no coração...

Descansa na noite mansa
descansa, Mano, descansa...

Pedro Nava
(1903-1984)

Mais sobre Pedro Nava em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Nava

sábado, maio 16, 2009

Manuel Bandeira e a que não morrerá nunca. A menina, o anjo, a flor de todos os tempos.


Flor de todos os tempos


Dantes a tua pele sem rugas,
A tua saúde
Escondiam o que era
Tu mesma.

Aquela que balbuciava
Quase inconscientemente:
"Podem entrar."

A que me apertava os dedos
Desesperadamente
Com medo de morrer.

A menina.
O anjo.
A flor de todos os tempos.
A que não morrerá nunca.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Mesmo os que não viveram os horrores de uma ditadura, devem entender a força destes versos de Sophia de Mello Breyner. Democracia, sempre!


Exílio


Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Abgar Renault sofre a morte do filhinho da lavadeira da rua feia. E lá no alto vai-se abrindo grande céu sem mancha cruzeiro-do-sulmente iluminado.


Na rua feia


Na rua feia
de casas pobres,
morreu o filhinho daquela mulher
que lava o linho rico
de um bairro distante.
Morreu bem simplesmente,
assim como um passarinho.
O enterro saiu...lá vai...
um caixãozinho azul
num carro velho de 3a. classe.
Atrás dois autos. Dois.

A tarde irá pôr luto
na rua feia,
de casas pobres?

Garotos brincam de esconder
atrás do muro de cartazes.
Lá no alto
vai-se abrindo grande céu sem mancha
cruzeiro-do-sulmente iluminado.

Abgar Renault
(1901-1995)

Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault

sexta-feira, maio 15, 2009

Uma única vez o sorriso dela se abriu entre as covinhas do rosto infantil. Mas para Guimarães Rosa é bem assim que os seus sonhos o possuem.


Elegia


Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez...

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim...
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

No versos de Mayakovsky, dá para sentir como o Primeiro de Maio é importante em sua vida. É a sua era, ele é operário e é camponês.


Meu maio


A todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua -
Primeiro de Maio!
Meu mundo, em primaveras,
derrete a neve com sol gaio.
Sou operário -
Este é o meu maio!
Sou camponês - Este é o meu mês.
Sou ferro -
Eis o maio que eu quero!
Sou terra -
O maio é minha era!

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://en.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

quinta-feira, maio 14, 2009

Cecília Meireles leva nos ombros um secular compromisso. A poeta conduz seu povo e a ele se entrega.


Compromisso


Transportam meus ombros secular compromisso.
Vigílias do olhar não me pertencem;
trabalho dos meus braços
é sobrenatural obrigação.

Perguntam pelo mundo
olhos de antepassados;
querem, em mim, suas mãos
o inconseguido.
Ritmos de construção
enrijeceram minha juventude,
e atrasam-me na morte.
Vive! - chamam os que se foram,
ou cedo ou irrealizados.
Vive por nós! - murmuram suplicantes.

Vivo por homens e mulheres
de outras idades, de outros lugares, com outras falas.
Por infantes e velhinhos trêmulos.
Gente do mar e da terra,
suada, salgada, hirsuta.
Gente da névoa, apenas murmurada.

É como se ali na parede
estivessem a rede e os remos,
o mapa,
e lá fora crescessem uva e trigo,
e à porta se chegasse uma ovelha,
que me estivesse mirando em luar,
e perguntando-se, também.

Esperai! Sossegai!

Esta sou eu - a inúmera.
Que tem tem de ser pagã como as árvores
e, como um druida, mística.
Com a vocação do mar, e com seus símbolos.
Com o entendimento tácito,
instintivo,
das raízes, das nuvens,
dos bichos e dos arroios caminheiros.

Andam arados, longe, em minh'a alma.

Andam os grandes navios obstinados.

Sou minha assembléia,
noite e dia, lucidamente.

Conduzo meu povo
e a ele me entrego.
E assim nos correspondemos.

Faro do planeta e do firmamento,
bússola enamorada da eternidade,
um sentimento lancinante de horizontes,
um poder de abraçar, de envolver
as coisas sofredoras,
e levá-las nos ombros, como os anhos e as cruzes.

E somos um bando sonâmbulo
passeando com felicidade
por lugares sem sol nem lua.

Cecília Meireles
(1901-1964 )

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Tarde no Recife. E lá vai Joaquim Cardozo em seu passeio pela romântica cidade.


Tarde no Recife


Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde da Café Maxime,
cais do abacaxi,
gameleiras.

Da torre do Telégrafo Ótico
a voz colorida das bandeiras anuncia
que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita;
a tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um camelô gritando - alerta!
Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes,
dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses,
que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas do Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do rio.

Joaquim Cardozo
(1897-1978)

Mais sobre Joaquim Cardozo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Cardoso

quarta-feira, maio 13, 2009

Uma tarde no campo. E Augusto dos Anjos escreveu um dos seus mais belos sonetos.


No campo


Tarde. Um arroio canta pela umbrosa
Estrada; as águas límpidas alvejam
Com cristais. Aragem suspirosa
Agita os roseirais que ali vicejam.

No alto, entretanto, os astros rumorejam
Um presságio de noute luminosa
E ei-la que assoma - a Louca tenebrosa,
Branca, emergindo às trevas que a negrejam.

Chora a corrente múrmura, e, à dolente
Unção da noite, as flores também choram
Num chuveiro de pétalas, nitente,

Pendem e caem - os roseirais descoram
E elas bóiam no pranto da corrente
Que as rosas, ao luar, chorando enfloram.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Cruz e Sousa sempre seguiu os passos daquela vida obscura. E sabe a cruz infernal que ela carregou nos braços até o suspiro profundo.


Vida obscura


Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres,
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

Cruz e Sousa
(1891-1968)

Mais sobre Cruz e Sousa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruz_e_Sousa

terça-feira, maio 12, 2009

No belo poema de Ferreira Gullar, ela é uma rainha e parece mendiga. Ela é uma nordestina.


Uma nordestina


Ela é uma pessoa
no mundo nascida.
Como toda pessoa
é dona da vida.

Não importa a roupa
de que está vestida.
Não importa a alma
aberta em ferida.
Ela é uma pessoa
e nada a fará
desistir da vida.
Nem o sol do inferno
a terra ressequida
a falta de amor
a falta de comida.
É mulher é mãe:
rainha da vida.

De pés na poeira
de trapos vestida
é uma rainha
e parece mendiga:
a pedir esmolas
a fome a obriga.

Algo está errado
nesta nossa vida:
ela é uma rainha
e não há quem diga.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Eugénio de Andrade explica toda a ciência da arte dos versos. E assim se faz o poema.


A arte dos versos


Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

segunda-feira, maio 11, 2009

Murilo Mendes diz que não pode amar ninguém porque ele é o amor. E longe como o diabo, nada o fixa nos caminhos do mundo.


Cantiga de Malazarte


Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pela e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo
nada me fixa nos caminhos do mundo.


Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Para Manoel de Barros, é por demais de grande a natureza de Deus. E ele só queria fazer para ele uma naturezinha particular.


O lápis


É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha
particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu
lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do
meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarino apenas
para uso dos passarinhos.
E que as mães eleborassem outras aves para
compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no
fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante
que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo
dia jogar cangapé nas água correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha
particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, maio 10, 2009

No acordar da cidade de Lisboa, Álvaro de Campos tem pela vida um interesse ávido. E pertence a tudo para pertencer cada vez mais a ele próprio.


Acordar


Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras.
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja.

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito.
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Buscar encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas.
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me às mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Em seu soneto cigano, Augusto Frederico Schmidt amava o amor nas mulheres morenas. E adormecia a mercê dos ventos e das chuvas.


Soneto cigano


Lembra-me sempre a viagem, a grande, a estranha viagem.
As mulheres brincavam e riam ao pé das enormes fogueiras.
Rostos da cor do bronze, olhares misteriosos,
E mãos escuras para todos os misteres.

Lembra-me smpre a viagem, as estradas perdidas
Por onde seguíamos atrás das auroras ingênuas
Que corriam cantando, e atrás das horas fugidias
- Horas que pareciam dançar ao ruído de pandeiros.

Era tudo uma grande inocência e descuido.
O futuro sombrio, as ambições, os medos,
Não me lembro de os ter sentido nesses tempos.

Colhíamos, então, flores e frutos nos caminhos,
Amávamos o amor nas morenas mulheres,
E adormecíamos à mercê dos ventos e das chuvas.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

Se visse por acaso um anjo, Alphonsus de Guimaraens Filho não se surpreenderia. Afinal, não é preciso assistir a milagres para dizer que existem.


Se visse por acaso um anjo

Se visse por acaso um anjo, não me surpreenderia.
Não é preciso assistir a milagres para dizer que existem.
A própria vida é um milagre.
E milagre esta esperança que não se acaba.
Falar, cantar, amar: eis o milagre.
Sofrer: eis o milagre.
Morrer: grande milagre!
Constantemente nos sondamos como quem percorre uma cidade estranha.
E vivemos na atmosfera de uma permanente descoberta.

Para que então a necessidade do milagre?
Não sonhamos olhando a noite?
Não desejamos o intangível?
Não vemos sempre novas estrelas?
Não nos banhamos na luz matinal, retemperadora?
Não choramos diante dos mortos,
Embora para eles tenha deixado de existir a morte?

Viver: grande milagre!
Não bastaria ao homem a presença de um anjo,
Porque o negaria
Como negou a Cristo.
A vida exige sempre.
A morte exige sempre.
Por isso - vida e morte - serão sempre um perene milagre.

Alphonsus de Guimaraens Filho
(1918-2008)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alphonsus_Guimaraens_Filho

sábado, maio 09, 2009

João Cabral de Melo diz que as amadas rebentam nas fontes do poema. Mas uma delas não sabe onde o encontrar.


As amadas


As amadas rebentam nas fontes do poema,
as amadas não são a filha do rei,
uma delas não sabe onde me encontrar;
no pensamento vizinho ao meu
cresce o desejo das amadas;
vou apanhar os peixes da lua
para a fome das amadas.

Mas meu quotidiano irreparável
perdendo suas formas volantes:
- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Para Lya Luft, o melhor cuidado com o amor é deixar que ele floresça. Pois amor não se cultiva, é flor selvagem, bela para ser livre.

Canção em outras palavras

O melhor cuidado com o amor
é deixar que floresça,
pois amor não se cultiva: é flor
selvagem, bela por ser livre.
Como as estações do ano, ele se abre,
dorme, e volta a perfumar a vida.
Amor é dom que se recebe
com ternura, para que não pereça
sua delicadeza em nossa angústia.

O amor não deve encerrar a coisa possuída,
mas ser parapeito de janela, ou cais
de onde se desprendam os revôos
e partam os navios da beleza
para voltar ou não, conforme amarmos:
nem de menos
nem de mais.

Lya Luft

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Devagar, peça mais e mais e mais, diz Ana Cristina Cesar. Ela sabe como são importantes as flores do mais.


Flores do mais


devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar

sexta-feira, maio 08, 2009

Em seu canto da vitória em 8 de maio de 45, Drummond lamentava não estar participando diretamente do fim do nazismo. E vibrava com o russo em Berlim.


Com o russo em Berlim


Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranquilo,
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.

Minha boca fechada se crispava.
Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.

Pois também a palavra era proibida.
As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.

Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.

Eu esperei na China e em todo canto,
em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado,
com o russo em Berlim.

Cidades que perdi, horas queimando
na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.

O campo, o campo, sobretudo o campo
espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.

Nas camadas marítimas, os peixes
me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
com o russo em Berlim.

Essa batalha no ar, que me traspassa
(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).

Muitos de mim saíram pelo mar.
Em mim o que é melhor está lutando.
Possa também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.
Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.

Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.

Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.

Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.

Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

No poema de Dante Milano, o defunto recusa qualquer comunicação com a humanidade. Que lhe é de todo indiferente agora.


Terra de ninguém


A sala recende
A terra molhada,
A caule úmido e raíz apodrecida.

As flores sobre o cadáver
Contraem pétalas enregeladas.
A figura de cera no caixão bordado
Sorri como um cego sorri
Com ar de náusea.

Os convidados expandem uma tristeza festiva.
O defunto recusa
Qualquer comunicação com a humanidade
Que lhe é de todo indiferente agora.
(Ele que morreu "pela Causa" e recebe honras fúnebres.)

Em sua torre de marfim,
Sob o céu absoluto da paisagem devastada,
Reina, altivo. (Há coroas, há bandeiras na sala.)

Passante, descobre-te e não rias,
Respeita a morte e o fedor sê sua glória.

Dante Milano
(1899-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

quinta-feira, maio 07, 2009

Para Mario Quintana, a Poesia tem eternamente esse gosto de nunca e de sempre. Poesia, a sua velha amiga.


Ah, sim, a velha poesia...


Poesia, a minha velha amiga...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma...
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo lá fora, os grilos?
Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.

Entrego-lhes grilos aos milhões um lápis verde um retrato
amarelecido um velho ovo de costura os teus pecados
as reivindicações as explicações - menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos...

Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que
parece que nada tem a ver com os ingredientes mas que
tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Miguel Torga tem um segredo. Ele sabe um ninho e o ninho tem um ovo.


Segredo


Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...


Miguel Torga
(1907-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

quarta-feira, maio 06, 2009

Assim te quero, amor; amor, assim, te amo. Com estes versos, Neruda criou um dos mais belos poemas de amor da língua espanhola.


Asi te quiero, amor


Así te quiero, amor,
amor, así te amo,
así como te vistes
y como se levanta
tu cabellera y como
tu boca se sonríe,
ligera como el agua
del manantial sobre las piedras puras,
así te quiero, amada.

Al pan yo no le pido que me enseñe
sino que no me falte
durante cada día de la vida.

Yo no sé nada de la luz, de dónde
viene ni dónde va,
yo sólo quiero que la luz alumbre,
yo no pido a la noche
explicaciones,
yo la espero y me envuelve,
y así tú, pan y luz
y sombra eres.

Has venido a mi vida
con lo que tú traías,
hecha
de luz y pan y sombra te esperaba,
y así te necesito,
así te amo,
y a quantos quieran escuchar mañana
lo que no les diré, que aquí lo lean,
y retrocedan hoy porque es temprano
para estos argumentos.

Mañana sólo les daremos
una hoja del árbol de nuestro amor, una hoja
que caerá sobre la tierra
como si la hubieran hecho nuestros labios,
como un beso que cae
desde nuestras alturas invencibles
para mostrar el fuego y la ternura
de un amor verdadero.

Pablo Neruda
(1904-1973)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Em seu aviso aos náufragos, Leminski viaja, viaja e, ao voltar, pergunta: Não é assim que é a vida?


Aviso aos náufragos


Esta página, por exemplo
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

terça-feira, maio 05, 2009

Minhalma estava naquele instante fora de mim, longe, muito longe. Chegaste e desde logo foi verão, diz Manuel Bandeira em apaixonada declaração.


Unidade

Minhalma estava naquele instante
Fora de mim longe muito longe

Chegaste
E desde logo foi verão
O verão com as suas palmas os seus mormaços os seus ventos de sôfrega mocidade
Debalde os teus afagos insinuavam quebranto e molície
O instinto de penetração já despertado
Era como uma seta de fogo
Foi então que minhalma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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Adélia Prado tinha um segredo que não podia mais ser guardado. E uma surpreendente declaração de amor a fazer.


Objeto de amor

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

segunda-feira, maio 04, 2009

Eu te peço perdão por te amar de repente. Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos, diz Vinicius de Moraes à mulher amada.


Ternura


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passados eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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Se todas as tuas noites fossem minhas, eu te daria o meu tempo lunar. E agudo se faria o gozo teu, promete Hilda Hilst ao seu amor.


Se todas as tuas noites fossem minhas


Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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domingo, maio 03, 2009

Para Alberto Caeiro tudo o que existe, simplesmente existe. O resto é uma espécie de sono que temos, uma velhice que nos acompanha desde a infância.


Assim


Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade.
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Longe da escola, entre a cama e a janela, o menino, sua mãe e seus brinquedos. Era o menino com medo, não da doença, mas da cura.


Menino doente


Eram o pião, a bola, o realejo,
o trem de corda, a caixa do brinquedo
de armar. Longe da escola, eram os
dedos da mãe, penteando-lhe os cabelos,
a fruteira no quarto, o açúcar-cande,
o resedá por cima da atadura.

Entre a cama e a janela, era o menino
com medo, não da doença, mas da cura.

Mauro Mota
(1911-1984)

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Um argumento muito usado por todos aqueles que sempre fizeram a infelicidade do nosso povo. Desde que Pedro Álvares Cabral aportou por aqui.


Argumento


Mas se todos fazem

Francisco Alvim

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sexta-feira, maio 01, 2009

Os mendigos maiores são um povo que se vai convertendo em pedra. Para Cecília Meireles, esse povo é que é o seu.


Estirpe

Os mendigos maiores não dizem mais, nem fazem nada.
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.
Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de completa coragem,
longe do corpo que fica em qualquer lugar.

Entretêm-se a estender a vida pelo pensamento.
Se alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.
E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente
que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.

Oh! não gemiam não...Os mendigos maiores são todos estóicos.
Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz,
mas não querem que, do outro lado, tenham notícia da estranha sorte
que anda por eles como um rio num país.

Os mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.
Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.
Têm seu reino vazio, de altas estrelas que não cobiçam.
Seu olhar não olha mais, e sua boca não chama nem ri.

E seu corpo não sofre nem goza. E sua mão não toma nem pede.
E seu coração é uma coisa que, se existiu, já esqueceu.
Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai convertendo em pedra.
Esse povo é que é o meu.


Cecília Meireles
(1901-1964)

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Pouco antes de sua morte, Mário de Sá-Carneiro escreveu este lindo poema. Para consolar a um amigo pela morte da sua amante.


Consolação a um amigo pela morte da sua amante


Morreu a tua amante e a sua imagem linda
Alegre e buliçoso, julgas ver ainda!...
Unindo aos teus lábios os lábios seus trementes,
Julgas também vê-la e os ósculos ardentes
Senti-los a queimar!...
Ainda a entrevês esvelta, graciosa,
Divinal, inebriante, como as flores viçosa
Sorrir e fascinar!...

Arrancando-lhe da vida a preciosa essência
A negra morte sem dó determinou
Findar-lhe a existência!...

Mas ela era flor...ora as flores se nascem
É só para que passem
Na vida uma manhã. Se essa ela passou,
Se depois sorrindo ao mundo disse adeus
E abandonando a terra entrou nos céus
Não sei porque é que choras...

Por acaso já viste alguma rosa
Demorar-se no mundo muitas horas
Fresca e viçosa?...

Decerto não. Cala pois
O teu lastimoso pranto
Que no céu vela por ti
Quem na terra te amou tanto.

Ao veres o seu corpo exangue
Sofres-te tu atrozmente
Bem sei, faltava-te o ente
Que era mais do que o teu sangue.

'Té Deus amaldiçoaste,
Oh! mísero, vendo perdido
O teu tesouro mais querido...
Depois a morte imploraste!

Quer dizer: não a conheces
Pois é escusado pedir
À cruel quando alguém
Determinou possuir:

Os nossos gritos são vãos
Fecha os ouvidos aos ais
Que levantam, lancinantes,
Amantes, filhos e pais!

Vendo-a sempre inanimada
Tu falas-me desta sorte:
"De mim, oh! Deus compadece-te,
Oh! faz-me mercê da morte!..."

Não a peças porque ela
Também te virá buscar.
Julgas talvez que no mundo
Hás-de pra sempre ficar?...

Subirás também aos céus
Onde a tua querida amante
Está esperando palpitante
Os ardentes beijos teus...

Serás então venturoso
D'ela não te apartarás
Sempre ao teu lado verás
O seu perfil gracioso!...

Coragem, não desesperes
Porque a morte há-de levar-te
Quando tu menos esperes
Para o céu arrebatar-te

Alento, alento, coragem
Reage...tem paciência!

Querer o mesmo que Deus quer
É a única ciência
Que dá eterno repouso!...

Amigo, pois:
Paciência!...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Mário de Andrade ficou querendo bem às duas costureirinhas. Elas até dão vontade pros homens da rua.


Sambinha


Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras.
Afobadas braços dados depressinha
Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua.
As costureirinhas vão explorando perigos...
Vestido é de seda.
Roupa-branca é de morim.

Falando conversas fiadas
As duas costureirinhas passam por mim.
- Você vai?
- Não vou não!
Parece que a rua parou pra escutá-las.
Nem trilhos sapecas
Jogam mais bondes um pro outro.
E o Sol da tardinha de abril!
Espia entre as pálpebras sapiroquentas de duas nuvens.
As nuvens são vermelhas.
A tardinha cor-de-rosa.

Fiquei querendo bem aquelas duas costureirinhas...
Fizeram-me peito batendo
Tão bonitas, tão modernas, tão brasileiras!
Isto é...
Uma era ítalo-brasileira.
Outra era áfrico-brasileira.
Uma era branca.
Outra era preta.

Mário de Andrade
(1893-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade