sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Ferreira Gullar sabe que a vida é bela, mas não para todos. E sofre porque amanhã ainda não será outro dia.


Voltas para casa


Depois de um dia inteiro de trabalho
voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.

Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonasre, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.

De fato, nada te acontece, exceto
talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando
tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
mas são leituras de jornal. Fremes
ao pensar em certo filme que viste: a vida,
a vida é bela!

A vida é bela
mas não a tua. Não a de Pedro,
de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Míriam, de Luísa...

Às vezes pensas
com nostalgia
nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.

Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para elas
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?

Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outra dia.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Senhora de muito espanto e alguns farrapos de sono. Um dia perdi teu corpo nas cores do mapa-múndi, lamenta Carlos Pena Filho em seus versos de amor.


Poema


Senhora de muito espanto,
vestindo coisas longínquas
e alguns farrapos de sono,

eu vim para te dizer
que inutilmente contemplo
na planície de teus olhos
o incêndio do meu orgulho.

Senhora de muito espanto,
sentada além do crepúsculo
e perfeitamente alheia
a realejos e manhãs.

Eu vim para te mostrar
que se inaugurou um abismo
vertical e indefinido
que vai do meu lábio arguto
ao chumbo do teu vestido.

Senhora de muito espanto
e alguns farrapos de sono,
onde o céu é coisa gasta
que ao meu gesto se confunde.

Um dia perdi teu corpo
nas cores do mapa-múndi.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

Álvares de Azevedo nos mostra que até um poeta romântico também pode ser bem humorado. Ainda mais depois das desventuras de um namoro a cavalo.


Namoro a cavalo


Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.

Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento.

Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...

Álvares de Azevedo
(1831-1852)

Mais sobre Álvares de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Em hora absurda, Fernando Pessoa diz que é um doido que estranha a sua própria alma. E que foi amado em efígie num país para além dos sonhos.


Hora absurda


O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro.
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos licores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas...Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo...Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago azíago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas...Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Erqueram-se a um tempo todos os remos...Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos e não sermos mais! Ó leões nascidos na jaula!...
Repiques de sinos para além, no Outro Vale...Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?...O que está descoberto?...

E eu deliro...De repente pauso no que penso...Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque -
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras nun longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

O que é que me tortura?...Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Murilo Mendes e o Bumba-meu-poeta. A função que o poeta deu na praia do Acaba-mundo.


Bumba-meu-poeta


A família do poeta:

Salve, salve, seu poeta.
Você hoje anunciou
que vai dar uma função
na praia do Acaba-Mundo.
Juntou-se a família toda
para visitar você,
trouxemos alguns vizinhos
para engrossar a função.

O poeta:

Se sentem sem cerimônia,
sejam benvindos, merci.
Os mais malucos na frente
- não têm medo de aplaudir -,
os ajuizados, no fundo.

O professor:

Seu moço me dê licença
de vir arejar um pouco:
Estou com a cabeça quente
de tantas aulas que dei.

O poeta:

Muito obrigado ao senhor,
não me ensinou coisa alguma.
Sendo assim, caí no mundo,
aprendi foi por mim mesmo
sem o método Decrolly.
Louvada seja a burrice,
não tentou meu professor
a me ensinar coisa errada
no deserto do colégio,
coisa alguma me ensinou.

A primeira namorada:

Também eu vim te rever...
Você se lembra de mim?

O poeta:

Como não! Se hoje mesmo
seguro nesta caneta
para um poema dançar,
é porque há quinze anos
você levantava os olhos,
olhou com força para mim,
depois levantou os braços,
me abraçou tão carinhosa.
Como não...se nem um dia
pude esquecer-te, Isabel.
Se a função sair batuta
deveremos a você.
Se assente aqui, faz favor,
neste lugar destinado
às pessoas de destaque...
No lugar de honra mesmo.

Coro de vitrolas:

Tem uma pinta na cara,
o olhar moreno e quieto.
Antigamente seria
uma das nove inspiradoras
que sopravam nos ouvidos
tal qual o Espírito Santo...
no tempo em que os poetas
inda usavam cabeleira.
Tem uma pinta na cara.

O arlequim:

Sou personagem da estranja,
me transportaram pra cá.
Para falar com franqueza
embora me chamem gringo
me sinto melhor aqui
do que me sentia lá.
Não permita Deus que eu morra
tendo voltado pra lá.
Eu aqui tenho prestígio,
uso pencinê de ouro,
empresto dinheiro a juros,
sou ouvido na eleição.

O poeta:

"Seu" diplomata da estranja,
você manda como diz.
Quer um pedaço do reino?

O jazbande:

"Seu" dono da festa, aqui
chegamos meio atrasados.
Encontramos no caminho
um povão em desatino,
vai derrubar o governo.
Ao povo nos ajuntamos,
demos concerto pra ele.
Esse povo não faz nada
sem auxílio musical.

O poeta:

Chegaram já meio tarde,
a festa está começando.
Precisamos de uma música
mais infernal, violenta,
para sacudir o povo.
Enquanto não se fabrica,
vão tomando seus lugares,
não deve o povo tardar.

O deputado:

(Que multidão oportuna!
Arranjarei uns mil votos,
vou ganhar as eleições.)
Meus amigos, vim trazer
uma esplêndida notícia:
as últimas leis sociais
exigem que o povo mande.
Derrubemos os tiranos,
transformemos este mundo
num paraíso ideal.
Eu trago instrução de graça,
remédios aos pontapés,
um grande auxílio à lavoura,
projeto à indústria, o comércio,
só faço o que o povo quer.
É claro que meu rival
não tem competência alguma.
Levarei todos de táxi
pela estrada do porvir.
Em troca somente exijo
que um votinho aqui me dêem.

O poeta:

Passa fora: esta cantiga
não pega mais pro pessoal.
Abaixo a demagogia.
Tome cheiro da festança,
seu deputado de fraque,
depois vá embora daqui
cantar noutra freguesia.
Conosco não violão.

O deputado:

(Felizmente neste mundo
nem todos têm vergonha.
Vou falar com o imperador,
vou falar com o relequim:
providências se darão
pra minha vitória em regra.
Esperem um pouco, canalhas.)
Minha gente, até a volta
se divirtam, minhas flores.

Coro:

Sujeito pra falar mal!
Conosco não violão.

Jornalista:

"Seu" poeta, será possível
se gozar umas casquinhas
de tão celebrada festa?

O poeta:

Faça o favor de chegar,
você é persona grata.
Talvez uns trinta por cento
do que o poeta imagina
foi você que o forneceu.
Você traz algum suicídio,
caso de amor cabeludo,
revolução fracassada,
desastre na lua, o quê?

O jornalista:

Tudo isso que o senhor disse
mais o resto que pensou.

O rancho Lira do Amor:

Ô abre alas que eu quero passar,
eu sou da lira do meu natural.
Não devo pedir licença,
povo é que tem que pedir
pra mim poder funcionar.
Meu rancho já está chegando,
estão afinando as flautas,
os violões e os cavaquinhos
ali no clube da esquina.

O poeta:

Entre, que a casa é sua!
Todos nós te desejamos,
aí vem nosso amigo, vem!

Coro:

Entre que a casa é tua!
Todos nós te desejamos,
aí vem nosso amigo, vem!

O doutor:

Desculpem, que sou penetra!...
Não creio que fui chamado.
Mas estejam descansados:
também sou meio poeta.
Mas estejam descansados:
não vim fazer poesia.
Vi o poeta na praia,
me pareceu assim doente.
Poeta, incline a cabeça:
abra os olhos bem, assim.
O diagnóstico sibilino,
esferoidal, apocalíptico,
acusa sintomas graves
de loucura neste poeta.
Este poeta, já o declaro,
não me cheira muito bem.
Anda meio hipocondríaco,
inquieto, mefistofélico.
Mas aplico já o remédio:
leia, hoje, os meus tratados,
que ficará logo bom.

O agitador:

Poetas de todos os planetas,
uni-vos, senão vocês
nunca mais se aguentarão,
com o primado econômico
do nosso mundo atual.
Já trabalhei muito hoje,
camaradas, quero entrar.

O poeta:

Por minha parte consinto
que entres nesta função.
Quanto ao resto do pessoal
não sei se concordará.

Coro:

Qual o quê, o coro serve
é só pra dizer amém,
tem mesmo que concordar.

O submarino:

Eu sou cavalo-marinho,
danço muito bem no mar.
Eu vim do fundo do mar
trazer aqui a mãe-d'água
para neste baile entrar.

A mãe-d'água:

Pelas teorias modernas
o homem provém do mar.
É por isso que você
prestava tanta atenção
aos contos que te contei
nos seus tempos de menino.
Prestavas mais atenção
aos meus cabelos cacheados.
Hoje estão cortados curto,
me vestiram de maiô,
não me reconheces mais.

O poeta:

Ó mãe-d'água de maiô,
de cabelos aparados,
inda mais bonita estás.

O avião:

Urgente das nebulosas
parti com nevoeiro denso,
trazer esta alma penada
pra concorrer à função.

A namorada morta:

Não sou mais alma penada...
alguém se lembra de mim.

O rancho Lira do Amor:

Em garridos movimentos
em lindas evoluções
com escolhidos pensamentos
viemos saudar o poeta
cantor de tantas paixões
salve, salve, vate ilustre
alma rara de safira
que o segredo da harmonia
guardaste na tua lira
de tão divinal poesia
a ti nossas emoções
tão amigos corações.

O poeta:

Obrigado minha gente!
Vocês ajudam um pedaço
o brilho desta função.

São Francisco:

Aproveitei uma folga
que o inspetor do céu me deu,
também vim aqui dançar
pra me lembrar do meu tempo.
Louvado pra sempre o vento
que nas suas asas me trouxe.
Louvada seja esta gente
que de vez em quando esquece
as tristezas desta vida,
cai na farra, que nem eu
na minha primeira fase.

Coro:

Este falar contamina
até quem vem do outro mundo,
ninguém lhe pode escapar.

O poeta:

Caia tudo ajoelhado
pra louvar o bruto poeta,
nosso amigo, nosso irmão.
Quero às vezes imitar
outro poeta neste mundo,
escolho então São Francisco:
mas não consigo imitar,
nem de longe, tal poeta.
Meu consolo é que não imito,
afinal, poeta algum.
De qualquer forma pareço
com São Francisco, senhores:
não há dúvida que sou,
ai, São Francisco às avessas.
Louvemos o bruto poeta,
nosso amigo, nosso irmão.

Coro:

Louvemos o bruto poeta,
nosso amigo, nosso irmão.

A rima:

Eu sou órfã, ninguém mais
me dá atenção no mundo.
O meu dó é bem profundo.
Deixem-me entrar...não escutais?

O poeta:

Pode entrar, mas se comporte:
não insista nas melodias.

A mulher da vida:

Se a turma aí tem escrúpulos,
não faço questão de entrar;
eu sou reserva do rancho.

O poeta:

Pode entrar, que nesta casa
todo o mundo lhe quer bem.

O anjo da guarda;

Mas que festa extraordinária,
nem lá no céu tem assim.

O poeta:

No tempo que eu precisava
dum anjo pra me guardar,
você estava tentando
as garotas mais sublimes
que nasceram da mulher.
Agora que me tornei
um sujeito tão importante,
um poeta-matriculado
com poder discricionário,
é que você me aparece.
És o tipo do adesista.
Em todo o caso, consinto
tome parte na festança,
mas dobre as asas direito,
se comporte muito bem.

O anjo da guarda:

Que sujeito pretensioso,
não sou seu anjo da guarda,
você nunca teve tal.
Sou o anjo de São Francisco,
trago aqui um radiograma
pra ele voltar pro céu.

São Francisco:

Meus amigos até a volta,
esmola pra uma igreja
que estou construindo no céu.

O poeta:

Meu santo, sentimos muito,
nossa pobreza é bem grande,
nem mesmo o senhor é assim.
Temos crise do café.

Coro:

Temos crise do café.

O poeta:

(Tantas pessoas declaram
que vão embora da festa,
que esta festa não está boa...
Acabam todos ficando,
com exceção do deputado.
Aliás, o prazer é meu.)

O deputado:

Senhores, o povo evém,
ganhou a revolução.
Saudemos o arrebol
dos novos tempos pro reino.
Chega aí o ditador
com seu luzido cortejo,
precedido de clarins.

Coro:

Sujeito pra falar bem!
Esta turma é que nos serve,
o resto só tem garganta.

Conosco sim bandolim,
Conosco sim bandolim,
Conosco sim bandolim.

Ditador, Mascates, Bacharéis,
Soldados, Povo:

Tomemos conta depressa
deste reino universal
antes que alguém mais esperto
passe na frente da gente.
Tomemos conta depressa
deste reino universal.
Eletrifiquemos o reino;
distribuiremos chuchus
aos pobres e torcedores,
bananas aos discordantes.

O deputado:

Esta casa está se enchendo
de gente a mais não poder.
Que calor, que confusão.
Não há dúvida, não sobra
uma casquinha pro poeta.

Coro:

Não tem lugar pro poeta!
Não tem lugar pro poeta!

O poeta:

Fiquem quietos, vou sair.
Estão todos na sua casa!
Me acostumei há bem tempo
a ceder o melhor quarto
pro relequim repousar.
Só me admiro do coro
a quem ensinei o abecê!...

Eu que voluntariamente
até adotei agora
o seu modo de falar,
não estabeleci distinção
pra maior facilidade
desta festa universal!
...Mas que sujeitos ingratos!
Tirei-os desta cachola,
é natural que se zanguem,
acabo me conformando.
Vou-me embora pra folhinha.
Recorrerei ao Senhor,
meu Supremo Tribunal.
Mas antes de dar o fora
faço questão de avisar:
este assovio que agora
vocês usaram para mim,
eu vou usá-lo também.
Vocês me apupam, maltratam,
mas acabam me elevando
um busto na praça pública,
inda precisarão de mim.
Pois bem, apurem os ouvidos:
desde já estou vaiando
meu busto que se erguerá
na posteridade remota.

O doutor:

Este poeta adstringente
continua, meus senhores,
a não me cheirar muito bem.
Incline a cabeça, moço,
deixe-me ver a esclerótica...
Éa mesmo um caso perdido.
O diagnóstico, pelo menos,
se salvou, é o principal.

Coro:

O meu poeta morreu!
Que será feito de mim?
Vamos buscar outro poeta
em qualquer lugar - aqui!

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

João Cabral de Melo Neto e o Capibaribe. A poesia do Rio em seu caminhar, da nascente à cidade do Recife.


O Rio


ou

Relação da viagem
que faz o Capibaribe
de sua nascente
à cidade do Recife

Da lagoa da Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
entre caraibeiras
de que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar).

Desde tudo que lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

Notícia do Alto Sertão

Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.

A estrada da ribeira

Como aceitara ir
no meu destino de mar,
preferi essa estrada,
para lá chegar,
que dizem da ribeira
e à costa vai dar,
que deste mar de cinza
vai a um mar de mar;
preferi essa estrada
de muito dobrar,
estrada bem segura
que não tem errar
pois é a que toda a gente
costuma tomar
(na gente que regressa
sente-se cheiro de mar).

De Apolinário a Poço Fundo

Para o mar vou descendo
por essa estrada da ribeira.
A terra vou deixando
de minha infância primeira.
Vou deixando uma terra
reduzida à sua areia,
terra onde as coisas vivem
a natureza da pedra.
À mão direita os ermos
do Brejo da Madre de Deus,
Taquaritinga à esquerda,
onde o ermo é sempre o mesmo,
Brejo ou Taquaritinga,
mão direita ou mão esquerda,
vou entre coisas poucas
e secas além de sua pedra.

Deixando vou as terras
de minha primeira infância.
Deixando para trás
os nomes que vão mudando.
Terras que eu abandono
porque é de rio estar passando.
Vou com passo de rio,
que é de barco navegando.
Deixando para trás
as fazendas que vão ficando.
Vendo-as enquanto vou,
parece que estão desfilando.
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.

Os rios

Os rios que eu encontro
vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.

De Poço Fundo a Couro d'Anta

A gente não é muita
que vive por esta ribeira.
Vê-se alguma caieira
tocando fogo ainda mais na terra;
vê-se alguma fazenda
com suas casas desertas:
vêm para a beira da água
como bichos com sede.
As vilas não são muitas
e quase todas estão decadentes.
Constam de poucas casas
e de uma pequena igreja,
como, no Itinerário,
já as descrevia Frei Caneca.
Nenhuma tem escola;
muito poucas possuem feira.

As vilas vão passando
com seus santos padroeiros.
Primeiro é Poço Fundo,
onde Santo Antonio tem capela.
Depois é Santa Cruz
onde o Senhor Bom Jessus se reza.
Toritama, antes Torres,
fez para a Conceição sua igreja.
A vila de Capado
chama-se pela sua nova capela.
Em Topada, a igreja
com um cemitério se completa.
No lugar Couro d'Anta,
a Conceição também se celebra.
Sempre um santo preside
à decadência de cada uma delas.

A estrada da Paraíba

Depois de Santa Cruz,
que agora é Capibaribe,
encontro uma outra estrada
que desce da Paraíba.
Saltando o Cariri
e a serra de Taquaritinga,
na estrada da ribeira
ela deságua como num rio.
Juntos, na da ribeira,
continuamos, a estrada e o rio,
agora com mais gente:
a que por aquela estrada descia.
Lado a lado com gente
viajamos em companhia.
Todos rumo do mar
e do Recife esse navio.

Na estrada da ribeira
até o mar ancho vou.
Lado a lado com gente,
no meu andar sem rumor.
Não é estrada curta,
mas é a estrada melhor,
porque na companhia
de gente é que sempre vou.
Sou viajante calado,
para ouvir histórias bom,
a quem podeis falar
sem que eu tente me interpor;
junto de quem podeis
pensar alto, falar só.
Sempre em qualquer viagem
o rio é o companheiro melhor.

Do riacho das Éguas ao ribeiro do Mel

Caruaru e Vertentes
na outra manhã abandonei.
Agora é Surubim,
que fica do lado esquerdo.
A seguir João Alfredo,
que também passa longe e não vejo.
Enquanto na direita
tudo são terras de Limoeiro.
Meu caminho divide,
de nome, as terras que desço.
Entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
A mesma dor calada,
o mesmo soluço seco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.

Coronéis padroeiros
vão desfilando com cada vila.
Passam Cheos, Malhadinha,
muito pobres e sem vida.
Depois é Salgadinho
com pobres águas curativas.
Depois é São Vicente,
muito morta e muito antiga.
Depois, Pedra Tapada,
com poucos votos e pouca vida.
Depois de Pirauíra,
é um só arruado seguido,
partido em muitos nomes,
mas todo ele pobre e sem vida
(que só há esta resposta
à ladainha dos nomes dessas vilas).

Terras de Limoeiro

Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra,
para amassar com o sangue
os ossos duros desta terra.
E, se aqui há mais homens,
esses homens melhor conhecem
como obrigar o chão
com plantas que comem pedra.
Há aqui homens mais homens
que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra.

Dias depois, Limoeiro,
cortada a faca na ribanceira.
É a cidade melhor,
tem cada semana duas feiras.
Tem a rua maior,
tem também aquela cadeia
que Sebastião Galvão
chamou de segura e muito bela.
Tem melhores fazendas,
tem inúmeras bolandeiras
onde trabalha a gente
para quem se fez aquela cadeia.
Tema igreja maior,
que também é a mais feia,
e a serra do Urubu
onde desses símbolos negros.

Porém bastante sangue
nunca existe guardado em veias
para amassar a terra
que seca até sua funda pedra.
Nunca bastantes rios
matarão tamanha sede,
ainda escancarada,
ainda sem fundo e de areia.
Pois, aqui, em Limoeiro,
com seu trem, sua ponte de ferro,
com seus algodoais,
com suas carrapateiras,
persiste a mesma sede,
ainda sem fundo, de palha ou areia,
bebendo tantos riachos
extraviados pelas capoeiras.


De Limoeiro a Ilhetas

Deixando vou agora
esta cidade de Limoeiro.
Passa Ribeiro Fundo
onde só vivem ferreiros,
gente dura que faz
essas mãos mais duras de ferro
com que se obriga a terra
a entregar seu fruto secreto.
Passa depois Boi-Seco,
Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas,
pequenos arruados
plantados em terra alheia,
onde vivem as mãos
que calçando as outras, de ferro,
vão arrancar da terra
os alheios frutos do alheio.

O trem de ferro

Agora vou deixando
o município de Limoeiro.
Lá dentro da cidade
havia encontrado o trem de ferro.
Faz a viagem do mar,
mas não será meu companheiro,
apesar dos caminhos
que quase sempre vão paralelos.
Sobre seu leito liso,
com seu fôlego de ferro,
lá no mar do Arrecife
ele chegará muito primeiro.
Sou um rio de várzea,
não posso ir tão ligeiro.
Mesmo que o mar os chame,
os rios, como os bois, são ronceiros.

Outra vez ouço o trem
ao me aproximar de Carpina.
Vai passar na cidade,
vai pela chã, lá por cima.
Detém-se raramente,
pois que sempre está fugindo,
esquivando apressado
as coisas de seu caminho.
Diversa da dos trens
é a viagem que fazem os rios:
convivem com as coisas
entre as quais vão fluindo;
demoram nos remansos
para descansar e dormir;
convivem com a gente
sem se apressar em fugir.

De Ilhetas ao Petribu

Parece que ouço agora
que vou deixando o Agreste:
"Rio Capibaribe,
que mau caminho escolheste.
Vens de terras de sola,
curtidas de tanta sede,
vais para terra pior,
que apodrece sob o verde.
Se aqui tudo secou
até seu osso de pedra,
se a terra é dura, o homem
tem pedra para defender-se.
Na Mata, a febre, a fome
até os ossos amolecem."
Penso: o rumo do mar
sempre é o melhor para quem desce.

Encontro com o canavial

No outro dia deixava
o Agreste, na Chã do Carpina.
Entrava por Paudalho,
terra já de cana e de usinas.
Via plantas de cana
com sua cabeleira, ou crina,
muita folha de cana
com sua lâmina fina,
muita soca de cana
com sua aparência franzina,
e canas com pendões
que são as canas maninhas.
Como terras de cana,
são muito mais brandas e femininas.
Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.

Outros rios

Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.
É o que contam os rios
que vou encontrando por aqui.
Rios bem diferentes
daqueles que já viajam comigo.
A estes também abraço
com abraço líquido e amigo.
Os primeiros porém
nenhuma palavra respondiam.
Debaixo do silêncio
eu não sei o que traziam.
Nenhum deles também
antecipar sequer parecia
o ancho mar do Recife
que os estava aguardando um dia.

Primeiro é o Petribu,
que trabalha para uma usina.
Trabalham para engenhos
o Apuá e o Cursaí.
O Cumbe e o Cajueiro
cresceram, como o Camilo,
entre cassacos do eito,
no mesmo duro serviço.
Depois é o Muçurepe,
que trabalha para outra usina.
Depois vem o Goitá,
dos lados da Chã da Alegria.
Então, o Tapacurá,
dos lados da Luz, freguesia
da gente do escrivão
que foi escrevendo o que eu dizia.

Conversa de rios

Só após algum caminho
é que alguns contam seu segredo.
Contam por que possuem
aquela pele tão espessa;
por que todos caminham
com aquele ar descalço de negros;
por que descem tão tristes
arrastando lama e silêncio.
A história é uma só
que os rios sabem dizer:
a história dos engenhos
com seus fogos a morrer.
Nelas existe sempre
uma usina e um banguê:
a usina com sua boca,
com suas várzeas o banguê.

A usina possui sempre
uma moenda de nome inglês;
o engenho, só a terra
conhecida como massapê.
E o que não pode entrar
nas moendas de nome inglês
a usina vai moendo
com muitos outros meios de moer.
A usina tem urtigas,
a usina tem morcegos,
que ela pode soltar
como amestrados exércitos
para ajudar o tempo
que vai roendo os engenhos,
como toda já roeu
a casa-grande do Poço do Aleixo.

Do Petribu ao Tapacurá

As coisas não são muitas
que vou encontrando neste caminho.
Tudo planta de cana
nos dois lados do caminho
e mais plantas de cana
nos dois lados dos caminhos
por onde os rios descem
que vou encontrando neste caminho;
e outras plantas de cana
há nas ribanceiras dos outros rios
que estes encontraram
antes de se encontrarem comigo.
Tudo planta de cana
e assim até o infinito;
tudo planta de cana
para uma só boca de usina.

As casas não são muitas
que por aqui tenho encontrado
(os povoados são raros
que a cana não tenha expulsado).
Poucas tem Rosarinho
e Desterro, que está pegado.
Paudalho, que é maior,
está menos ameaçada,
Paudalho essa cidade
construída dentro de um valado,
com sua ponte de ferro
que eu atravesso de um salto.
Santa Rita é depois,
onde os trens fazem parada:
só com medo dos trens
é que o canavial não a assalta.

Descoberta da Usina

Até este dia, usinas
eu não havia encontrado.
Petribu, Muçurepe,
para trás tinham ficado,
porém o meu caminho
passa por ali muito apressado.
De usina eu conhecia
o que os rios tinham contado.
Assim, quando da Usina
eu me estava aproximando,
tomei caminho outro
do que vi o trem tomar:
tomei o da direita,
que a cambiteira vi tomar,
pois eu queria a Usina
mais de perto examinar.

Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado.

Muitos engenhos mortos
haviam passado no meu caminho.
De porteira fechada,
quase todos foram engolidos.
Muitos com suas serras,
todos eles com seus rios,
rios de nome igual
como crias de casa, ou filhos.

Antes foram engenhos,
poucos agora são usinas.
Antes foram engenhos
agora são imensos partidos.
Antes foram engenhos,
com suas caldeiras vivas;
agora são informes
partidos que nada identifica.

Encontro com a Usina

Mas na Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.

Na vila da Usina
é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.

Por esta grande usina
olhando com cuidado eu vou,
que esta foi a usina
que toda esta Mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória, de dor maior,
do brando sobre o duro,
do grão amassando a mó;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a de pedra dura
furada pelo suor.

Para trás vai ficando
a triste povoação daquela usina
onde vivem os dentes
com que a fábrica mastiga.
Dentes frágeis, de carne,
que não duram mais de um dia;
dentes são que se comem
ao mastigar para a Companhia;
de gente que, cada ano,
o tempo da safra é que vive,
que na braça da vida,
tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço
enquanto por ali discorria;
vi homens de bagaço
que morte úmida embebia.

E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora na vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente muita vida;
vi a morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
com um fogo que por dentro é frio.
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece
ali natural, pelo visto.

Da Usina a São Lourenço da Mata

Agora vou deixando
a povoação daquela usina.
Outra vez vou baixando
entre infindáveis partidos;
entre os mares de verde
que sabe pintar Cícero Dias,
pensando noutro engenho
devorado por outra usina;
entre colinas mansas
de uma terra sempre em cio,
que o vento, com carinho,
penteia como se sua filha.
Que nem ondas de mar,
multiplicadas, ela se estendiam;
como ondas do mar de mar
que vou conhecer um dia.

À tarde deixo os mares
daquela usina de usinas;
vou entrando nos mares
de algumas outras usinas.
Sei que antes esses mares
inúmeros se dividiam
até que o mar mais forte
os mais fracos engolia
(hoje só grandes mares
a Mata inteira dominam).
Mas o mar obedece
a um destino sem divisa,
e o grande mar de cana,
como o verdadeiro, algum dia,
será uma só água
em toda esta comum cercania.

De São Lourenço à Ponte de Prata


Vou pensando no mar
que daqui ainda estou vendo;
em toda aquela gente
numa terra tão viva morrendo.
Através deste mar
vou chegando a São Lourenço,
que de longe é como ilha
no horizonte de cana aparecendo;
através deste mar,
como um barco na corrente,
mesmo sendo eu o rio,
que vou navegando parece.
Navegando este mar,
até o Recife irei,
que as ondas deste mar
somente lá se detêm.

Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em quem só o suor não secou;
e entra essa gente triste,
a mais triste que já baixou,
a gente que a usina.
depois de mastigar, largou.

Entra a gente que a usina
depois de mastigar largou;
entra aquele usineiro
que outro maior devorou;
entra esse banguezeiro
reduzido a fornecedor;
entra detrás um destes,
que agora é um simples morador;
detrás, o morador
que nova safra já não fundou;
entra, como cassaco,
este antigo morador;
entra enfim o cassaco,
que por todas aquelas bocas passou.
Detrás de cada boca,
ele vê que há uma boca maior.

Da Ponte de Prata a Caxangá


A gente das usinas
foi mais um afluente a engrossar
aquele rio de gente
que vem de além do Jacarará.
Pelo mesmo caminho
que venho seguindo desde lá,
vamos juntos, dois rios,
cada um para seu mar.
O trem outro caminho
tomou na Ponte de Prata;
foi por Tijipió
e pelos mangues de Afogados.
Sempre com retirantes,
vou pela Várzea e por Caxangá,
onde as últimas ondas
de cana se vêm espraiar.

Entra-se no Recife
pelo engenho São Francisco.
Já em terras da Várzea,
está São João, uma antiga usina.
Depois se atinge a Várzea,
a vila propriamente dita,
com suas árvores velhas
que dão uma sombra também antiga.
A seguir, Caxangá,
também velha e recolhida,
onde começa estrada
dita Nova, ou de Iputinga,
que quase reta à cidade,
que é o mar a que se destina,
leva a gente que veio
baixando em minha companhia.

Vou deixando à direita
aquela planície aterrada
que desde os pés de Olinda
até os montes Guararapes,
e que de Caxangá
até o mar oceano,
para formar o Recife
os rios vão sempre atulhando.
Com água densa de terra
onde muitas usinas urinaram,
água densa de terra
e de muitas ilhas engravidada.
Com substância de vida
é que os rios a vão aterrando,
com esses lixos de vida
que os rios viemos carreando.

De Caxangá a Apipucos

Até aqui as últimas
ondas de cana não chegam.
Agora o vento sopra
em folhas de um outro verde.
Folhas muito mais finas
as brisas daqui penteiam.
São cabelos de moças
que vêm cortar capinheiros;
são cabelos das moças
ou dos bacharéis em direito
que devem habitar
naqueles sobrados tão pitorescos
(pois os cabelos da gente
que apodrece na lama negra
geram folhas de mangue,
que são folhas duras e grosseiras).

De Apipucos à Madalena

Agora vou entrando
no Recife pitoresco,
sentimental, histórico,
de Apipucos e do Monteiro;
do Poço da Panela,
da Casa Forte e do Caldeireiro,
onde há poças de tempo
estagnadas sob as mangueiras;
de Sant'Ana de Fora
e de Sant'Ana de Dentro,
das muitas olarias,
rasas, se agachando do vento.
E mais sentimental,
histórico e pitoresco
vai ficando o caminho
a caminho da Madalena.

Um velho cais roído
e uma fila de oitizeiros
há na curva mais lenta
do caminho pela Jaqueira,
onde (não mais está)
um menino bastante guenzo
de tarde olhava o rio
como se filme de cinema;
via-me, rio, passar,
com meu variado cortejo
de coisas vivas, mortas,
coisas de lixo e de despejo;
viu o mesmo boi morto
que Manuel viu numa cheia,
viu ilhas navegando,
arrancadas das ribanceiras.

Vi muitos arrabaldes
ao atravessar o Recife:
alguns na beira da água,
outros em deitadas colinas;
muitos no alto de cais
com casarões de escadas para o rio;
todos sempre ostentando
sua ulcerada alvenaria;
todos porém no alto
de sua gasta aristocracia;
todos bem orgulhosos,
não digo de sua poesia,
sim, da história doméstica
que estuda para descobrir, nestes dias,
como se palitavam
os dentes nesta freguesia.

As primeiras ilhas

Rasas na altura da água
começam a chegar as ilhas.
Muitas a maré cobre
e horas mais tarde ressuscita
(sempre depois que afloram
outra vez à luz do dia
voltam com chão mais duro
do que o que dantes havia).
Rasas na altura da água
vê-se brotar outras ilhas:
ilhas ainda sem nome,
ilhas ainda não de todo paridas.
Ilha Joana Bezerra,
do Leite, do Retiro, do Maruim:
o touro da maré
a estas já não precisa cobrir.

Casas de lama negra
há plantadas por essas ilhas
(na enchente da maré
elas navegam como ilhas);
casas de lama negra
daquela cidade anfíbia
que existe por debaixo
do Recife contado em Guias.
Nela deságua a gente
(como no mar deságuam rios)
que de longe desceu
em minha companhia;
nela deságua a gente
de existência imprecisa,
no seu chão de lama
entre água e terra indecisa.

Dos Coelhos ao cais de Santa Rita

Mas deixo essa cidade:
dela mais tarde contarei.
Vou pelo caminho
que pelo hospital dos Coelhos,
por cais de que as vazantes
exibem gengivas negras,
leva àquele Recife
de fundação holandesa.

Nele passam as pontes
de robustez portuguesa,
anúncios luminosos
com muitas palavras inglesas;
passa ainda a cadeia,
passa o Palácio do Governo,
ambos robustos, sólidos,
plantados no chão mais seco.

Rio lento de várzea,
vou agora ainda mais lento,
que agora minhas águas
de tanta lama me pesam.
Vou agora tão lento,
porque é pesado o que carrego:
vou carregado de ilhas
recolhidas enquanto desço;
de ilhas de terra preta,
imagem do homem aqui de perto
e do homem que encontrei
no meu comprido trajeto
(também a dor desse homem
me impõe essa passada de doença,
arrastada, de lama,
e assim cuidadosa e atenta).

Vão desfilando cais
com seus sobrados ossudos.
Passam muitos sobrados
com seus telhados agudos.
Passam, muito mais baixos,
os armazéns de açúcar do Brum.
Passam muitas barcaças
para Itapissuma, Igaraçu.
No cais de Santa Rita,
enquanto vou norte-sul,
surge o mar, afinal,
como enorme montanha azul.
No cais, Joaquim Cardoso
morou e aprendeu a luz
das costas do Nordeste,
mineral de tanto azul.

As duas cidades

Mas antes de ir ao mar,
onde minha fala se perde,
vou contar da cidade
habitada por aquela gente
que veio meu caminho
e de quem fui o confidente.
Lá pelo Beberibe
aquela cidade também se estende,
pois sempre junto aos rios
prefere se fixar aquela gente;
sempre perto dos rios,
companheiros de antigamente,
com se não pudessem
por um minuto somente
dispensar a presença
de seus conhecidos de sempre.

Conheço todos eles,
do Agreste e da Caatinga;
gente também da Mata,
vomitada pelas usinas;
gente também daqui
que trabalha nestas usinas,
que aqui não moem cana,
moem coisas muito mais finas.
Muitas eu vi passar:
fábricas, como aqui se apelidam;
têm bueiro como usina,
são iguais também por famintas.
Só que as enormes bocas
que existem aqui nestas usinas
encontram muitas pedras
dentro de sua farinha.

A gente da cidade
que há no avesso do Recife
tem em mim um amigo,
seu companheiro mais íntimo.
Vivo com esta gente,
entro-lhes pela cozinha;
como bicho de casa
penetro nas camarinhas.
As vilas que passei
sempre abracei como amigo;
desta vila de lama
é que sou mais do que amigo:
sou o amante, que abraça
com corpo mais confundido;
sou o amante, com ela
leito de lama divido.

Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva.

A não ser esta cidade
que vim encontrar sob o Recife:
sua metade podre
que com lama podre se edifica.
É cidade sem nome
sob a capital tão conhecida.
Se é também capital,
será uma capital mendiga.
E cidade sem ruas
e sem casas que se diga.
De outra qualquer cidade
possui apenas polícia.
Desta capital podre
só as estatísticas dão notícia,
ao medir sua morte,
pois não há o que medir em sua vida.

Conheço toda a gente
que deságua nestes alagados.
Não estão no nível de cais,
vivem no nível da lama e do pântano.
Gente de olho perdido
olhando-me sempre passar
como se eu fosse trem
ou carro de viajar.
É gente que assim me olha
desde o sertão do Jacarará;
gente que sempre me olha
como se, de tanto me olhar,
eu pudesse o milagre
de, num dia ainda por chegar,
levar todos comigo,
retirantes para o mar.

Os dois mares

A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a gente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar.
Por entre esta cidade
ainda mais lenta é minha pisada;
retardo enquanto posso
os últimos dias da jornada.
Não há talhas que ver,
muito menos o que tombar:
há apenas esta gente
e minha simpatia calada.

Oferenda

Já deixando o Recife
entro pelos caminhos comuns do mar:
entre barcos de longe,
sábios de muito viajar;
junto desta barcaça
que vai no rumo de Itamaracá;
lado a lado com rios
que chegam do Pina com o Jiquiá.

Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

domingo, fevereiro 22, 2009

Carlos Drummond de Andrade e a nostalgia dos carnavais antigos. Para cinquentões e não cinquentões.



Para cinquentões


Carnaval, carne dada ao verme
(diz a falsa etmologia),
como pode o cronista inerme
cronicar em plena folia?

Como esquivar-se a teu império
que é serrano em Vila ou Mangueira,
se em mim ri aquilo que é sério,
e séria, mesmo, é a brincadeira?

Carnaval, já não sou tão moço
para esmilinguir-me no frevo
e sair de guizo ao pescoço
(riso, quatripétalo trevo),

Também inda não sou tão velho
que não ouça o ronco da cuíca.
E da razão o bom conselho
(má rima) não me mortifica.

Entre duas águas, meu caro,
meio-lá-meio-cá me sinto
como um animal semi-raro
divagando no labirinto.

Carnaval, magia do samba!
Fígado, fiscal do consumo...
Para dançar na corda bamba
tanto faz, serpentina, o rumo.

Não fugirei para a montanha,
nem pescarei na Marambaia,
pois ante confusão tamanha,
quedemos (Posto 6) na praia,

perto-longe da farra, ouvindo
e vendo, imaginando, enquanto
um carnaval muito mais lindo
dentro em nós eleva seu canto;

carnaval de delícias longas
e cabriolas arlequinais,
feito de caras songamongas
se esbaldando no nunca-mais;

carnaval antigo e futuro,
baile de outro Municipal
ou Praça 11 acesa no escuro
da saudade do carnaval.

E é o melhor de tudo, afinal.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Thiago de Mello não foi profetizado, aconteceu. E vivendo foi que aprendeu a que veio ao mundo: amar.


Não fui profetizado


Não fui profetizado. Aconteci.
Como é difícil cumprir
missão que não recebi.
Vivendo foi que aprendi
a que vim ao mundo: amar.

Quando liberto do tempo
me pediram testemunho,
as minhas mãos mostrarei:
não terei marca de cravos.
Verão, indeléveis, lanhos
da rosa que mais amei.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Beijei teu lábio de veneno e insídias e o beijo trouxe-me desespero e amarguras. E nunca mais hei de beijar teu lábio, diz Augusto dos Anjos.


Beijo maldito


Da Fantasia nos itinerários
Beijei teu lábio de veneno e insídias...
- Rosa de outono aberta em dois nectários,
- Mirra enganosa dos turibulários,
- Vaso de Sévres recendendo a orquídeas.

Beijei teu lábio de veneno e agruras
E o beijo trouxe-me o fatal ressábio
Dos desesperos e das amarguras...
E vou rolando para as sepulturas
E nunca mais hei de beijar teu lábio!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Guilherme de Almeida confessa que é fetichista e adora tudo que é do seu amor. Mas chega mesmo a ter vontade de que ela não volte nunca mais.


Fetichismo


Sou fetichista, adoro tudo
que é teu: a página marcada
de um livro; o sono de veludo
da tua lânguida almofada;
um cravo esplêndido e vermelho
que morre; a vida singular
que tu puseste em cada espelho,
ao sortilégio de um olhar;

aquele acorde, aquela escala
que do teu piano andou suspensa
na ressonância desta sala;
a tua lâmpada; a presença
imperativa de um perfume:
o teu chapéu... - tudo afinal
que vem de ti, que te resume,
tem seu prestígio emocional!

E este contato voluptuoso
com tanta coisa evocativa
é tão sensual, tão delicioso
para minha alma sensitiva,
que espero, cheio de ansiedade,
cada momento em que te vais,
e chego mesmo a ter vontade
de que não voltes nunca mais!

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quarta-feira, fevereiro 18, 2009

Teresa, o porquinho-da-índia e Manuel Bandeira. Pronto, o poeta escreveu um madrigal engraçadinho.


Madrigal tão engraçadinho


Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha
vida, inclusive o porquinho-da-índia que
me deram quando eu tinha seis anos.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Se perguntas, Carlos Nejar diz que não mudou de mudar. Ele é outro, mudou, mudou de não mudar.


Se perguntas


I

Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.

Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.

II

O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?

Quem mudará em mim,
se não sei mudar?

III

Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.

Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.

Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.

Carlos Nejar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

Nos versos de Mauro Mota, vem vindo José Maria. Ele vem de São Bento do Una, vestido de roupa cáqui e de botinas reiúnas.


A construção


Vem vindo José Maria,
vem de São Bento do Una,
vestido de roupa cáqui
e de botinas reiúnas.

No conselho de família,
só encontra a hierarquia
do avô cabo de polícia.

O pai na barbearia
do povoado trabalha,
mal completa o pagamento
da prestação da navalha.

Vem vindo José Maria,
o amarelinho de São Bento
do Una, sem genealogia.
Vem montado no jumento.
Saiu da escola. (Não tinha
nem livros nem fardamento.
Aprendeu a ler sozinho.)

Oh, que infância sem infância,
essa do José Maria!

Entrava na terra o casco
do seu cavalo de pau,
que o cabo da enxada era
a escoiceante montaria.
Tirava leite das vagas,
mas o leite não bebia.
Os animais da fazenda,
com que doçura os tangia!
Carregava areia e lenha
com o gosto do engenheiro
que uma obra construía.

Foi bicheiro e negociante
de passarinhos na feira.
Vendeu frutas e roletas
nas festas da Padroeira.
Lavou frascos na botica,
lavou os pratos do hotel,
fez os serviços miúdos
da casa do coronel.

- Pega o carneirinho mocho
para Jorginho montar.
- Vê se a novilha cinzenta
já voltou para o curral.
- Leva o peru para a ceia
do Doutor pelo Natal.

Ven vindo José Maria
vem de São Bento do Una,
vestido de roupa cáqui
e de botinas reiúnas.
Puxa ainda o seu jumento,
remexe nos caçuás.
Carrega barro e madeira
para a construção que faz
com alicerces na poesia
dos desesperos rurais.

Mauro Mota
(1911-1984)

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segunda-feira, fevereiro 16, 2009

Na canção de Mario Quintana, a menina está dormindo, coração bulindo. Pé ante pé vem vindo o Cavaleiro do Luar, no seu peito bate um coração perfeito.


Canção da noite alta


Menina está dormindo.
Coração bulindo.
Mãe, por que não fechaste a janela?

É tarde, agora:
Pé ante pé
Vem vindo
O Cavaleiro do Luar.
Na sua fronte de prata
A lua se retrata.
No seu peito
Bate um coração perfeito.
No seu coração
Dorme um leão,
Dorme um leão com uma rosa na boca.
E o príncipe ergue o punhal no ar:
...um grito
aflito...
Louca!

Mario Quintana
(1906-1994)

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No coração, talvez, uma ferida rasgada de navalha. Por onde vai a vida tão mal gasta, diz em seus versos José Saramago.


No coração talvez


No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.

José Saramago

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

A lâmpada acesa enxerga a noite toda apagada, na insônia de Paulo Mendes Campos. O nome dela tem só seis letras, ele lê três livros de uma só vez.


Insônia


A lâmpada acesa enxerga
a noite toda apagada.

A chuva conta nos canos
a história das telhas velhas.

O soalho e os móveis conversam
nos cantos, aos estalidos.

Meu pulso soma dez tocos
de cigarro no cinzeiro.

Teu nome tem só seis letras.
Li três livros de uma vez.

Paulo Mendes Campos
(192-1991)

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sábado, fevereiro 14, 2009

Drummond diz que a poesia é incomunicável. E aconselha: fique torto em seu canto, não ame, não diga nada, não conte e não peça perdão.



Segredo


A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Mário de Andrade não perdoa o brigadeiro Jordão. Ele tinha casa, pão, roupa lavada e engomada, mundos de terras e comprava as pequenas da pensão.


Moda do brigadeiro


O brigadeiro Jordão
Possuiu estes latifúndios
Dos quais o metro quadrado
Vale hoje uns nove milréis
Puxa! que homem felizardo
O brigadeiro Jordão!...
Tinha casa tinha pão,
Roupa lavada e engomada
E terras...Qual terras! mundos
De pastos e pinheirais!
Que troças em perspectiva...
Nem pensava em serrarias
Nem fundava sanatórios
Nem gado apascentaria!
Vendia tudo por oito
E com a bolada no bolso
Ia no largo do Arouche
Comprar aquelas pequenas
Que moram numa pensão!

Mas não são minhas as terras
Do brigadeiro Jordão...

Mário de Andrade
(1893-1945)

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Neruda diz que os críticos se lançaram para disputar a sua poesia às simples gentes que a amavam. Mas ele vai viver para sempre com a gente simples.


Oda a la Crítica


Yo escribí cinco versos: uno verde,
otro era un pan redondo,
el tercero una casa levantándose,
el cuarto era un anillo,
el quinto verso era
corto como un relámpago
y al escribirlo
me dejó en la razón su quemadura.

Y bien, los hombres, las mujeres,
vinieron y tomaron
la sencilla materia,
brizna, viento, fulgor, barro, madera
y con tan poca cosa
construyeron
paredes, pisos, sueños,
En una línea de mi poesía
secaron ropa al viento.
Comieron mis palabras,
las guardaron
junto a la cabecera,
vivieron con un verso,
con la luz que salió de mi costado.
Entonces, llegó un crítico mudo
y otro lleno de lenguas,
y otros, otros llegaron
ciegos o llenos de ojos,
elegantes algunos
como claveles con zapatos rojos,
otros estrictamente
vestidos de cadáveres,
algunos partidarios
del rey y su elevada monarquía,
otros se habían
enredado en la frente
de Marx y pataleaban en su barba,
otros eran ingleses,
y entre todos se lanzaron
con dientes y cuchillos,
con diccionarios y
otras armas negras,
con citas respetables,
se lanzaron
a distupar mi pobre poesía
a las sencillas gentes
que la amaban:
y la hicieron embudos,
la enrollaron,
la sujetaron con cien alfileres,
la cubrieron con polvo de esqueleto,
la llenaron de tinta,
la escupieron con suave
benignidad de gatos,
la destinaron a envolver relojes,
la protegieron y la condenaron,
le arrimaron petróleo,
le dedicaron húmedos tratados,
la cocieron con leche,
le agregaron pequeñas piedrecitas,
fueron borrándole vocales,
fueron matándole
sílabas y suspiros,
la arrugaron e hicieron
un pequeño paquete
que destinaron cuidadosamente
a sus desvanes, a sus cementerios,
luego se retiraron uno a uno
enfurecidos hasta la locura.
Porque no fui bastante
popular para ellos
o impregnados de
dulce menosprecio
por mi ordinaria falta de tinieblas,
se retiraron todos y entonces,
otra vez, junto a mi poesía
volvieron a vivir
mujeres y hombres,
de hicieron fuego,
construyeron casas,
comieron pan,
se repartieron la luz
y en el amor unieron relámpago y anillo.
Y ahora, perdonadme, señores,
que interrumpa este cuento
que les estoy contando
y me vaya a vivir
para siempre
con la gente sencilla.

Pablo Neruda
(1904-1973)

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sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Em um dos seus primeiros poemas publicados, Ferreira Gullar já diz porque é um grande poeta. Ele sabe que a beleza é mais frágil do que a vida.


A fera diurna


Agora que as pupilas já tocadas
de pecado - que por quererem dela
a exata imagem, antes que a bela,
a terrível, que nisto o puro existe,
viram na fonte as águas desvendadas
não se impelirem mais que a um sono triste -
o que fora magia são corolas,
da presença da morte alucinadas
- agora, fera, em que mais te consolas?
De que disfarce íntimo se vale
a pedra contra ti? (nada resiste
à límpidez dos olhos sem amor).
Calaste o mundo e o mundo, sem que fale,
não te dará do tempo a flor da flor.

Caminhas entre o céu e o vale. E o vale
onde todo crescer obscuro e assomo
é cego caminhar às abstratas formas
da morte - ó formas exatas
e invioláveis! - fulgor que espera o pomo!
o vale é vale só e te dispensa.
Horizontal solidão, te desconhece
e anula. Estás só, homem sem gnomo!
que o resto é céu recurvo e indiferença.

As sucessivas túnicas do dia
despiu, como se em pranto se negasse,
e em derredor de si rompera espelhos
deslizantes de som e cor, oh melodia
caindo sobre as flores nos vermelhos
e trágicos jardins! Mas eis que a face
da que diurna quer ser sendo noturna,
pela pureza própria corrompida,
se ergue inodora e vã - já morta nasce:
a beleza é mais frágil do que a vida.

Esperamos a morte sem defesa.
Lúcida espera, enquanto na diuturna
cintilação, te esvais, cristal, estende-
se em silêncio e veludo, e se propaga
o musgo pelos muros da tristeza.
Curvam-se sobre nós astros e ramos
que esplendem. Soluçamos no que esplende:
o fruto, a rosa, a brisa que te apaga,
as árvores da música. Esperamos.

Talhado por mim mesmo no ante-sono
de mim, do barro erguera-me, escultura.
A luz de antes de ser dourava as formas
ignoradas de si, madurecia-as.
Até que enfim me soube ser o nono
Orfeu, boca madura, para as cousas
chamar pelo seu nome. Entanto, impura
boca, árvora lúcida, hoje não ousas
florir com tua voz as formas frias.
Adão, Adão, violaste a fonte pura.
Éden não houve, à margem do Pison
meditas. Estás só. Nada te esquece
que águas e nuvens passam. E a esse som,
teu coração - fruto último - emurchece.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Maria Bethânia, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção III".


Link para download do poema no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/5366405-498

III

A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas as minhas ardências
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
A uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla e argonauta
Por que recusas amor e permanência?

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

Por essas feiras do alfoz do Porto, uma voz levanta um pregão feroz de crime e fatalidade. E José Régio canta um fado que o bom povo quer ouvir.


Fado do grande e horrível crime


Por essas feiras do alfoz
Do Porto, leal cidade
Brutal e triste, uma voz
Levanta um pregão feroz
De crime e fatalidade.

Junta-se o povo de roda,
Crianças, velhos e moços
Que seduz a nova moda;
E os olhos da roda toda
São como bocas de poços...

E a nova moda é já velha
Recente, embora, a toada;
Revelha, velha, revelha,
Que a todas mais se assemelha,
De novo, não conta nada.

Vem dos inícios do mundo
(Por não sei que ódio divino)
De quando, a errar vagabundo,
Caim desceu bem ao fundo
Do seu maldito destino.

Só a maneira é que é vária
De um mesmo fado cumprir
A sinistra prole do pária.
E a assistência é extraordinária,
Que o bom povo quer ouvir!

Desfolha um bandolim gasto
Seu choro falso e palreiro
Frente a uma casa de pasto,
E um alto grito nefasto
Berra por todo o terreiro.

Canta uma mulher pejada
Senhora-do-Ó fadista,
Ou uma garota enfezada
Que tem olhos de enjeitada
Mas pretende ser corista...

Canta um velhote que tosse,
Babando as barbas de neve,
Ou um rapazinho precoce,
Com esse ar dos a quem roce
A asa da morte breve...

Canta um esbelto vadio
De torvo olhar cor de lodo,
Que esguicha um mau riso frio
À triste a quem mata o cio
E apanha o dinheiro todo...

Canta uma cega, rolando
Por todo o alvar poviléu
Seus olhos vítreos olhando...
Canta um fado miserando,
Não mais, porém, do que o seu!

Canta uma família inteira,
- Pai, mãe, avó, quatro filhos -
E ao calar-se a cantadeira,
É a pobre velha gaiteira
Que intercala os estribilhos...

Um seráfico gandula
que inda em falsete se exprime
E entre o público circula,
Pregoa uma canção chula
Mailo grande e horrível crime!

Surdo, o violão dlão toa
E o bandolim se lhe enlaça
Ou, carpindo a sós, ressoa
Uma guitarra, a mais boa
Companheira da desgraça.

E enquanto, em plena quermesse
De movimento, cor, sol,
A própria luz arrefece,
A voz de lástima e prece
Desfia o macabro rol:

Cose um marido a facadas
A mulher que estremecia
E as mãos inda ensanguentadas,
Vai, de entre seus camaradas,
Esganar quem o traía!

Jovem mãe abandonada
Com seu filhinho nos braços,
Uma malaventurada
Deixa-o numa água-furtada
Retalhadinho em pedaços!

No mais vil prédio dum beco
Dos que a decência condena,
Sem que de tal corra um eco,
Num charco de sangue seco
Seis dias jaz Madalena!

Um filho desnaturado
Talha a golpes de podoa
O ventre em que foi gerado...
E o corpo em sangue escoado
Levanta a mão que abençoa!

E, por bordéis e hospitais
Por mesas de anatomia,
Por salas de tribunais,
Por colunas de jornais,
Se estira o rol dia a dia...

Nos intervalos do fado,
Fala em prosa a cantadeira:
Maldiz o bruto malvado
Num discurso alto clamado
Com vozes de carpideira.

E, num tom quase faceto,
O loiro e reles menino
Mostra ao povinho um folheto
Que traz, moldurada a preto,
Uma foto do assassino...

Que verde curiosidade,
Que gosto de sangue e morte,
Que dó, que ferocidade,
Preme ali tal sociedade
Neste culo à negra sorte?

Sentimental, caricato
De rapapés ao terror,
À história do retrato
Segue-se o extenso relato
De outro crime inda melhor.

E enquanto um diz que são tretas,
E os demais olham inquietos,
E outro, que tem quaisquer letras,
Decifra essas cifras pretas
A um grupo de analfabetos,

Sob o imenso azul perfeito
Como abóboda de igreja,
As mães de filhos de peito
Tremem, sem achar direito
De acusar quem quer que seja...

José Régio
(1901-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_R%C3%A9gio

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Deixa que os não-poetas falem de tua beleza e que tuas formas eles a tomem por sua essência. Indefinidamente estarás comigo, diz João Cabral à amada.


Junto a ti esquecerei


I

Junto a ti esquecerei as inúmeras partidas
- as cordas e as amarras nunca se quebraram
e talvez por isso eu permanecerei imóvel sob a tua influência...
Tu pesarás para mim como produto de âncoras
como a pedra amarrada do pescoço do pecador.
Os portos passarão a ser beira de cais
as terras longínquas nada mais me dizem
- quebrei a bússola para evitar a tentação.
Tua presença é poderosa como urros na floresta.
Sinto que extingues em mim
a sombra dos navegadores.

II

A tua atitude te eleva para o alto.
Vejo que cortaste definitivamente todas as amarras.
Daqui eu advinho os olhos dos homens
perdidos no tempo que nada descobrirão de ti.
Deixa que os não-poetas falem de tua beleza,
esses nunca compreenderão o que há em ti de sombra,
de sementes germinando, de vozes de cavernas.
Nem ao menos que é o teu olhar que nos aproxima
que nos torna irmãos para o resto do tempo.
Eu te reconheceria entre todas, porque tua presença eu a pressinto.
Deixa que tuas formas eles a tomem pela essência.
Esses te perderão ainda mais
e nunca compreenderão tuas inúmeras sugestões
que tu mesma desconheces.

III

Esquecerei os teus convites de fuga.
As coisas presentes serão absolutamente insignificantes.
Sentir-me-ei em tua presença como o primeiro homem
que se ia apoderando de todas as formas desconhecidas.

IV

Esquecerei todos os convites de fuga.
Os portos serão para nós apenas
as âncoras e as amarras.
Nossos olhos não mais distinguirão
caravelas e transatlânticos sobre o mar.
Nossos ouvidos não mais perceberão
o barulho das ondas que são um chamamento constante.
Então leremos poetas bucólicos
debaixo de uma árvore que deverá ser frondosa.
Indefinidamente rodaremos em torno dela como num carrosel,
indefinidamente estarás comigo.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Flor Bela de Alma da Conceição Espanca sabe que o roxo de seus lábios é saudade. Saudade duns beijos que lhe deram noutra vida!


Desalento


Às vezes oiço rir, e 'ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa.
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n'alma o fogo que m'abrasa!

Tenho sede d'amar a humanidade...
Eu ando embriagada...entontecida...
O roxo de meus lábios é saudade
Duns beijos que me deram noutra vida!

Eu não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
De só saber chorar, de ser assim...

Gosto da noite, negra, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!

Florbela Espanca
(1894-1930)

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Em versos, Olavo Bilac diz que quando ama, ama e delira sem barulho. E quando sofre, cala-se e definha, na ventura infeliz do seu orgulho.


Penetrália


Falei tanto de amor!...de galanteio,
Vaidade e brinco, passatempo e graça,
Ou desejo fugaz, que brilha e passa
No relâmpago breve com que veio...

O verdadeiro amor, honra e desgraça,
Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o:
Nunca o entreguei ao público recreio,
Nunca o expus indiscreto ao sol da praça.

Não proclamei os nomes, que baixinho,
Rezava... E ainda hoje, tímido, mergulho
Em funda sombra o meu melhor carinho.

Quando amo, amo e deliro sem barulho:
E quando sofro, calo-me e definho
Na ventura infeliz do meu orgulho.

Olavo Bilac
(1865-1918)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Para Murilo Mendes, a edição que circula dele pelas ruas foi feita sem o seu consentimento. Existe a seu lado um duplo que possui um enorme poder.


Meu duplo


1

A edição que circula de mim pelas ruas
Foi feita sem o meu consentimento.
Existe a meu lado um duplo
Que possui um enorme poder:
Ele imprimiu esta edição da minha vida
Que todo mundo lê e comenta.

Quando eu morrer a água dos mares
Dissolverá a tinta negra do meu corpo,
Destruindo esta edição dos meus pensamentos, sonhos e amores
Feita à minha revelia.

2

O meu duplo sonha de dia e age durante a noite,
O meu duplo arrasta corrente nos pés.
Mancha todas as coisas inocentes que vê e toca.
Ele conspira contra mim,
Desmonta todos os meus atos um por um e sorri.
O meu duplo com uma única palavra
Reverte os objetos do mundo ao negativo do FIAT;
Destrói com um sopro
O trabalho que eu tenho de diminuir o pecado original.
Quando eu morrer o meu duplo morrerá - e eu nascerei.

3

Eu tenho pena de mim e do meu duplo
Que entrava meus passos para o bem,
Que sufoca dentro de mim a imagem divina.
Tenho pena do meu corpo cativo em terra ingrata,
Tenho pena dos meus pais
Que sacrificaram uma existência inteira
Pelo prazer duma noite.
Tenho pena do meu cérebro que comanda
E de minha mão que escreve poemas imperfeitos.
Tenho pena do meu coração que explodiu de tanto ter pena,
Tenho pena do meu sexo que não é independente,
Que é ligado ao meu coração e ao meu cérebro.
Eu tenho pena desta mulher tirânica
Que me ajuda a ampliar o meu duplo.
Tenho pena dos poetas futuros
Que se integrarão na comunidade dos homens
Mas que nos momentos de dúvida e terror
Só terão como resposta o silêncio divino.

4

Ó meu duplo, por que me separas da verdade?
Por que me impeles a descer até a profundeza
Onde cessaram as formas da vida para sempre?
Por que insinuas que o sorriso da criança já traz a corrupção,
Que toda esta ternura é inútil,
Que o homem usará sempre a espada contra seu irmão,
Que minha poesia aumenta o desconsolo em torno de mim?
Ó meu duplo, por que a todo instante me ocultas a Trindade?
Ó meu duplo, por que murmuras sutilmente ao meu ouvido
Que Deus não está em mim porque está fora do mal, do tédio e da dúvida?
Por que atiras um pano negro na estrela da manhã,
Por que opões diante do meu espírito
A temporária Berenice à mulher eterna
Ó meu duplo - meu irmão - Caim - eu admito te matar.


Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Guimarães Rosa ia triste, com a tristeza comum dos fatigados. E a sua tristeza pesava mais do que todos os pesos.


Desterro


Eu ia triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta...
Coagulada em preto,
a noite isolou as cousas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais-de-trem...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

Oswald de Andrade e os gramáticos. Sempre às turras, até na Poesia.


O gramático


Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Carlos Drummond de Andrade faz um convite triste. Tão triste que, ao final, ele quer vomitar e cair e dormir.



Convite triste


Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.

Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.

Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber, apenas.

Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um umbigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.

Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

São muitos os tempos vividos por Sophia de Mello Breyner, tempos para não serem esquecidos. Nunca, por ninguém!


Data


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo de ameaça

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Paulo Leminski diz em versos que pesa dentro dele o idioma que não fez. Aquela língua sem fim, feita de aís e aquis.


O par que me parece


Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de aís e de aquis.
Era uma língua bonita,
música mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia de mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto, ia pro lixo.
Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Alberto Caeiro diz que há poetas que são artistas e trabalham nos seus versos como um carpinteiro nas tábuas. E lastima, que triste não saber florir!


E há poetas


E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem contrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Pense nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormercermos
E não termos sonhos no nosso sono.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Eu te direi as grandes palavras. As que conjugam com as grandes verdades e saem do sentimento mais fundo, diz ao seu amor Augusto Frederico Schmidt.


Compreensão


Eu te direi as grandes palavras,
As que parecem sopradas de cima.
Eu te direi as grandes palavras,
As que conjugam com as grandes verdades,
E saem do sentimento mais fundo,
Como os animais marinhos das águas lúcidas.
Eu te direi a minha compreensão do teu ser,
E sentirei que te transfiguras a ti mesmo revelada.
E sentirei que te libertei da solidão
Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível.
Quero descer às tuas regiões mais desconhecidas
Porque és minha Pátria
As tuas paisagens são as da minha saudade.
Quero descer ao teu coração como se descesse ao mar,
Quero chegar à tua verdade que está sobre as águas.
Quero olhar o teu pensamento que está sobre as águas
E é azul
Como este céu cortado pelas aves,
Como este céu limpo e mais fundo que o mar.
Quero descer a ti e ouvir
As tuas manhãs acordadas pelos galos.
Quero ver a tua tarde banhada de róseo como nuvens frágeis
tangidas pelo ventos
Quero assistir à tua noite e ao sacrifício dos teus martírios.
Oh! estrela, oh! música,
Oh! tempo, espaço meu!

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

O camponês faz tudo e depende do preço do leite. No poema de Bertolt Brecht, a dialética na relação entre o homem do campo e a gente das cidades.


O camponês cuida de seu campo


I

O camponês cuida de seu campo
Trata bem de seu gado, paga impostos
Faz filhos para poupar trabalhadores
E depende do preço do leite.
Os da cidade falam do amor à terra
Da saudável linhagem camponesa
E que o camponês é o alicerce da nação.

II

Os da sua cidade falam do amor à terra
Da saudável linhagem camponesa
E que o camponês é o alicerce da nação.
O camponês cuida de seu campo
Trata bem de seu gado, paga impostos
Faz filhos para poupar trabalhadores
E depende do preço do leite.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

sábado, fevereiro 07, 2009

Longe dela, Vinicius de Moraes escreveu um dos seus mais belos poemas de amor. Um amor que, de tão grande, tornou tudo frágil, extremamente frágil.


Carta do ausente


Meus amigos, se durante o meu recesso virem por acaso passar a minha amada
Peçam silêncio geral. Depois
Apontem para o infinito. Ela deve ir
Como uma sonâmbula, envolta numa aura
De tristeza, pois seus olhos
Só verão a minha ausência. Ela deve
Estar cega a tudo o que não seja o meu amor (esse indizível
Amor que vive trancado em mim como num cárcere
Mirando empós seu rastro)
Se for à tarde, comprem e desfolhem rosas
À sua melancólica passagem, e se puderem
Entoem cantus-primus. Que cesse totalmente o tráfego
E silenciem as buzinas de moda que se ouça longamente
O ruído de seus passos. Ah, meus amigos
Ponham as mãos em prece e roguem, não importa a que ser ou divindade
Por que bem-haja a minha grande amada
Durante o meu recesso, pois sua vida
É minha vida, sua morte a minha morte. Sendo possível
Soltem pombas brancas em quantidade suficiente para que se faça em torno
A suave penumbra que lhe apraz. Se houver por perto
Uma hi-fi, coloquem o "Noturno em si bemol" de Chopin; e se porventura
Ela se puser a chorar, oh recolham-lhe as lágrimas em pequenos frascos de opalina
A me serem mandados regularmente pela mala diplomática.
Meus amigos, meus irmãos (e todos
Os que amam a minha poesia)
Se por acaso virem passar a minha amada
Salmodiem versos meus. Ela estará sobre uma nuvem
Envolta numa área de tristeza
O coração em luz transverberado. Ela é aquela
Que eu não pensava mais possível, nascida
Do meu desespero de não encontrá-la. Ela é aquela
Por quem caminham as minhas pernas e para quem foram feitos os meus braços
Ela é aquela que eu amo no meu tempo
E que amarei na minha eternidade - a amada
Una e impretérita. Por isso
Procedam com discrição mas eficiência - que ela
Não sinta o seu caminho, e que este, ademais
Ofereça a maior segurança. Seria sem dúvida de grande acerto
Não se locomovesse ela de todo, de maneira
A evitar os perigos inerentes às leis da gravidade
E do momentum dos corpos, e principalmente aqueles devidos
À falibilidade dos reflexos humanos. Sim, seria extremamente preferível
Se mantivesse ela reclusa em andar térreo e intramuros
Num ambiente azul de paz e música. Ó, que ela evite
Sobretudo dirigir à noite e estar sujeita aos imprevistos
Da loucura dos tempos. Que ela se proteja, a minha amada
Contra os males terríveis dessa ausência
Com música e equanil. Que ela pense, agora e sempre
Em mim que longe dela ando vagando
Pelos jardins noturnos da paixão
E da melancolia. Que ela se defenda, a minha amiga
Contra tudo o que anda, voa, corre e nada. e que se lembre
Que devemos nos encontrar, e para tanto
É preciso que estejamos íntegros, e acontece
Que os perigos são máximos, e o amor de repente, de tão grande
Tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Quem já ouviu a canção, raramente sabe de quem são esses lindos versos. Mas quem conhece a obra do poeta Carlos Pena não fica nem um pouco surpreso.


A mesma rosa amarela


Você tem quase tudo dela,
o mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela,
só não tem o meu amor.

Mas nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela.
O mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será
quando chegar a lembrança dela
e de você apenas restar
a mesma rosa amarela,
a mesma rosa amarela.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

Eugénio de Andrade a queria muito, muito mesmo. Ainda mais se ela fosse canção breve, chama pura.


Variações em tom menor


Para jardim te queria.
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.

Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
Te queria para ser
canção breve, chama pura.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade