sábado, maio 31, 2008

Para ser grande sê inteiro: nada. Nestes versos, Ricardo Reis diz tudo que é preciso saber para se viver a vida.


Para ser grande, sê inteiro: nada


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.

Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

A castidade com que ela abria as coxas enlouquecia Drummond. Naquele momento, ele não era ninguém e era mil seres, sem ele ressuscitados.


A castidade com que abria as coxas

A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estreita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres

sem mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Aquele riso foi o canto célebre da primeira estrela, em vão. Mas, para Vinicius, mistério maior é o sono, se de súbito não se ouve o riso da noite.


O riso

Aquele riso foi o canto célebre
Da primeira estrela, em vão.
Milagre de primavera intacta
No sepulcro de neve
Rosa aberta ao vento, breve
Muito breve...

Não, aquele riso foi o canto célebre
Alta melodia imóvel
Gorjeio de fonte núbil
Apenas brotada, na treva...
Fonte de lábios (hora
Extremamente mágica do silêncio das aves).

Oh, música entre pétalas
Não afugentes meu amor!
Mistério maior é o sono
Se de súbito não se ouve o riso na noite.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

quinta-feira, maio 29, 2008

Eu sou um homem fechado, o mundo me tornou egoísta e mau. E minha poesia é um vício triste, diz Mario Quintana ao lembrar a boca fresca de madrugada.


Canção do amor imprevisto

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E minha poesia é um vicio triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com tua boca fresca de madrugada,
Com teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel,
sem compreender nada,
numa alegria atônita...
A súbita alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

Mario Quintana

(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Para Leminski, quando chove, ele chove, se faz sol, ele faz, se tem Deus, ele reza, se não tem, ele esquece. E lá se vai ele, gesto no movimento.


Profissão de Febre


quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo, chovo,
assobio no vento,
daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento


Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski


À noite que vem sempre molhada, Eugénio de Andrade pede: sê alegria, senhora da tristeza. Vem de outra maneira ou vai-te embora, e deixa romper o dia.


Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!

Ó noite, porque hás-de vir sempre molhada!
Porque não vens de olhos enxutos
e não despes as mãos
de mágoas e de lutos!

Poque hás-de vir semimorta,
com ar macerado e de bruxedo,
e não despes os ritos, o cansaço,
e as lágrimas e os mitos e o medo!

Porque não vens natural
Como um corpo sadio que se entrega,
e não destranças os cabelos,
e não nimbas de luz a tua treva!

Porque hás-de vir com a cor da morte
- se a morte já temos nós!
Porque adormeces os gestos,
porque entristeces os versos,
e nos quebras os membros e a voz!

Porque é que vens adorada
por uma longa procissão de velas,
se eu estou à tua espera em cada estrada,
nu, inteiramente nu,
sem mistérios, sem luas e sem estrelas!

Ó noite eterna e velada,
senhora da tristeza, sê alegria!
Vem de outra maneira ou vai-te embora,
e deixa romper o dia!

Eugénio de Andrade

(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade


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terça-feira, maio 27, 2008

Manuel Bandeira vê os cavalinhos correndo, e nós cavalões, comendo. E sente a poesia morrendo, o sol tão claro lá fora, e em sua alma, anoitecendo.


Rondó dos cavalinhos

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora,
E em minhalma — anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reys partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma — anoitecendo!

Manuel Bandeira

(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Havia um muro e foi contra ele que arremeti a vida inteira. A honra era lutar e quanto mais lutava mais perdia, no depoimento sentido de Miguel Torga.


Depoimento

De seguro, 
Posso apenas dizer que havia um muro 
E que foi contra ele que arremeti 
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei 
Ultrapassá-lo de qualquer maneira. 
A honra era lutar 
Sem esperança de vencer. 
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber 
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia  
A dor de me perder.

Miguel Torga
(1907-1995)
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Deus não é a palavra Deus. E Deus é tudo isso, em um dos mais importantes poemas de Carlos Nejar.


Deus não é a palavra Deus.


Deus não é a palavra Deus
e andorinha,
a palavra andorinha.

Há um poço

que não entra
na palavra poço.

O amor, na palavra amor.

E Deus é tudo isso.

Carlos Nejar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

domingo, maio 25, 2008

Cessa o teu canto, quero o silêncio para dormir, sem qualquer memória da voz ouvida. Não cantes mais, pede Fernando Pessoa em seus versos de paixão.


Cessa o teu canto


Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia,
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.

Foi tua voz
Encantamento
Que, sem querer,
Nesse momento,
Vago acordou
Um ser qualquer
Alheio a nós
Que nos falou?

Não sei. Não cantes!
Deixa-me ouvir
Qual o silêncio
Que há a seguir
A tu cantares!

Ah, nada, nada!
Só os pesares
De ter ouvido
De ter querido
Ouvir para além
Do que é o sentido
Que uma voz tem.

Que anjo, ao ergueres
A tua voz,
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com as asas
Soprou as brasas
De ignoto lar?

Não cantes mais!
Quero o silêncio
Para dormir
Qualquer memória
Da voz ouvida,
Desentendida,
Que foi perdida
Por eu a ouvir...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Como acordar sem sofrimento e recomeçar sem horror no reino onde não existe vida nem paixão, pergunta Drummond. Ninguém responde, a vida é pétrea.


Acordar, Viver


Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasgam em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?

E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

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Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste. Depois da volúpia, o pesadelo entrou em mim e não havia mais vida, diz Vinicius de Moraes à mulher da noite.


A mulher na noite

Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas – vinhas andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel – tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.

Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, maio 24, 2008

Para uma mulher, Murilo Mendes escreveu um dos mais belos poemas da língua portuguesa. Em versos plenos de amor e dor.


A uma mulher


Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam logo em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens eternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.


Murilo Mendes

(1901-1975)


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

























Se me quiseres amar, terá que ser hoje: amanhã estarei mudada. A vida de Lya Luft foi feita de parceria com a morte, ela sabe do que está falando.


Aviso

Se me quiseres amar,
terá de ser agora: depois
estarei cansada.
Minha vida foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
pra mim sobrou quase nada.

Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e simples,
e assim garanto a minha sobrevida.

Se me quiseres amar,
terá de ser hoje:
amanhã estarei mudada.


Lya Luft


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Apenas eu te aceito, não te quero nem te amo, dor do mundo. E como Homero, aceito a provação que me surgir, diz Jorge de Lima às suas dores.


Dor do mundo


Apenas eu te aceito, não te quero
nem te amo, dor do mundo. Há honraria
que nos abate como um punho fero
mas aceitamos com sobrançaria.

A um vate grego certo rei severo
vazou-lhe os olhos para não fugir.
Ó dor do mundo, eu vivo como Homero,
aceito a provação que me surgir.

Homero a tua história sinto-a; e urdo
o teu destino, o meu e o de teu rei.
Mas só teus olhos nossos passos guiam,

e inda tens vozes para o mundo surdo,
e luz para os outros cegos, luz que herdei
com a aceitação dos olhos que não viam.

Jorge de Lima
(1893-1853)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

sexta-feira, maio 23, 2008

Para Guimarães Rosa, há uma hora certa, no meio da noite, em que todas as águas dormem. Menos para os que choram, a água dos olhos nunca tem sono.


O sono das águas

Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme.

Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água,
nos grotões fundos
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir…

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem
e adormece.
Até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes…

Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono…

Guimarães Rosa

(1908-1967)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

Em sua oferta aos novos que poetisam, Cora Coralina ensina o que mais sabe fazer. E diz, tudo isso, mais um conteúdo miúdo que seja e serás Poeta.


Oferta aos novos que poetisam


Poeta, poetisa teu caminho.
pega, segura com os dedos
da velha musa
o que resta de poesia
na transição da hora que passa.

Cuida bem da inspiração
que se despede por inútil.
Cuidado com o adjetivo:
traiçoeiro, corriqueiro,
se insinua libidinoso,
nu, esfarrapado, sem pudor.

Olha a rima indigente, forçada,
forçando tropeçante.
O verso desvalido, maltrapilho.
A palavra truncada.
O palavrão da moda. O jargão.
A frase feita.
O advérbio desgastado
pedindo esquecimento
e posterior recuperação.

Atenção, muita atenção !
Sem ser chamada - a palavra vulgar,
esmolambada, sabereta
vem, e vem para ficar.

A palavra pobre...
(coitadinha da palavra pobre !)
Também tem o seu direito
de figurar no verso.

Tudo isso, mais um
conteúdo miúdo que seja
e serás Poeta.

Cora Coralina
(1889-1985)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Manoel de Barros afirma em versos que a maior riqueza do homem é a sua incompletude. E nesse ponto se diz abastado, precisa ser Outros.


A maior riqueza do homem é a sua incompletude


A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.


Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

quarta-feira, maio 21, 2008

Cecília Meireles pergunta: onde estás, Amor-Perfeito? E sabendo-o longe, muito longe, guardava-o no lado esquerdo do peito, noite e dia.


Poema do amor perfeito

Naquela nuvem, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.

Os sonhos foram sonhados,
e o padecimento aceito.
E onde estás, Amor-Perfeito?

Imensos jardins da insônia,
de um olhar de despedida
deram flor por toda a vida.

Ai de mim que sobrevivo
sem o coração no peito.
E onde estás, Amor-Perfeito?

Longe, longe, atrás do oceano
que nos meus olhos se alteia,
entre pálpebras de areia...

Longe, longe... Deus te guarde
sobre o seu lado direito,
como eu te guardava do outro,
noite e dia, Amor-Perfeito.

Cecília Meirelles
(1901-1964 )

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A dor que te dói pelo avesso, quem sabe é teu amor. Porque o que tu tens, não tens, diz Thiago de Mello em seu lindo poema de amor e dor.


Poema concreto


O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso,
perdida nos teus escuros,
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes,
mas que é tua vida,
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens.

Thiago de Mello

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Para poder morrer, Hilda Hilst guarda insultos e agulhas entre as sedas do luto. Porque assim é preciso, para que tu vivas, diz ela ao seu amor.


Para poder morrer

Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

Hilda Hilst

(1930-2004)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

terça-feira, maio 20, 2008

Se estivesses aqui, ninguém te descobriria agora que a noite é escura. E Augusto Frederico Schmidt pergunta ao seu amor, por que não vens?


Solidão


Sem palavras espiaríamos os prédios enormes,
Os anúncios enormes
E os homens tão pequenos,
E os homens tão pequenos
Se estivesses aqui.

Eu te olharia, amor, longamente
Como se fôsses minha mãe ou minha irmã,
E não teria os maus pensamentos que tenho
Se estivesses aqui.

Não teria a grande tristeza que tenho agora,
O grande desamparo
E a grande solidão,
Não me sentiria assim tão pequenino
Na cidade tão grande
Se estivesses aqui.

Por que não vens?
Ninguém te descobriria agora que a noite é escura.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

De cair no chão, Dante Milano está bêbado de tristeza, de doçura, de incerteza. Ele sente rasgado o sonho, a ilusão sumindo, a emoção doendo.


Canção bêbeda


Estou bêbedo de tristeza,
De doçura, de incerteza,
Estou bêbedo de ilusão,
Estou bêbedo, estou bêbedo,
Bêbedo de cair no chão.

Os que me virem caído
Pensarão que estou ferido.
Alguém dirá: "Foi suicídio!"
"É um bêbedo!" outros dirão.

E ficarei estirado,
Bêbedo, desfigurado.

Talvez eu seja arrastado
Pelas ruas, empurrado,
Jogado numa prisão.

Ninguém perdoa o meu sonho,
Riem da minha tristeza,

Bêbedo, bêbedo, bêbedo,

Em mim, humilhada a glória,
Escarnecida a poesia,

Rasgado o sonho, a ilusão
Sumindo, a emoção doendo.

E ficarei atirado,
Bêbedo, desfigurado.

Dante Milano
(1899-1991)

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Ana Cristina Cesar queria um beijo que tivesse um blue e que imitasse feliz a delicadeza que mergulha no reino do prazer. Mas era um blue feliz.


Um beijo


Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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segunda-feira, maio 19, 2008

Manuel Bandeira viu muita coisa na vida, viu os céus, viu até o rastro do Senhor. Mas o que mais o impressionou foi tê-la visto nua...toda nua!


Alumbramento


Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!

Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela...e sinto-a pura...

Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar!

Eu vi o mar! Lírios de espuma
Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...
Vi a licorne alvinitente!...
Vi...vi o rastro do Senhor!...

E vi a Via-Láctea ardente...
Vi comunhões...capelas...véus...
Súbito...alucinadamente...

Vi carros triunfais...troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

Eu vi-a nua...toda nua!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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Mário de Andrade bem sabe que tudo é engano, mas sabendo disso persiste em se enganar. Ele quer amar a morte com o mesmo engano com que amou a vida.


Quarenta anos

A vida é para mim, esté se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar...Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado...Horrendo

Seria agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!...Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

Mário de Andrade
(1893-1945)

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Não te invejo, Amor, essa indiferença. Viver neste mundo sem amar é pior que ser cego de nascença, diz Florbela Espanca em seus versos tristes.


Frieza


Os teu olhos são frios como as espadas,
E claros como os trágicos punhais;
Têm brilhos cortantes de metais
E fulgores de lâminas geladas.

Vejo neles imagens retratadas
De abandonos cruéis e desleais,
Fantásticos desejos irreais,
E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,
Que viver neste mundo sem amar.
É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!
E quanta vez dirás a soluçar:
"Ah! Quem me dera, Irmã, amar assim!..."


Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

sábado, maio 17, 2008

Ferreira Gullar nos ensina que o poema é uma coisa que não tem nada dentro. A não ser uma imprecisa voz que não quer se apagar - essa voz somos nós.


Não-coisa


O que o poeta quer dizer

No discurso não cabe

e se o diz é pra saber

o que ainda não sabe.


Uma fruta uma flor

um odor que relume...

como dizer o sabor,

seu clarão seu perfume?


Como enfim traduzir

na lógica do ouvido

o que na coisa é coisa

e que não tem sentido?


A linguagem dispõe

de conceitos, de nomes

mas o gosto da fruta

só o sabes se a comes.


só o sabes no corpo

o sabor que assimilas

e que na boca é festa

de saliva e papilas


invadindo-te inteiro

tal dum mar o marulho

e que a fala submerge

e reduz a um barulho,


um tumulto de vozes,

de gozos, de espasmos,

vertiginoso e pleno

como são os orgasmos


No entanto, o poeta

desafia o impossível

e tenta no poema

dizer o indizível:


subverte a sintaxe

implode a fala, ousa

incutir na linguagem

densidade de coisa


sem permitir, porém,

que perca a transparência

já que a coisa é fechada

à humana consciência.


O que o poeta faz

mais do que mencioná-la

é torna-la aparência

pura – e iluminá-la.


Toda coisa tem peso

uma noite em seu centro.

O poema é uma coisa

que não tem nada dentro,


a não ser o ressoar

de uma imprecisa voz

que não quer se apagar

- essa voz somos nós.


Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Saio do meu poema como quem lava as mãos, diz João Cabral de Melo. Assim, ele começa um dos mais importantes poemas da língua portuguesa.


Psicologia da composição


I


Saio do meu poema

como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da atenção

cristalizou; alguma palavra

que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;

talvez como a camisa

vazia, que despi.


II

Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.

Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.

Como não há noite

cessa toda fonte;

como não há fonte

cessa toda fuga;

como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.


III


Neste papel

pode teu sal

virar cinza;

pode o limão

virar pedra;

o sol da pele,

o trigo do corpo

virar cinza.

(Teme, por isso,

a jovem manhã

sobre as flores

da véspera.)

Neste papel

logo fenecem

as roxas, mornas

flores morais;

todas as fluidas

flores da pressa;

todas as úmidas

flores do sonho.

(Espera, por isso,

que a jovem manhã

te venha revelar

as flores da véspera.)


IV


O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro: romper

seu branco frio, seu cimento

mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça.)


V


Vivo com certas palavras,

abelhas domésticas.

Do dia aberto

(branco guarda-sol)

esses lúcidos fusos retiram

o fio do mel

(do dia que abriu

também como flor)

que na noite

(poço onde vai tombar

a aérea flor)

persistirá: louro

sabor, e ácido,

contra o açúcar do podre.


VI


Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;

não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;

mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola.,

aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.


VII


É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.

São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.

É mineral

A linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.

É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza

da palavra escrita.


VIII


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

(A árvore destila

a terra, gota a gota;

a terra completa

cai, fruto!

Enquanto na ordem

de outro pomar

a atenção destila

palavras maduras.)

Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome;

onde foi palavra

(povos ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio.


João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)


Mais sobre João Cabral de Melo Neto em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Ferreira Gullar pergunta em versos onde está a poesia e a poesia vai à esquina comprar jornal. Poesia, paixão, revolução.

A poesia

Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
Meu poema é puro, flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.
Não é como a açucena
que efêmera
passa.
E não está sujeito a traça
pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
o meu poema está infenso à vida.

Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:
“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.’”

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou

Era pouco? era muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos e dentes
cheiros que transpassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
onde eu morria

Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca
E agora
recostada no divã da sala
depois de tudo
a poesia ri de mim

Ih, é preciso arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?)
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
A tua grácia!
E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).
Poesia – deter a vida com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão

E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-
saro? O pás-
?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

sexta-feira, maio 16, 2008

Mario Quintana trocaria todo o seu reino por uma simples canção. Uma canção que ela ouvisse como quem sonha, os mansos olhos fechando de puro amor...


O trovador


Ah! uma canção de nina-nana
que tu ouvisses de olhos fechados...
Mas os meus poemas enlouqueceram
- me dizem coisas que eu nem sabia...
Dizem coisas que te fazem mal,
meu pobre amor!

Mesmo que nunca falem em dor
- a dor, enfim, é tão vulgar -
têm uma trágica poesia...
Ainda que nunca falem em dor
- por que aprofundam o teu olhar
como o de alguém que vão matar?

Se tu soubesses quanto eu queria,
queria apenas te embalar,
acalentar-te com o meu calor...

Mas dos meus dedos brotam signos...
Fórmulas mágicas dançam no ar...
Oh! se as pudesse esconjurar
com teu amor!
Eu trocaria todo o meu reino
e mais as minas de Trebizonda
- Toda, toda essa magia
ou seja lá o que for -
por uma simples canção
que tu ouvisses como quem sonha,
os mansos olhos fechando
de puro amor...

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em tempo de guerra, Menotti del Picchia vê a pomba da paz voar aos céus serenos.E depois pousar, calma e triste, sobre as mãos cruzadas de um cadáver.


A paz


A alva pomba da paz voou aos céus serenos.

Embaixo homens se agitavam
entre gritos e tiros.

Paquidermes mecânicos
sulcavam fossos
rasgando trincheiras.

Cansada de librar-se nas alturas
a pomba da paz
buscou na terra um pouso
e flechou
num vôo reto
rumo a uma coisa imóvel
hirta e muda no raso campo verde.

E pousou
calma e triste
sobre as mãos cruzadas de um cadáver.

Menotti Del Picchia
(1892-1988)

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Em versos tristes e carregados de ironia, Leminski diz que já se matou faz muito tempo. E que morrer de vez em quando é a única coisa que o acalma.


Já me matei...


já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

quinta-feira, maio 15, 2008

Não, não digas nada, deixa esquecer, até onde quis ser quem me agrada fui feliz. Não, não digas nada, pede Fernando Pessoa em seu lindo poema de amor.


Não digas nada


Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ver…
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada…
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

É só de mim que ando delirante, manhã tão forte que me anoiteceu. Mário de Sá-Carneiro sabe que não foi ópio nem morfina que o ardeu, foi álcool raro.

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo —
Luto, estrebucho… Em vão! Silvo pra além…

Corro em volta de mim sem me encontrar…
Tudo oscila e se abate como espuma…
Um disco de oiro surge a voltear…
Fecho os meus olhos com pavor da bruma…

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?…
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante —
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Desaparecia-se, desaparecia-se muito naqueles dias. Mas um dia cai a ditadura, vivos e mortos venceram, na bela homenagem de Afonso Romano.


De repente

De repente, naqueles dias começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado, ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia..
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupo de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
- mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.

Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.

Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, aerefeitos, constatar no além
como os pecadores partiam.

Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os do platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil
ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
- desapareciam.

2

Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebentavam os mais puros.
em mística euforia. Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.

Em toda a família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isso alimentava ficções
- nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos
boiavam
- na sopa do presidente.

As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
As pedras, no entanto,
gritavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
como a vítima corrói o algoz.

E surgiram sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera dos ossos.

Brotavam troncos de árvore,
rios, insetos e nuvens
em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.

Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.

Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.

A natureza, como a história
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.

Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.

Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos, da sepultura.

Afonso Romano de Sant’Anna

Mais sobre Affonso Romano de Sant’Anna em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna

terça-feira, maio 13, 2008

Espero-te desde o começo, és meu amor triste e lúcido, por ti me vinguei da vida. E depois subiremos pelo arco-íris semimortos de paixão, tu e eu.


Tu

Espero-te desde o começo,
Desde o tempo das pianolas,
Desde a luz de querosene.

És meu amor triste e lúcido,
Por ti me vinguei da vida,
Matei a figura estéril
E fiz a pedra florir.

Céu e terra se tocaram
Com grande aplauso do fogo,
Ondas bravas se abraçavam
No início do nosso idílio.

Áspera e doce criatura,
És o arquétipo encarnado
Das mulheres oceânicas
E ao mesmo tempo tranqüilas.

Nosso amor será uma luta:
Ao som de clarins vermelhos
Subiremos pelo arco-íris
Semimortos de paixão,
Até encontrarmos o Hóspede.

Murilo Mendes

(1901-1975)

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Sob juramento lhes digo, tenho 18 anos, incompletos. Aos 50 anos, Adélia Prado está alegre e o motivo beira secretamente a humilhação.


A bela adormecida

Estou alegre e o motivo
beira secretamente a humilhação,
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa daquele que volta
e põe tudo arcaico como matéria da alma,
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom !
Namorar quem ?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja,
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço
a cada ano mais.
Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.

Adélia Prado

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Ando muito completo de vazios e meu órgão de morrer predomina. Estou sem eterninadades e a minha independência tem algemas, diz Manoel de Barros.


Completo

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

Manoel de Barros

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segunda-feira, maio 12, 2008

Eu deixarei o mundo com fúria. Não chorarei, não há soluço maior do que despedir-se da vida, diz Ferreira Gullar em seu poema de despedida.


Despedida


Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.

Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Sei que me tens amor, de que serve fingir se não pode escondê-lo de ninguém? Irrita Florbela o desdém de quem olha de longe o mundo e a vaidade.


Desdenhando


Irrita-me esse olhar tão de desdém,
Esse teu ar de superioridade,
Altivo para mim, como de quem
Olha de longe o mundo e a vaidade.

Sei que me tens amor, e na verdade,
de que serve fingir, se quem o tem
Nunca pode escondê-lo de ninguém;
E toda a gente o tem na nossa idade!

"Amor" - linda palavra, tão suave!
É riso de criança, trilo d'ave,
Renda tecida à noite p'lo luar!

Eu digo-a tantas vezes com fervor,
Que nem sei como ela, meu Amor,
Te custe uma só vez a murmurar!...


Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Envenenado morria um pobre cão e as pessoas paravam para ver, como lhes desse gozo ver padecer. Machado de Assis conhecia a perversa natureza humana.


Suave Mari Magno


Lembro-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol do verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso.

Junto ao cão que ia morrer
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.

Machado de Assis
(1839-1908)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

sábado, maio 10, 2008

Amamos sempre no que temos o que não temos quando amamos. Nessa hora, sê a Outra, diz Fernando Pessoa em seus versos carregados de mágoa.


A outra


Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos,
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já cairam na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejei...
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
O poder ser eu que te beije
Beijo, e em que eu penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
o barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nós recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
Façamos dessa hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Como é maravilhoso o amor, dançai meus irmãos. A morte virá depois como um sacramento, diz Drummond em seus versos bêbados de amor.


Aurora


O poeta ia bêbado no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbadas.

Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada)
Que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.

O poeta está bêbado, mas
escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar
entre o bonde e a árvore?

Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!
Os filhos estão nascendo
com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).
Dançai meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Ah, amor, meu tormento, como por ti padeço. Ai que medo de amar, diz um apaixonado e medroso Vinicius de Moraes.


Medo de amar

O céu está parado, não conta nenhum segredo
A estrada está parada, não leva a nenhum lugar
A areia do tempo escorre de entre meus dedos
Ai que medo de amar!

O sol põe em relevo todas as coisas que não pensam
Entre elas e eu, que imenso abismo secular...
As pessoas passam, não ouvem os gritos do meu silêncio
Ai que medo de amar!

Uma mulher me olha, em seu olhar há tanto enlevo
Tanta promessa de amor, tanto carinho para dar
Eu me ponho a soluçar por dentro, meu rosto está seco
Ai que medo de amar!

Dão-me uma rosa, aspiro fundo em seu recesso
E parto a cantar canções, sou um patético jogral
Mas viver me dói tanto! e eu hesito, estremeço...
Ai que medo de amar!

E assim me encontro: entro em crepúsculo, entardeço
Sou como a última sombra se estendendo sobre o mar
Ah, amor, meu tormento!... como por ti padeço...
Ai que medo de amar!

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

quinta-feira, maio 08, 2008

Desse mundo particular de doze horas, ninguém escreverá o ponto final. Para João Cabral de Melo, em vez de juízo final preocupa o sonho final.


O fim do mundo


No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.

Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.

O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final.

João Cabral de Melo
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Quando ela passa,no seu olhar feroz Augusto dos Anjos advinha o mistério da dor que a traz penada.E para guardar a mágoa oculta, ela chora e gargalha.


A louca

Quando ela passa: - a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.

Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário de mágoa sepultada.

Eu sei a sua história. - Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
- O segredo d’um peito torturado -

E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça - coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.

Augusto dos Anjos

(1814-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Todas as portas e janelas se fecham, ninguém lhe responde e não querem vê-lo. Só insultos colhe, o rosto lhe viram, menos Sophia e sua revolta.


Cantar

Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto Passo andado
País ocupado
Num quarto fechado
As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados

Naquela cidade
Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera
Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens

Sophia de Mello Breyner

(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner


[

terça-feira, maio 06, 2008

É a chuva, é o vento, é o medo, é a treva, é o tédio. Assim, Guilherme de Almeida sente que é tudo inútil, não há remédio, é mesmo o tédio.


A canção do tédio


Anda uma estrela pelo céu,
sozinha, arrastando um véu
de viúva.
- É a chuva.

Rola um soluço leve no ar,
bem longe no seu rolar,
bem lento.
- É o vento.

Perpassa o passo oco de algum
fantasma, quieto como um
segredo.
- É o medo.

Batem à porta. Abro. Quem é?
Uma alta sombra, de pé,
se eleva.
- É a treva.

Mas, desde então alguém está
comigo. É inútil. Não há.
remédio.
- É o tédio.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

Não te chamo Eva, nem te dou nenhum nome de mulher nascida. Mas te chamo a que desceu do luar para causar as marés, diz Jorge de Lima ao seu amor.


O nome da musa


Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida,
nem de fada, nem de deusa, nem de musa, nem de sibila, nem de terras,
nem de astros, nem de flores.
Mas te chamo a que desceu do luar para causar as marés
e influir nas coisas oscilantes.
Quando vejo os enormes campos de verbena agitando as corolas,
sei que não é o vento que bole mas tu que passas com os cabelos soltos.
Amo contemplar-te nos cardumes das medusas que vão para os mares boreais,
ou no bando das gaivotas e dos pássaros dos pólos revoando sobre as terras geladas
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida.
O teu nome deve estar nos lábios dos meninos que nasceram mudos,
nos areais movediços e silenciosos que já foram o fundo do mar,
no ar lavado que sucede as grandes borrascas,
na palavra dos anacoretas que te viram sonhando
e morreram quando despertaram,
no traço que os raios descrevem e que ninguém jamais leu.
Em todos esses movimentos há apenas sílabas do teu nome secular
que coisas primitivas escutaram e não transmitiram às gerações .
Esperemos, amigo, que searas gratuitas nasçam de novo,
e os animais de criação se reconciliem sob o mesmo arco-íris
então ouvireis o nome da que não chamo Eva
nem lhe dou nenhum nome de mulher nescida.

Jorge de Lima
(1893-1953)

Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

Longe de ti, o mundo avança e o tempo cai. E eu penso em ti, só penso em ti, só vivo em ti como um perdido. E não respiro nem me aquieto longe de ti.


Longe de Ti


O mundo avança
O tempo cai
Pesado, grávido, maduro,
E eu penso em ti.
A guerra, enfim, o seu mistério
Revela e aclara.
A onda cresce
E eu penso em ti.
A aspiração sempre contida
Desaba enfim violenta e grave,
E se transforma em força imensa
E eu penso em ti.
Como integrar-me nesta luta
E interpretar o mundo virgem
Se penso em ti?
Se em ti me abismo, em teu mistério,
No teu destino brusco e triste,
Se vivo a angústia, o desespero
Da tua ausência?
Se o auxílio teu é meu destino,
Como sentir a dor do tempo,
Como cantar o tempo novo,
As energias e os avanços,
As libertárias esperanças,
Se em tal prisão me tens sujeito,
Se vivo em ti, como um perdido,
Se não respiro, nem me aquieto
Longe de ti?

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1995)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

segunda-feira, maio 05, 2008

Resultado do Concurso Poemblog - Novos Poetas

Resultado do Concurso Poemblog - Novos Poetas

1º Lugar:"Emigrante imigrante", de Flavio Perri;
2º Lugar:"Neuropoesia', de Luiz Carlos Fávero;
3º Lugar:"Poeta", de Deka Purim
4ºLugar:"Agonia", de Rafaela Caetano.
5ºLugar:"Sinapse do amor", de Paula Rodrigues Braz
6ºLugar:"Garimpos", de Glauber Ramos
7ºLugar:"Sujeito", de Di Silveira
8ºLugar:"De amar", de Fabrício Santos
9ºLugar:"Nó", de Paula Gonçalves Rodrigues
10ºLugar:"Rosto de fogo", de Tarcísio Conte.

Todos os poemas inscritos, inclusive os premiados, estão publicados na comunidade do
Poemblog no Orkut:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=27783881

sábado, maio 03, 2008

Manuel Bandeira faz versos como quem chora, faz versos como quem morre. É o seu sangue que cai, gota a gota do coração, a jorrar de tanto amor.


Desencanto


Eu faço versos como quem chora
De desalento, de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue, volúpia ardente
Tristeza esparsa, remorso vão
Dói-me nas veias. Amargo e quente
Cai gota à gota, do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca

- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Ser, Ter e Amar, nos verbos Thiago de Mello busca seu testemunho de vida. E descobre que, sofredor grandioso, só mesmo o coração: pois nele cabe Deus.


O testemunho


I - Ser

Num campo de silêncio,
onde pastam manhãs,
estou - sempre que sou.

Quis-me o campo por senda:
em meu lúcido passo,
entanto, lá não vou.

Atendo a um chamamento
feroz, tímido e brando:
são vozes maduras.

Toda recusa é vã:
asas me erguem, e sou.
Ser é resposta. E dói.

É um campo de silêncio:
oh! palpitante berço
e pasto roçagante

de infinitas manhãs
que se cantam nascidas
para a noite do mundo.

De silêncio e contudo
ali se escuta a dor
crescer, fingida em relva.

Essa relva me sabe.
O coração é a boca
que se crispa a seu travo.

Pasto dor e silêncio
no campo onde sou.

II - Ter

Dor sofrida é salário.

O amargo que mastigo
transmuda-se na moeda
com que me cumpro e compro

o segredo fecundo
adormecido há invernos
na boca das auroras.

Para erguê-las ao campo
de silêncio onde pastam
- e de onde me chamaram -,

antes entrego as mãos
às lâminas de brasa
que me buscam, ferozes:

matutinos orvalhos,
serenos de idas tardes,
sepultos semivivos.

Com esssa dor se cunha
a moeda em cuja efígie
vê-se o perfil dos anjos.

Meu salário é meu júbilo:
ao regressar-me, esplendem
alvíssaras profundas

no momento em que emtrego
ao mundo - envolta em cânticos -
humilde sempremanhã.

III - Amar

No campo do silêncio
onde, existindo, sou,
não me retardo. Tardo.

a ser, e quando sou
- sou pouco. O muito é a dor.
As têmporas estalam.

O tempo que ficou
e, aquém de mim, me espera
reclama o existir turvo.

Então, perdido, torno,
a caminho transbordo,
transvio-me de mim:

quando chego, sou pouco.
Crestam-me a vida vã
saudades de ter sido.

A dor é eco longínquo
de grito soterrado.
O ser é estrela extinta,

lua de treva em céu
já desabado, pedra
lavada pela chuva.

Permaneço, contudo,
e comigo a amargura,
quando o amor é o caminho

que em mim se faz e faz-me
correr ao campo branco
onde alvoradas sonham,

onde me espera o pasto
onde a fome fareja
a dor antiga, eterna:

dor esplêndida e dura
- dor de ser e de amar.
Porque de amar, perdura.

E trago dessa viagem
uma treva mais doce
para noite do mundo.

Às vezes é uma aurora
que me aclara também:
e vejo em amargor

a face que me coube,
a face dessa noite
noite tão noite e fria

que é minha e de meu mundo,
ai, mundo meu não mundo,
perdido, em pranto, e pouco.

O muito em mim, e grande,
e sofredor grandioso
- só mesmo o coração:
pois nele cabe Deus.

Thiago de Mello

Mais sobre Thoago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Há um lado em mim que já morreu, às vezes penso se esse lado não sou eu. Esta a dúvida maior de Paulo Mendes Campos, às voltas com os seus lados.


Os lados


Há um lado bom em mim.
O morto não é responsável
Nem o rumor de um jasmim.
Há um lado mau em mim,
Cordial como um costureiro,
Tocado de afetações delicadíssimas.

Há um lado triste em mim.
Em campo de palavra, folha branca.

Bois insolúveis, metafóricos, tartamudos,
Sois em mim o lado irreal.

Há um lado em mim que é mudo.
Costumo chegar sobraçando florilégios,
Visitando os frades, com saudades do colégio.

Um lado vulgar em mim,
Dispensando-me incessante de um cortejo.
Um lado lírico também:

Abelhas desordenadas de meu beijo;
Sei usar com delicadeza um telefone,
Não me esqueço de mandar rosas a ninguém.

Um animal em mim,
Na solidão, cão,
No circo, urso estúpido, leão,
Em casa, homem, cavalo...

Há um lado lógico, certo, irreprimível, vazio
Como um discurso.
Um lado frágil, verde-úmido.
Há um lado comercial em mim,
Moeda falsa do que sou perante o mundo.

Há um lado em mim que está sempre no bar,
bebendo sem parar.

Há um lado em mim que já morreu.
Às vezes penso se esse lado não sou eu.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

sexta-feira, maio 02, 2008

Houve um poema, parecia perfeito. Houve um poema, há uma saudade. Lágrima e orvalho que caem dos olhos e do céu, no lindo poema de Cecília Meireles.


Houve um poema


Houve um poema,
entre a alma e o universo.
Não há mais.
Bebeu-o a noite, com seus lábios silenciosos.
Com seus olhos estrelados de muitos sonhos.

Houve um poema:
Parecia perfeito.
Cada palavra em seu lugar,
como as pétalas nas flores
e as tintas no arco-íris.
No centro, mensagem doce
E intransmitida jamais.

Houve um poema:
e era em mim que surgia, vagaroso.
Já não me lembro, e ainda me lembro.
As névoas da madrugada envolvem sua memória.
É uma tênue cinza.
O coral do horizonte é um rastro de sua cor.
Derradeiro passo.

Houve um poema.
Há esta saudade.
Esta lágrima e este orvalho - simultâneos -
que caem dos olhos e do céu.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Para que a alma possa nascer normal na outra vida, Mario Quintana diz que é preciso muito cuidado. Nesta, ela quase não tem tempo de ficar pronta.


Cuidado!


Nós somos gestantes da alma...Cuidado!
É preciso muito, muito cuidado
Para que a alma possa nascer normal na outra vida.
Nesta, ela mal pode, ela quase não tem tempo de
ficar pronta!
Como é possível, com estes cuidados e mais cuidados
sem conta,
Ah, toda essa vergonha de sermos devorados
- meticulosamente - por milhões de ratos
durante sessenta, setenta, oitenta anos
Quando bem poderia surgir de súbito o nobre leão da morte
Na plenitude nossa
Como acontece com os heróis da Ilíada,
Mas os heróis só morrem - no País das Ilíada -
Belos e jovens...
Aqui, qualquer heroísmo se desmoraliza dia a dia
como a barba do Tempo arrancada, fio a fio, das folhinhas...
Como é possível, como é possível um alma triturada assim pelos relógios?
Como é possível nascer com um barulho destes?

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Mário de Andrade sabe que não tem propósito gostar de donas casadas. O seu espírito sublima o fogo devorador e encabulado ponteia a malvadeza do amor.


Tempo da Maria


Maria dos meus pecados,
Maria, viola do amor...

Já sei que não tem propósito
Gostar de donas casadas,
Mas quem pode com o peito!
Amar não é desrespeito,
Meu amor terá seu fim.
Maria há-de ter um fim.

Quem sofre, sou eu, que importa
Pros outros meu sofrimento?
Já estou curando a ferida.
Só dando tempo pro tempo
Toda paixão é esquecida.
Maria será esquecida.

Que bonita que ela é!...Não
Me esqueço dela um momento!
Porém não dou cinco meses,
Acabarão as fraquezas
E a paixão será arquivada.
Maria será arquivada.

Por enquanto isso é impossível.
O meu corpo encasquetou
De não gostar senão de uma...
Pois, pra não fazer feiúra,
Meu espírito sublima
O fogo devorador.
Faz da paixão uma prima,
Faz do desejo um bordão,
E encabulado ponteia
A malvadeza do amor.

Maria, viola de amor!...

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade