sexta-feira, novembro 30, 2007

Quando estás vestida, ninguém imagina o mundo que escondes sob as tuas roupas. Nua na noite, palpitam teus mundos e os mundos da noite, diz Bandeira.


Nu

Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.

(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.

Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite.

Brilham teus joelhos,
Brilha o teu umbigo,
Brilha toda a tua
Lira abdominal.

Teus exíguos
— Como na rijeza
Do tronco robusto
Dois frutos pequenos —

Brilham.) Ah, teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular.
Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu’alma
Nua, nua, nua…

Manuel Bandeira

(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wikI/Manuel_Bandeira



Como Ontem, para mim, Hoje é distância. Sou estátua falsa ainda erguida no ar, diz em seus versos plenos de angústia Mário de Sá-Carneiro.


Estátua falsa


Só de oiro falso os meus olhos se douram
Sou esfinge sem mistério no poente,
A tristeza das coisas que não foram
Na minh’alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam,
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distancia.

Já não me estremeço em face do segredo
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida no ar...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

quinta-feira, novembro 29, 2007

Ao menino que desapareceu de casa porque não passou no vestibular, Ferreira Gullar disse: não adianta fugir nem endoidar, é justa sua revolta.


Vestibular


Paulo Roberto Parreiras
desapareceu de casa
trajava calças cinza e camisa branca
e tinha dezesseis anos.
Parecia com teu filho, teu irmão,
teu sobrinho, parecia
com o filho do vizinho
mas não era. Era Paulo
Roberto Parreiras
que não passou no vestibular

Recebeu a notícia quinta-feira à tarde,
ficou triste
e sumiu.
De vergonha? De raiva?
Paulo Roberto estudou
dura duramente
durante os últimos meses.
Deixou de lado os discos,
o cinema,
até a namoradinha ficou sem vê-lo.
Nem soube do carnaval.
Se ele fez bem ou mal
não sei: queria
passar no vestibular.
Não passou. Não basta
estudar?

Paulo Roberto Parreira
a quem nunca vi mais gordo,
onde quer que você esteja
fique certo
de que estamos do seu lado.
Sei que isso é muito pouco
para quem estudou tanto
e não foi classificado (pois não há mais
excedentes), mas
é o que lhe posso oferecer: minha palavra
de amigo
desconhecido.
Nessa mesma quinta-feira
em Nova York morreu
um menino de treze anos que tomava entorpecentes.
em S.Paulo, outro garoto
foi preso roubando carros.
E há muitos que somem
ou surgem como cometas ardendo em sangue, nestas noites,
nestas tardes,
nesses dias amargos.

Não sei pra onde você foi
nem o que pretende fazer
nem posso dizer que volte
para casa,
estude (mais?) e tente outra vez.
Não tenho nenhum poder,
nada posso assegurar.
Tudo que posso dizer-lhe
é que a gente não foge
da vida,
é que não adianta fugir.
Nem adianta endoidar.
Tudo o que posso dizer-lhe
é que você tem o direito de estudar.
É justa sua revolta:
seu outro vestibular.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Quero morrer de noite, as janelas abertas, os olhos a fitar a noite infinda.E minha alma sairá para bem longe de tudo, diz Augusto Frederico Schmidt.


A partida


Quero morrer de noite.
As janelas abertas
Os olhos a fitar a noite infinda

Quero morrer de noite.
Irei me separando aos poucos
Me desligando devagar.
A luz das velas envolverá meu rosto lívido.

Quero morrer de noite.
As janelas abertas.
Tuas mãos chegarão aos meus lábios
Um pouco de água
E os meus olhos beberão a luz triste dos teus olhos.
Os que virão, os que ainda não conheço.
Estarão em silêncio,
Os olhos postos em mim.

Quero morrer de noite.
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda.

Aos poucos me verei pequenino de novo, muito pequenino.
O berço se embalará na sombra de uma sala
E na noite, medrosa, uma velha coserá um enorme boneco.
Uma luz vermelha iluminará um grande dormitório
E passos ressoarão quebrando o silêncio.
Depois na tarde fria um chapéu rolará numa estrada...

Quero morrer de noite.
As janelas abertas
Minha alma sairá para longe de tudo, para bem longe de tudo.

E quando todos souberem que já não estou mais
E que nunca mais volverei
Haverá um segundo, nos que estão
E nos que virão, de compreensão absoluta.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

segunda-feira, novembro 26, 2007

Nos versos de Miguel Torga, a vida é água, sal e vontade. Um mar salgado, lírico, coberto de lágrimas, iodo e nevoeiro.


Ode ao mar

Água, sal e vontade — a vida!
Azul — a cor do céu e da inocência.
Um lenço a colorir a despedida
Da galera da ausência...

Mar tenebroso!
Mar fechado e rugoso
Sobre um casto jardim adormecido!
Mar de medusas que ninguém semeia,
Criadas com mistério e com areia,
Perfeitas de beleza e de sentido!

Vem a sede da terra e não se acalma!
Vem a força do mundo e não te doma!
Impenitente e funda, a tua alma
Guarda-se no cristal duma redoma.

Guarda-se purificada em leve espuma,
Renda da sua túnica de linho.
Guarda-se aberta em sol, sagrada em bruma,
Sem amor, sem ternura e sem caminho.

O navio do sonho foi ao fundo,
E o capitão, despido, jaz ao leme,
Branco nos ossos descarnados;
Uma alga no peito, a flor do mundo,
Uma fibra de amor que vive e treme
De ouvir segredos vãos, petrificados.

Uma ilusão enfuna e enxuga a vela,
Uma desilusão a rasga e molha;
Morta a magia que pintava a tela,
O mesmo olhar de há pouco já não olha.

Na órbita vazia um cego ouriço
Pica o silêncio leve que perpassa...
Pica o novo feitiço
Que nasce do final de uma desgraça.

Mas nem corais, nem polvos, nem quimeras
Sobem à tona das marés...
O navio encalhado e as suas eras
Lá permanecem a milhentos pés.

Soterrados em verde, negro e vago,
Nenhum sol os aquece.
Habitantes do lago
Do esquecimento, só a sombra os tece...

Ela és tu, anónimo oceano,
Coração ciumento e namorado!
Ela que és tu, arfar viril e plano,
Largo como um abraço descuidado!

Tu, mar fechado, aberto e descoberto
Com bússolas e gritos de gajeiro!
Tu, mar salgado, lírico, coberto
De lágrimas, iodo e nevoeiro!

Miguel Torga
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

Para Paulo Mendes Campos, domingo era o instante das pausas, o pouso dos tristes, o porto do insofrido. E ele lia poemas nos parques.


Os domingos

Todas as funções da alma estão perfeitas neste domingo.
O tempo inunda a sala, os quadros, a fruteira.
Não há um crédito desmedido de esperança.
Nem a verdade dos supremos desconsolos -
Simplesmente a tarde transparente,
Os vidros fáceis das horas preguiçosas,
Adolescência das cores, preciosas andorinhas.

Na tarde – lembro – uma árvore parada,
A alma caminhava para os montes,
Onde o verde das distâncias invencidas
Inventava o mistério de morrer pela beleza.
Domingo – lembro – era o instante das pausas,
O pouso dos tristes, o porto do insofrido.
Na tarde, uma valsa; na ponte, um trem de carga;
No mar, a desilusão dos que longe se buscaram;
No declive da encosta, onde a vista não vai,
Os laranjais de infindáveis doçuras geométricas;
Na alma, os azuis dos que se afastam,
O cristal intocado, a rosa que destoa.
Dos meus domingos sempre fiz um claustro.
As pétalas caíam no dorso das campinas,
A noite aclarava os sofrimentos,
As crianças nasciam, os mortos se esqueciam mortos,
Os ásperos se calavam, os suicidas se matavam.
Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,
Procurando palavras que espelhassem os domingos.
E uma esperança que não tenho.

Paulo Mendes Campos

(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

domingo, novembro 25, 2007

Carlos Drummond de Andrade estava tristinho, tristonho, por ser o só que nunca viu o disco voador. Então, tão comum na Rua do Ouvidor.


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Falta um disco

Amor,
estou triste porque
sou o único brasileiro vivo
que nunca viu um disco voador.
Na minha rua todos viram
e falaram com seus tripulantes
na língua misturada de carioca
e de sinais verdes luminescentes
que qualquer um entende, pois não?
Entraram a bordo (convidados)
voaram por aí
por ali, por além
sem necessidade de passaporte
e certidão negativa de IR,
sem dólares, amor, sem dólares.
Voltaram cheios de notícias
e de superioridade.
Olham-me com desprezo benévolo.
Sou o pária,
aquele que vê apenas caminhão
cartaz de cinema, buraco na rua
& outras evidências pedestres.
Um amigo que eu tenho
todas as semanas vai ver o seu disco
na praia de Itaipu.
Este não diz nada para mim,
de boca, mas o jeito,
os olhos! contam de prodígios
tornados simples de tão semanais
apenas secretos para quem não é
capaz de ouvir e de entender um disco.
Por que a mim, somente a mim
recusa-se o OVNI?
Talvez para que a sigla
de todo não se perca, pois enfim
nada existe de mais identificado
do que um disco voador hoje presente
em São Paulo, Bahia
Barra da Tijuca e Barra Mansa.
(Os pastores desta aldeia
já me fazem zombaria
pois procuro, em vão procuro
noite e dia
o zumbido, a forma, a cor
de um só disco voador.)
Bem sei que em toda parte
eles circulam: nas praias
no infinito céu hoje finito
até no sítio de um outro amigo em Teresópolis.
Bem sei e sofro
com a falta de confiança neste poeta
que muita coisa viu extraterrena
em sonhos e acordado
viu sereias, dragões
o Príncipe das Trevas
a aurora boreal encarnada em mulher
os sete arcanjos de Congonhas da Luz
e doces almas do outro mundo em procissão.
Mas o disco, o disco?
Ele me foge e ri
de minha busca.

Um passou bem perto (contam)
quase a me roçar. Não viu? Não vi.
Dele desceu (parece)
um sujeitinho furta-cor gentil
puxou-me pelo braço: Vamos (ou: plnx),
talvez...?
Isso me garantem meus vizinhos
e eu, chamado não chamado
insensível e cego sem ouvidos
deixei passar a minha vez.
Amor, estou tristinho, estou tristonho
por ser o só
que nunca viu um disco voador
hoje comum na Rua do Ouvidor.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sábado, novembro 24, 2007

Nestes versos, Vinicius de Moraes conta a história do poeta que viria a ser. E do homem que foi.


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O poeta aprendiz

Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante.
Anos tinha dez
E asinhas nos pés
Com chumbo e bodoque
Era plic e ploc.
O olhar verde-gaio
Parecia um raio
Para tangerina
Pião ou menina.
Seu corpo moreno
Vivia correndo
Pulava no escuro
Não importa que muro
E caía exato
Como cai um gato.
No diabolô
Que bom jogador
Bilboquê então
Era plim e plão.
Saltava de anjo
Melhor que marmanjo
E dava o mergulho
Sem fazer barulho.
No fundo do mar
Sabia encontrar
Estrelas, ouriços
E até deixa-dissos.
Às vezes nadava
Um mundo de água
E não era menino
Por nada mofino
Sendo que uma vez
Embolou com três.
Sua coleção
De achados do chão
Abundava em conchas
Botões, coisas tronchas
Seixos, caramujos
Marulhantes, cujos
Colocava ao ouvido
Com ar entendido
Rolhas, espoletas
E malacachetas
Cacos coloridos
E bolas de vidro
E dez pelo menos
Camisas-de-vênus.
Em gude de bilha
Era maravilha
E em bola de meia
Jogando de meia –
Direita ou de ponta
Passava da conta
De tanto driblar.
Amava era amar.
Amava sua ama
Nos jogos de cama
Amava as criadas
Varrendo as escadas
Amava as gurias
Da rua, vadias
Amava suas primas
Levadas e opimas
Amava suas tias
De peles macias
Amava as artistas
Das cine-revistas
Amava a mulher
A mais não poder.
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita.
Por isso sofria.
Da melancolia
De sonhar o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sexta-feira, novembro 23, 2007

Cecília Meireles não acusa, nem perdôa, nada sabe, de nada, apenas contempla. Afinal, antes de haver o céu ela não estava presente.


Contemplação

Não acuso. Nem perdôo.
Nada sei. De nada.
Contemplo.

Quando os homens apareceram
eu não estava presente.
Eu não estava presente,
quando a terra se desprendeu do sol.
Eu não estava presente,
quando o sol apareceu no céu.
E antes de haver o céu,
EU NÃO ESTAVA PRESENTE.

Como hei de acusar ou perdoar?
Nada sei.
Contemplo.

Parece que às vezes me falam.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, nestas paragens
onde somos todos estrangeiros?
Também não sei com segurança, muitas vezes,
da oferta que vai comigo, e em que resulta,
pois o mundo é mágico!
Tocou-se o Lírio e apareceu um Cavalo Selvagem.
E um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.

Já vês que me enterneço e me assusto,
entre as secretas maravilhas.
E não posso medir todos os ângulos do meu gesto.

Noites e noites, estudei devotamente
nossos mitos, e sua geometria.

Por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
eu era amor. Só isso encontro.
Caminho, navego, vôo,
- sempre amor.
Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
- mas semore o mesmo resultado: direção e êxtase.
À beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?

Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos
quando já foram sofridos.

Tão pouco somos, - e tanto causamos,
com tão longos ecos!
Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.

Entre o desejo do itinerário, uma lei que nos leva
age invisível e abriga
mais que o itinerário e o desejo.

Que te direi, se me interrogas?
As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam, desmancham-se.
Às vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas...
Confundiram-se.

E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
Oh, aparência...Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Voz sem pouso, no tempo surdo.

Não acuso nem perdôo.
Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?


Eu não estava presente, quando formaram
a voz tão frágil dos pássaros.

Quando as nuvens começaram a existir,
qual de nós estava presente?

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Sou uma Sombra, venho de outras eras, da escuridão do cósmico segredo, da substância de todas as substâncias, diz no monólogo Augusto dos Anjos.


Monólogo de uma sombra

Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!


A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A sáude das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!


Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente da Senectus
— Esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!


Na existência social, possuo uma arma
— O metafisicismo de Abidarma -
E trago, sem bramánicas tesouras,
Como um dorso de azémola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.


Como um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!


Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infurtúnio.


Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!


Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!


E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
O espólio dos seus dedos peçonhentos.


Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!


Será calor, causa ubíqua de gozo,
Raio X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!


E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
— Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!


A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.



É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.


E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável de micróbios!


Estoutro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.


Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E á noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.


No horror de sua anômala nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, á noite, em lúbricos arroubos,
Como no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.


Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual á luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do aríete
E os arremessos de uma catapulta.


Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descamada de um duende,
Que tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!


Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epiléticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.


É o despertar de um povo subterrâneo!
E a fauna cavernícola do crânio
— Macbetbs da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sangüinárias
Que ele tem praticado na família.


As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!


Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!


Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de urna esfera opaca.


Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!


Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.


Continua o martírio das criaturas:
— O homicídio nas vielas mais escuras,
— O ferido que a hostil gleba atra escarva,
— O último solilóquio dos suicidas
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!"


Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora do sarcasmo!


Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.


E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça

Reverta à quietação da treva espessa

E à palidez das fotosferas mortas!


Augusto dos Anjos

(1884-1914)


Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

quarta-feira, novembro 21, 2007

Para João Cabral, catar feijão se limita com escrever. Jogam-se os grãos na água do alguidar, as palavras na folha de papel e fora o que boiar.


Catar Feijão


Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebra dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco....

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em


Senhor, que perdão tem o meu amigo por tão clara aventura, mas tão dura? Ele não está mais comigo, nem com Tigo, sofre em versos Mário Faustino.


Balada


(em memória do poeta suicida)

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sol da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura).

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência , mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares - tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem com Tigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura.

Mario Faustino
(1930-1962)

Mais sobre Mario Faustino em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mario_faustino

terça-feira, novembro 20, 2007

Thiago de Mello não aprende a lição de conviver no mundo feroz dos homens. Frente ao poder que se alimenta da fome dos humilhados, ele não se submete.


Não aprendo a lição

A lição de conviver,

senão de sobreviver

no mundo feroz dos homens,

me ensina que não convém

permitir que o tempo injusto

e a vida iníqua me impeçam

de dormir tranquilamente.

Pois sucede que não durmo.

Frente à verdade ferida

pelos guardiães da injustiça,

ao escárnio da opulência

e o poderio dourado

cujo esplendor se alimenta

da fome dos humilhados,

o melhor é acostumar-se,

o mundo foi sempre assim.

Contudo, não me acostumo.

A lição persiste sábia:

convém cabeça, cuidado,

que as engrenagens esmagam

o sonho que não se submete.

E que a razão prevaleça

vigilante e não conceda

espaços para a emoção.

Perante a vida ofendida

não vale a indignação.

Complexas são as causas

do desamparo do povo.

Mas não aprendo a lição.

Concedo que me comovo.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello


Mais sobre Thiago de Mello em

Em versos, Manoel de Barros nos mostra tudo o que é preciso saber para se apalpar as intimidades do mundo. Porque maior que o infinito é a encomenda.


Uma didática da invenção

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que

flui entre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.

etc

etc

etc

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.

Dar ao pente funções de não pentear. Até que

ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou

Uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.

III

Repetir repetir – até ficar diferente.

Repetir é um dom do estilo.

IV

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava

escrito:

Poesia é quando a tarde está competente para dálias.

É quando

Ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa.

É quando um trevo assume a noite

E um sapo engole as auroras.

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas

por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a voz dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um

verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

de fazer nascimentos –

O verbo tem que pegar delírio.

VIII

Um girassol se apropriou de Deus: foi em

Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso

partir de um torpor animal de lagarto às

3 horas da tarde, no mês de agosto.

Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer

em nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até

o mato sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X

Não tem altura o silêncio das pedras.

XI

Adoecer de nós a Natureza:

- Botar aflição nas pedras

(Como fez Rodin).

XII

Pegar no espaço contiguidades verbais é o

mesmo que pegar mosca no hospício para dar

banho nelas.

Essa é uma prática sem dor.

É como estar amanhecido a pássaros.

Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode

modificar os seus gorjeios.

XIII

As coisas não querem mais ser vistas por

pessoas razoáveis:

Elas desejam ser olhadas de azul –

Que nem uma criança que você olha de ave.

XIV

Poesia é voar fora da asa.

XV

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o

Abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de

um primal deixe um termo erudito. Aplique na

aridez intumescências. Encoste um cego ao

sublime. E no solene um pênis sujo.

XVI

Entra um chamejamento de luxúria em mim:

Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda

a espessura de sua boca!

Agora estou varado de entremências.

(Sou pervertido pelas castidades? Santificado

pelas imundícias?)

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

XVII

Em casa de caramujo até o sol encarde.

XVIII

As coisas da terra lhe davam gala.

Se batesse um azul no horizonte seu olho

entoasse.

Todos lhe ensinavam para inútil

Aves faziam bosta nos seus cabelos.

XIX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa

era a imagem de um vidro mole que fazia uma

volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta

que o rio faz por trás de sua casa se chama

enseada.

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.

XX

Lembro um menino repetindo as tardes naquele

quintal.


XXI

Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.

Sou um sujeito letrado em dicionários.

Não tenho que 100 palavras.

Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais

ou no Viterbo –

A fim de consertar a minha ignorãça,

mas só acrescenta.

Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:

- Ser ou não ser, eis a questão.

Ou na porta dos cemitérios:

- Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.

Ou no verso das folhinhas:

- Conhece-te a ti mesmo.

Ou na boca do povinho:

- Coisa que não acaba no mundo é gente besta

e pau seco.

Etc

Etc

Etc

Maior que o infinito é a encomenda.

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em

segunda-feira, novembro 19, 2007

O Outono toca realejo no pátio da minha vida. E os caminhos do Outono vão dar em parte alguma, lamenta em versos Mario Quintana.


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Canção de outono

O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte alguma!


Mario Quintana

(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Ana Cristina César tarde aprendeu que bom mesmo é dar a alma como lavada. Porque não há razão para conservar um fiapo de noite velha.


O Homem Público N. 1 (Antologia)

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Ana Cristina César
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina César em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

domingo, novembro 18, 2007

Fernando Pessoa & Francis Hime, em "Glosa", por Francis & Olivia Hime.


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Glosa

Quem me roubou a minha dor antiga,

E só a vida me deixou por dor?

Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,

Me deixou só no fogo e no torpor?

Quem fez a fantasia minha amiga,

Negando o fruto e emurchecendo a flor?

Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga

A seu infiel e irreal sabor...

Quem me dispôs para o que não pudesse?

Quem me fadou para o que não conheço

Na teia do real que ninguém tece?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava

E me deu só a vida em que me esqueço,

Onde a minha saudade a cor se trava?

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_pessoa

O mundo quer-me mal porque ninguém tem asas como eu tenho. Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém, diz em seus versos de orgulho Florbela Espanca.


Versos de orgulho

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além ...
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo? O que é o mundo, ó meu Amor?
O jardim dos meus versos todo em flor ...
A seara dos teus beijos, pão bendito ...

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços ...
São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_espanca

sábado, novembro 17, 2007

Para Vinicius de Moraes, a vida do poeta tem um ritmo diferente. Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu.


O poeta

A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.

Ele é o etemo errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora.
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri.
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
A sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.

A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Sede assim, qualquer coisa, serena, isenta, fiel. Não como o resto dos homens, como nos diz em seus versos Cecília Meireles.


Sugestão

Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.

Cecília Meireles

(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

sexta-feira, novembro 16, 2007

Vamos, não chores, a vida não se perdeu, o coração continua e tens um cão. Algumas palavras duras te golpearam, nunca cicatrizaram, mas e o humor?



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Consolo na praia

Vamos, não chores
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizaram.
Mas, e o humor?

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

O poema me levará no tempo quando eu já não for eu. E mesmo que eu morra, encontrará uma praia onde quebrar as suas ondas, diz Sophia de Melo Breyner.


Poema


O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

quinta-feira, novembro 15, 2007

Quando a Indesejada das gentes chegar, talvez eu tenha medo, talvez sorria.Mas pode a noite descer, encontrará cada coisa em seu lugar, diz Bandeira.


Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Na memória de José Saramago, há um rio onde navegam os barcos da infância. E tudo quanto é rio abre no canto que conta do retrato a velha história.


Retrato do poeta quando jovem


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De
ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

José Saramago

Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

quarta-feira, novembro 14, 2007

Adélia Prado lamenta seus pais não terem mais os olhos sobre ela.Mas dentro dela eles respondem - porque o zelo do espírito é sem meiguices - Ôôôifia.


Poema esquisito

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra que, se para chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em


Por que esperas para sair ao encontro da vida? És louco, se ignoras que o destino, por vezes, se confunde com a brevidade do verso, diz Nuno Júdice.


Carpe diem


Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

terça-feira, novembro 13, 2007

Para Mario Quintana, a vida é tão bela que chega a dar medo. E diz: adolescente, olha, a vida é nova e anda nua, vestida apenas com o teu desejo.


O adolescente

A vida é tão bela que chega a dar medo.

Não o medo que paralisa e gela,
estátua súbita,
mas

esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz
o jovem felino seguir para a frente farejando o vento
ao sair, a primeira vez, da gruta.

Medo que ofusca: luz!

Cumplicemente,
as folhas contam-te um segredo
velho como o mundo:

Adolescente, olha! A vida é nova...
A vida é nova e anda nua
- vestida apenas com o teu desejo!

Mario Quintana

(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Depois de atingir o reino das imagens, da despalavra, para Manoel de Barros os poetas podem refazer o mundo. Por imagens, por eflúvios, por afeto.


Despalavra

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas.

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros.

Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapos.

Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvores.

Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.

Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas.

Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas.

Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos.

Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos.

Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto.

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_barros

segunda-feira, novembro 12, 2007

Ricardo Reis & Sueli Costa, em "Segue o teu destino", canta Nana Caymmi.



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Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1988-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, novembro 11, 2007

Olha para mim, amor, olha para mim, meus olhos andam doidos por te olhar, suplica cega de paixão Florbela Espanca.


Súplica

Olha pra mim, amor, olha pra mim;
Meus olhos andam doidos por te olhar!
Cega-me com o brilho de teus olhos
Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arrninho imaculado
Duma brancura casta que entontece;
Tua linda cabeça loira e bela
Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas
Feito de fios brilhantes d'astros belos
Pisa o manto real de negras trevas
Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho
Quando os cerro de leve, docemente...
Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te
Nessa cadeia assim eternamente! ...

Vem para mim,amor...Ai não desprezes
A minha adoração de escrava louca!
Só te peço que deixes exalar
Meu último suspiro na tua boca!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

sábado, novembro 10, 2007

Em sua ode, Vinicius de Moraes espanta a São Francisco, a Deus e ao mundo. Para ele, a vida não tem solução, ele morrerá, e os que o virem, sorrirão.


A espantosa ode a São Francisco de Assis

1


Meu são Francisco de Assis, Francisco de Assim, poverello, ou como te chame a sabedoria dos povos e dos homens
Este é Vinicius de Moraes, de quem se podia dizer – o poeta – se jamais alguém o pudesse ser depois de ti.

2


Este é o impuro, o inconstante, o trágico, o leproso e possivelmente o morto
Que vem a ti o fiel, o calmo, o humano, o constante.

3


Este é o que sacrifica a vida pelo prazer da hora, e se desgraça
Que vem a ti que sacrificaste a vida pela eternidade e pela graça.

4


Este é o homem da mulher, o homem da carne, o homem da terra
E que te ama santo da Mulher, santo da Carne, santo da Terra.

5


Este é o que peca e não se arrepende, o supliciador e o criador do espasmo
E que te exalta irmão humilde e louco, confidente, e inventor do êxtase.

6


Este é o mágico do desespero, o inquisidor e o sedutor, o poeta triste
Que te proclama o rei, entre todos, amante sem mácula.

7


Meu são Francisco de Assis! acolhe teu amigo e teu criado
Que partiu para sempre e se perdeu, e nunca mais foi encontrado.

8


Tenho um mistério a te dizer, mas quem sabe não o ouvirias
Vendo-me criança – se é que eu fui criança um dia!

9


Ó dá-me teu sorriso, são Francisco, e me purifica
E liberta-me da vã palavra de sonho que me impurifica!

10


Eis que converti meu demônio a mim e meu anjo a mim
E me sinto demais em mim mesmo e quisera me despedaçar em ti.

11


Porque me sinto covarde de não poder dormir e precisar fechar a porta
Ao vento frio ou ao chamado sombrio da pureza morta.

12


És tu um dom da minha miséria e serias o mesmo
Se eu fosse como tu mesmo? – e te proclamaria?

13


E [...] porque amo a miséria em mim que me deposita em ti
Porque
não fosse eu sombra não serias sol nem pensarias em mim.

14


E [ ... ] porque aceito minha depravação e faço a minha queixa sem piedade
E de todos tenho piedade menos de mim – e não há salvação para minha piedade

15


Sou digno como o animal nobre que morre em silêncio e sem lágrimas
E não tem limbo ou purgatório, céu ou inferno para a sua alma.

16


Mas sou impuro como a terra que recebe a consumação da carne
E astuto como o fogo e plástico como a água.

17


Meu são Francisco, ouve o meu voto e compreende o meu vazio
E me aquece do frio, e me protege do sonho sombrio.

18


Tu és a Palavra – a palavra inexistente – a poesia
Que eu busco sem tréguas, que busco de noite e que busco de dia.

19


Não creio em Deus mas creio em ti – Deus é minha melancolia
Tu és minha poesia – ou quando não seja o amor que ela se deseja

20


Tenho o lar e tenho o mar, e nada tenho
Tenho a emoção – tenho-a? – nem pranto mais blues.

21


Na verdade muitas coisas eu tenho, e muita razão de ser feliz
Se não existisses talvez – mas exististe, São Francisco de Assis!

22


És a infância não vivida, és a mocidade não merecida
És tudo de justo feito injusto pela catástrofe da vida.

23


Ninguém o sabe senão tu – nem mesmo eu sei! nesse momento
Meu pensamento é tédio mas amanhã pode ser contentamento.

24


Porque há em mim uma fonte pura de mal que me embriaga
De bem, mas que subitamente me estanca o que me falta.

25


É a mulher, essa que me suporta e que me acaricia
E a quem acaricio, e a quem eu rio e que se ri.

26


Não fosse ela, e eu estaria como Jó te mentindo,
Porque o poeta é a semente da mentira se, no desespero, só.

27


Dou-te meu voto além da mulher! é a criança que te fala
Quando subitamente se conheceu menino no grande silêncio de uma sala.

28


Quando brincando com o próprio sexo o surpreendeu sensível
E o viu inteligente e emocionado e não compreendeu.

29


E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer contemplativo E que se deu a ela desvairado do mistério de se saber vivo.

30


E que a transportou na memória em amor e que foi traído
Pelo toque de outra mão menos pura e mais desmerecida.

31


E que foi seviciado antes do sêmen pela desventura
Feito mulher, e a perdoou, e a amou, e a fez sua criatura.

32


E que foi iniciado nos prazeres da carne como o inocente aprendiz
A quem a mulher diz – Faz! e ele faz, tal como eu fiz.

33


Antes do sêmen! e não morri – e bela fiz minha criatura
Eis por que não há salvação e eu amo a minha degradação e impostura.

34


Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se seviciado
E o amante, se querido, e o perdido, se privilegiado.

35


Porque fazemos um – eu e a mulher – e não há dois arrependimentos
Para um só corpo – nem duas salvações para um só sentimento.

36


E se alguém não vem comigo eu não quero ir, porque não sou sozinho
E se eu fosse sozinho não estava nesse momento clamando de ti

37


Meu são Francisco de Assis! ouve tu ao menos a minha inefável miséria
Sem perdão e sem consolação e sem fim nos caminhos da Terra.

38


Ouve o apelo mais íntimo, o que não está nas minhas palavras
E que está no meu ser infeliz e no ser infeliz que eu crio à minha passagem.

39


O santo, o herói e o poeta – três penitências do mundo
Tu, santo, herói e poeta – uma penitência em mim.

40


Nunca te verei no céu, nem nunca me verás no inferno
Mas hei de te escutar no estio, e tu me escutarás no inverno.

41


Não me verás no céu porque não há paixão para a serenidade
Nem no inferno porque não há castigo para a fatalidade.

42


Mas eu te escutarei aqui na Terra, entre as grandes árvores
A cabeça no seio da amiga, e a quem eu falo como ao pássaro.

43


Um dia deixarei a cidade da minha angústia e sua torre
E irei a Assis entre colinas me abandonar à tua saudade.

44


E dá-me nesse dia de chorar todas as lágrimas contidas
E de me perder em mim o pranto e de me ajoelhar no teu sepulcro.

45


Ó grande santo louco, meu irmão, taumaturgo em minha alma
Taumaturgo – palavra que contém silêncio e que me acalma!

46


Just now I have been in a [ ... ] party in the Magdalen's cloister
And there was an Armenian [ ... ] all the others.

47


Good inocent peopte [ ... ] some liquor in their rooms
But was a bloody phantom between them, so help me God!

48


Eu sou o conhecimento perfeito das coisas e dos homens
Linchai-me! eu sei todos os segredos, e eu me abandono.

49


Nunca criatura criada foi tão pagã como eu, so help me God!
Arrastando meu ser à execração e à contemplação quieta da morte.

50


Em vão te direi – ou não? – porque não vens beber meu vinho
Na minha mesa, e poderíamos falar com mais carinho.

51


São Francisco de Assis! meu irmão, meu único inimigo
No céu, eu te maldigo, eu te bendigo. Eu me persigno!

52


Tive uma jetatura: a mulher; uma aventura: a poesia
Uma desventura: a delicadeza. Sou delicado, não peço, mendigo!

53


Mendigo: mendigo o pão de meus pais, o amor de meus amigos
Mas só a mulher me persegue e só à mulher eu persigo.

54


Santo! tenho gana de te dizer: foge de mim! evita o meu contato escuro
Porque eu sou puro na maldade e puro na sinceridade e impuro.

55


Quatro livros escrevi – e sou tão moço! e nada compreendo de mim
Senão que sou cruel com a mulher, e que minha angústia não tem fim.

56


Fui buscado, também. Buscou-me a sociedade, o anfitrião
E eu fui mendigo em meu salão e me desprezei e disse não.

57


E me mandaram a Oxford, e eu disse não, e vi jovens viscondes
Que temeram meu pudor, e eu disse não, e me persigno!

58


Tudo é magia! Lembras-te? o silêncio fantástico das noites
E a alma bêbada de emoção? e nenhum pouso.

59


Ah, que a vida não tem solução. Muitos o disseram em vão
E
o direi em vão, e morrerei, e os que me virem, sorrirão.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes