terça-feira, julho 31, 2007

Nos versos de Augusto dos Anjos, na dança da psique a carne é fogo e a alma arde. E ele sente grandes emoções de dois monstros: a alma e o instinto.


A dança da psique

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombara, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
- Mãe de esterilidades e cansaços -
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coréia
Pára. O cosmos sintético da Idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto...

Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

Augusto dos Anjos

(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Para Luiz Vaz de Camões, os bons ele sempre viu passar graves tormentos. Mas para ele, que foi mau e foi castigado, o mundo andava concertado.


Aos desconcertos do mundo


Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado

Luiz Vaz de Camões

(1524-1580)

Mais sobre Luiz Vaz de Camões em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

Por estas noites frias é que melhor se pode amar, disse Olavo Bilac à sua querida. Nelas, os céus se estendem num turbilhão de braços e seios.


Por estas noites

Por estas noites frias e brumosas
É que melhor se pode amar, querida!
Nem uma estrela pálida, perdida
Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas

Mas um perfume cálido de rosas
Corre a face da terra adormecida ...
E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas:

Sombras errantes, corpos nus, ardentes
Carnes lascivas ... um rumor vibrante
De atritos longos e de beijos quentes ...

E os céus se estendem, palpitando, cheios
Da tépida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.

Olavo Bilac

(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

segunda-feira, julho 30, 2007

No mundo do sertão de Ariano Suassuna, no campo rubro, a Asma azul da vida. E à cruz do Azul, o Mal se desmantela.


O Mundo do Sertão

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.

Ariano Suassuna
(1927)

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Para Augusto Frederico Schmidt, poesia e amor fugiram do mundo. Restam a vida que é preciso viver e a necessidade da poesia que é preciso contentar.


Vazio

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

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Quando o olhar advinhando a vida prende-se a outro olhar de criatura, o tempo incide incerto sem medida, nos versos de Paulo Mendes Campos.


Amor condusse noi ad nada


Quando o olhar advinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito que estremece
O rosto a outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

domingo, julho 29, 2007

Alberto Caeiro sabia que se morresse novo, mesmo que os seus versos nunca fossem impressos, eles lá teriam a sua beleza, se fossem belos.


Se eu morrer novo

Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão -
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraido.

Alberto Caeiro,um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Pablo Neruda, em “Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema XV", por ele mesmo.



Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema XV

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza :
déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda

(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Com as perguntas de um operário que lê, Bertolt Brecht deixa muitas interrogações para serem pensadas por todos os que ainda acreditam na Humanidade.


Perguntas de um operário que lê

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
foram os seus pedreiros? A grande Roma
está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
só tinha palácios
para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
na noite em que o mar a engoliu
viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou, Felipe de Espanha
chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos.
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias.
Quantas perguntas.

Bertolt Brecht

(1888-1956)

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sexta-feira, julho 27, 2007

A noite passa noivando enquanto caem ondas de luar. No canto de Florbela Espanca, lá também passa a doida, cantando que mais parece chorar.


A doida


A Noite passa, noivando.
Caem ondas de luar.
Lá passa a doida cantando
Num suspiro doce e brando
Que mais parece chorar!

Dizem que foi pela morte
D´alguém, que muito lhe quis,
Que endoideceu. Triste sorte!
Que dor tão triste e tão forte!
Como um doido é infeliz!

Desde que ela endoideceu,
(Que triste vida, que mágoa!)
Pobrezinha, olhando céu,
Chama o noivo que morreu
Com os olhos rasos d´água!

E a noite passa, noivando.
Passa noivando o luar:
“Num suspiro doce e brando,
Podre doida vai cantando
Que esse teu canto, é chorar!”

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Hilda Hilst sofre com a aflição de não ser outra. De não ser a grande ilha, de ser água em meio à terra e, de amar o seu amor, se isso o comove.



Aflição de ser eu e não ser outra

Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Em seus versos, Sofia de Mello Breyner grita que o nosso tempo é pecado organizado.


Cantata da paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobre a lamentação
Dos povos destruidos
Dos povos destruçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado

Sofia de Mello Breyner

(1919-2004)

Mais sobre Sofia de Mello Breyner em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

quinta-feira, julho 26, 2007

Ferreira Gullar fala de coisas que estão entre o céu e a terra. Mas é nelas que ele vê pulsando, mundo novo, ainda em estado de soluços e esperanças.


Coisas da Terra

Todas as coisas de que falo estão na cidade
entre o céu e a terra.
São todas elas coisas perecíveis
e eternas como o teu riso
a palavra solidária
minha mão aberta
ou este esquecido cheiro de cabelo
que volta
e acende sua flama inesperada
no coração de maio.

Todas as coisas de que falo são de carne
como o verão e o salário.
Mortalmente inseridas no tempo,
estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.

São coisas, todas elas,
cotidianas, como bocas
e mãos, sonhos, greves,
denúncias,
acidentes do trabalho e do amor. Coisas, de que falam os jornais
às vezes tão rudes
às vezes tão escuras
que mesmo a poesia as ilumina com dificuldade.

Mas é nelas que te vejo pulsando,
mundo novo,
ainda em estado de soluços e esperança.

Ferreira Gullar

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Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim, lamenta em seus versos Mário de Sá Carneiro.


Dispersão


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo.

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas p'ra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

.......................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
.......................................


Mário de Sá Carneiro
(1890-1916)


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Na angústia de Murilo Mendes, é necessário morrer de tristeza e de nojo. E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.


Angústia e reação


Há noites intransponíveis,
Há dias em que pára nosso movimento em Deus,
Há tardes em que qualquer vagabunda
Parece mais alta do que a própria musa.
Há instantes em que um avião
Nos parece mais belo que um mistério de fé,
Em que uma teoria política
Tem mais realidade que o Evangelho.
Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito;
O tempo sobrepõe-se à idéia do eterno.
É necessário morrer de tristeza e de nojo
Por viver num mundo aparentemente abandonado por Deus,
E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.
É necessário multiplicar-se em dez, em cinco mil.
É necessário chicotear os que profanam as igrejas
É necessário caminhar sobre as ondas.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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quarta-feira, julho 25, 2007

Mario Quintana sabia que os caminhos estão cheios de tentações. E que a Noite negra, demoradamente, aperta o mundo entre os seus joelhos.


Os caminhos estão cheios de tentações

Os caminhos estão cheios de tentações.
Os nossos pés arrastam-se na areia lúbrica...
Oh! tomemos os barcos das nuvens!
Enfunemos as velas dos ventos!
Os nossos lábios tensos incomodam-nos como estranhas mordaças.
Vamos! vamos lançar no espaço - alto, cada vez mais alto! - a rede das estrelas...
Mas vem da terra, sobe da terra, insistente, pesado,
Um cheiro quente de cabelos...
A Esfinge mia como uma gata.
E o seu grito agudo agita a insônia dos adolescentes pálidos,
O sono febril das virgens nos seus leitos.
De que nos serve agora o Cristo do Corcovado?!
Há um longo, um arquejante frêmito nas palmeiras, em torno...
A Noite negra, demoradamente,
Aperta o mundo entre os seus joelhos.

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana




Cora não sabia se a vida era curta ou longa demais pra nós. Mas sabia que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.


Não Sei


Não sei ... se a vida é curta
ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita.

Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja curta,
nem longa demais
Mas que seja intensa
Verdadeira, pura ...
Enquanto durar.

Cora Coralina
(1889-1985)

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Em pleno fragor da Revolução de Outubro, Vladimir Mayakovsky encontrava momentos para o lirismo de sua poesia.


Nacos de nuvem

No céu flutuavam trapos
de nuvem - quatro farrapos;
do primeiro ao terceiro - gente;
o quarto - um camelo errante.
A ele, levado pelo instinto,
no caminho junta-se um quinto.
Do seio azul do céu, pé-ante-
pé, se desgarra um elefante.
Um sexto salta - parece.
Susto: o grupo desaparece.
E em seu rasto agora se estafa
o sol - amarelo girafa.

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

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terça-feira, julho 24, 2007

Tua boca, teus seios, teu ventre, tudo é dele quando ele bem quer. Só não é dele a tua tristeza, porque ele não a quer, diz Manuel Bandeira à amiga.


Carinho Triste


A tua boca ingênua e triste
E voluptosa, que eu saberia fazer
Sorrir em meio dos pesares e chorar em meio das alegrias,
A tua boca ingênua triste
É dele quando ele bem quer.
Os teus seios miraculosos,
Que amamentaram sem perder
O precário frescor da pubescência.
Teus seios, que são como os seios intactos das virgens,
São dele quando ele bem quer.

O teu claro ventre,
Onde como no ventre da terra ouço bater
O mistério de novas vidas e de novos pensamentos,
Teu ventre, cujo contorno tem a pureza da linha do mar e céu ao pôr do sol,
É dele quando ele bem quer.

Só não é dele a tua tristeza.
Tristeza dos que perderam o gosto de viver.
Dos que a vida traiu impiedosamente.
Tristeza de criança que se deve afagar e acalentar.
(A minha tristeza também!...)
Só não é dele a tua tristeza, ó minha triste amiga!
Porque ele não a quer.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Em seus versos, Menotti del Picchia pergunta: que sabes tu do fim? E sugere: não importa a rota, voa e canta, enquanto resistirem as asas.


O vôo



Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti.
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo.

Que sabes tu do fim?
Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas.

Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão,
se pressentires que amanhã estarás mudo,
esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta.

Canta!
Canta para conservar uma ilusão de festa e de vitória.

Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro.

Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo.
Rumo do céu?

Que importa a rota.
Voa e canta, enquanto resistirem as asas.

Menotti Del Picchia
(1892-1988)

Quando o equilíbrio se desfaz, segundo Thiago de Mello, nenhum estrondo turva o sossego do mundo. E o mistério da vida se irmana ao mistério da morte.


Fim de mundo


Como em dia qualquer, a vida avança.
Eis quando, sem motivo, se enfraquece
a rigidez geométrica do espaço.
Súbito o sol estanca o seu girar
e se eterniza em puro meio-dia.
Noites, contudo várias, simultâneas
irrompem dos abismos; outras luas
derramam seu palor - maciamente
o equilíbrio do mundo se desfaz.

Nenhum estrondo turva, todavia,
o sossego do mundo em seu desfecho,
e a paisagem terrestre pouco sofre.
Os templos não desabam, edifícios
permanecem erguidos, e das torres
a sombra invade a rua, cautelosa;
não se interrompe o florescer nos campos.
Apenas, vagarosa, já se escoa
dos seres a substância que os anima.
Os pássaros se esquecem dos seus cantos,
os cavalos, aflitos, se prosternam,
e dos olhos dos bois vai se apagando
a solene humildade; silenciosa
uma estéril brandura envolve as feras.

À terra o mar devolve os seus defuntos,
mas rejeita-os a terra. Já são muitos
aqueles que fugiram de seus túmulos
e em confusa linguagem se interpelam
ante o assombro do vivo face à morte.

O assombro mesmo é curto: se dissolve
quando o barro que deu aos seres forma,
e trânsito aos amores e desejos,
vazio dos adornos incorpóreos
então se abraça à argila primitiva.
Sobra dos homens algo sobre o mundo
- pasto do tempo: as vestes e os sapatos.

A pena de existir logo abandona
o murcho coração das criaturas
e vai pousar agreste sobre as pedras
e as pedras se interrogam, conturbadas.
O mistério da vida enfim se irmana
ao mistério da morte: assim fraternos
emigram do terreno, sobrepairam,
escarnecem dos seres dissipados
e aos poucos vão tecendo a nebulosa,
berço talvez do próximo universo.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

domingo, julho 22, 2007

Quem me dera amar-te, quem me dera ver-te, quem me dera ter-te. Para eu morar-te, morar-te até morrer-te, suplica Vinicius de Moraes ao seu amor.



Blue Nude, de Pablo Picasso



O Mais-que-perfeito


Ah, quem me dera ir-me
Contigo agora
Para um horizonte firme
(Comum, embora...)
Ah, quem me dera ir-me !
Ah, quem me dera amar-te
Sem mais ciúmes
De alguém em algum lugar
Que não presumes...
Ah, quem me dera amar-te !
Ah, quem me dera ver-te
Sempre ao meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais : cuidado...
Ah, quem me dera ver-te !
Ah, quem me dera ter-te
Como um lugar
Plantado num chão verde
Para eu morar-te
Morar-te até morrer-te...


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Na viagem que faz com o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, ninguém cantou a beleza e a miséria de sua terra como João Cabral de Melo Neto


O Rio
ou Relação da viagem que faz o Capibaribe de
sua nascente à cidade do Recife.


Da lagoa de Estaca a Apolinário

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
entre caraibeiras
de que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar).

Deste tudo que me lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

Notícia do Alto Sertão

Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.

A estrada da Ribeira

Como aceitara ir
no meu destino de mar,
preferi essa estrada,
para lá chegar,
que dizem da ribeira
e à costa vai dar,
que deste mar de cinza
vai a um mar de mar;
preferi essa estrada
de muito dobrar,
estrada bem segura
que não tem errar
pois é a que toda a gente
costuma tomar
(na gente que regressa
sente-se cheiro de mar).

De Apolinário a Poço Fundo

Para o mar vou descendo
por essa estrada da ribeira.
A terra vou deixando
de minha infância primeira.
Vou deixando uma terra
reduzida à sua areia,
terra onde as coisas vivem
a natureza da pedra.
À mão direita os ermos
do Brejo da Madre de Deus,
Taquaritinga à esquerda,
onde o ermo é sempre o mesmo.
Brejo ou Taquaritinga,
mão direita ou mão esquerda,
vou entre coisas poucas
e secas além de sua pedra.
Deixando vou as terras
de minha primeira infância.
Deixando para trás
os nomes que vão mudando.
Terras que eu abandono
porque é de rio estar passando.
Vou com passo de rio,
que é de barco navegando.
Deixando para trás
as fazendas que vão ficando.
Vendo-as, enquanto vou,
parece que estão desfilando.
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando.

Os rios

Os rios que eu encontro
vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.

De Poço Fundo a Couro d'Anta

A gente não é muita
que vive por esta ribeira.
Vê-se alguma caieira
tocando fogo ainda mais na terra;
vê-se alguma fazenda
com suas casas desertas:
vêm para a beira da água
como bichos com sede.
As vilas não são muitas
e quase todas estão decadentes.
Constam de poucas casas
e de uma pequena igreja,
como, no itinerário,
já as descrevia Frei Caneca.
Nenhuma tem escola;
muito poucas possuem feira.

As vilas vão passando
com seus santos padroeiros.
Primeiro é Poço Fundo,
onde Santo Antônio tem capela.
Depois é Santa Cruz
onde o Senhor Bom Jesus se reza.
Toritama, antes Tôrres,
fez para a Conceição sua igreja.
A vila de Capado
chama-se pela sua nova capela.
Em Topada, a igreja
com um cemitério se completa.
No lugar Couro d'Anta,
a Conceição também se celebra.
Sempre um santo preside
à decadência de cada uma delas.

A estrada da Paraíba

Depois de Santa Cruz,
que agora é Capibaribe,
encontro uma outra estrada
que desce da Paraíba.
Saltando o Cariri
e a serra de Taquaritinga,
na estrada da ribeira
ela deságua como num rio.
Juntos, na da ribeira,
continuamos, a estrada e o rio,
agora com mais gente:
a que por aquela estrada descia.
Lado a lado com gente
viajamos em companhia.
Todos rumo do mar
e do Recife esse navio.

Na estrada da ribeira
até o mar ancho vou.
Lado a lado com gente,
no meu andar sem rumor.
Não é estrada curta,
mas é a estrada melhor,
porque na companhia
de gente é que sempre vou.
Sou viajante calado,
para ouvir histórias bom,
a quem podeis falar
sem que eu tente me interpor;
junto de quem podeis
pensar alto, falar só.
Sempre em qualquer viagem
o rio é o companheiro melhor.

Do riacho as Éguas ao ribeiro do Mel

Caruaru e Vertentes
na outra manhã abandonei.
Agora é Surubim,
que fica do lado esquerdo.
A seguir João Alfredo,
que também passa longe e não vejo.
Enquanto na direita
tudo são terras de Limoeiro.
Meu caminho divide,
de nome, as terras que desço.
Entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
A mesma dor calada,
o mesmo soluço seco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.

Coronéis padroeiros
vão desfilando com cada vila.
Passam Cheos, Malhadinha,
muito pobres e sem vida.
Depois é Salgadinho
com pobre águas curativas.
Depois é São Vicente,
muito morta e muito antiga.
Depois, Pedra Tapada,
com poucos votos e pouca vida.
Depois é Pirauíra,
é um só arruado seguido,
partido em muitos nomes
mas todo ele pobre e sem vida
(que só há esta resposta
à ladainha dos nomes dessas vilas).

Terras de Limoeiro

Vou na mesma paisagem
reduzida à sua pedra.
A vida veste ainda
sua mais dura pele.
Só que aqui há mais homens
para vencer tanta pedra,
para amassar com sangue
os ossos duros desta terra.
E se aqui há mais homens,
esses homens melhor conhecem
como obrigar o chão
com plantas que comem pedra.
Há aqui homens mais homens
que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra.

Dias depois, Limoeiro,
cortada a faca na ribanceira.
É a cidade melhor,
tem cada semana duas feiras.
Tem a rua maior,
tem também aquela cadeia
que Sebastião Galvão
chamou de segura e muito bela.
Tem melhores fazendas,
tem inúmeras bolandeiras
onde trabalha a gente
para quem se fez aquela cadeia.
Tem a igreja maior,
que também é a mais feia,
e a serra do Urubu
onde desses símbolos negros.

Porém bastante sangue
nunca existe guardado em veias
para amassar a terra
que seca até sua funda pedra.
Nunca bastantes rios
matarão tamanha sede,
ainda escancarada,
ainda sem fundo e de areia.
Pois, aqui, em Limoeiro,
com seu trem, sua ponte de ferro,
com seus algodoais,
com suas carrapateiras,
persiste a mesma sede,
ainda sem fundo, de palha ou areia,
bebendo tantos riachos
extraviados pelas capoeiras.

De Limoeiro a Ilhetas

Deixando vou agora
esta cidade de Limoeiro.
Passa Ribeiro Fundo
onde só vivem ferreiros,
gente dura que faz
essas mãos mais duras de ferro
com que se obriga a terra
a entregar seu fruto secreto.
Passa depois Boi-Sêco,
Feiticeiro, Gameleira, Ilhetas,
pequenos arruados
plantados em terra alheia,
onde vivem as mãos
que calçando as outras, de ferro,
vão arrancar da terra
os alheios frutos do alheio.

O trem de ferro

Agora vou deixando
o município de Limoeiro.
Lá dentro da cidade
havia encontrado o trem de ferro.
Faz a viagem do mar
mas não será meu companheiro,
apesar dos caminhos
que quase sempre vão paralelos.
Sobre seu leito liso,
com seu fôlego de ferro,
lá no mar do Arrecife
ele chegará muito primeiro.
Sou um rio de várzea,
não posso ir tão ligeiro.
Mesmo que o mar os chame,
os rios, como os bois, são ronceiros.

Outra vez ouço o trem
ao me aproximar de Carpina.
Vai passar chã, lá por cima.
Detém-se raramente,
pois que sempre está fugindo,
esquivando apressado
as coisas de seu caminho.
Diversa da dos trens
é a viagem que fazem os rios:
convivem com as coisas
entre as quais vão fluindo;
demoram nos remansos
para descansar e dormir;
convivem com a gente
sem se apressar em fugir.

Encontro com o canavial

No outro dia deixava
o Agreste, na Chã do Carpina.
Entrava por Paudalho,
terra já de cana e de usinas.
Via plantas de cana
com sua cabeleira, ou crina,
muita folha de cana
com sua lâmina fina,
muita soca de cana
com sua aparência franzina,
e canas com pendões
que são as canas maninhas.
Como terras de cana,
são muito mais brandas e femininas.
Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.

Outros rios

Foram terras de engenho,
agora são terras de usina.
É o que contam os rios
que vou encontrando por aqui.
Rios bem diferentes
daqueles que já viajam comigo.
E estes também abraço
com abraço líquido e amigo.
Os primeiros porém
nenhuma palavra respondiam.
Debaixo do silêncio
eu não sei o que traziam.
Nenhum deles também
antecipar sequer parecia
o ancho mar do Recife
que os estava aguardando um dia.

Primeiro é o Petribu,
que trabalha para uma usina.
Trabalham para engenhos
o Apuá e o Cursaí.
O Cumbe e o Cajueiro
cresceram, como o Camilo,
entre cassacos do eito,
no mesmo duro serviço.
Depois é o Muçurepe,
que trabalha para outra usina.
Depois vem o Goitá,
dos lados da Chã da Alegria.
Então, o Tapacurá,
dos lados da Luz, freguesia
da gente do escrivão
que foi escrevendo o que eu dizia.

Conversa de rios

Só após algum caminho
é que alguns contam seu segredo.
Contam porque possuem
aquela pele tão espessa;
por que todos caminham
com aquele ar descalço de negros;
por que descem tão tristes
arrastando lama e silêncio.
A história é uma só
que os rios sabem dizer:
a história dos engenhos
com seus fogos a morrer.
Nelas existe sempre
uma usina e uma bangüê:
a usina com sua boca,
com suas várzeas o bangüê.

A usina possui sempre
uma moenda de nome inglês;
o engenho, só a terra
conhecida como massapê.
E o que não pode entrar
nas moendas de nomes inglês
a usina vai moendo
com muitos outros meios de moer.
A usina tem urtigas,
a usina tem morcegos,
que ela pode soltar
como amestrados exércitos
para ajudar o tempo
que vai roendo os engenhos,
como toda já roeu
a casa-grande do Poço do Aleixo.

Do Petribu ao Tapacurá

As coisas são muitas
que vou encontrando neste caminho.
Tudo planta de cana
nos dois lados do caminho;
e mais plantas de cana
nos dois lados dos caminhos
por onde os rios descem
que vou encontrando neste caminho;
e outras plantas de cana
há nas ribanceiras dos outros rios;
que estes encontraram
antes de se encontrarem comigo.
Tudo planta de cana
e assim até o infinito;
tudo planta de cana
para uma sô boca de usina.

As casas não são muitas
que por aqui tenho encontrado
( os povoados são raros
que a cana não tenha expulsado).
Poucas tem Rosarinho
e Destêrro, que está pegado.
Paudalho, que é maior,
está menos ameaçada,
Paudalho essa cidade
construída dentro de um valado,
com sua ponde de ferro
que eu atravesso de um salto.
Santa Rita é depois,
onde os trens fazem parada:
só com medo dos trens
é que o canavial não a assalta.

Descoberta da Usina

Até este dia, usinas
eu não havia encontrado.
Petribu, Muçurepe,
para trás tinham ficado,
porém o meu caminho
passa por ali muito apressado.
De usina eu conhecia
o que os rios tinham contado.
Assim, quando da Usina
eu me estava aproximando,
tomei caminho outro
do que vi o trem tomar:
tomei o da direita,
que a cambiteira vi tomar,
pois eu queria a Usina
mais de perto examinar.

Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado.

Muitos engenhos mortos
haviam passado no meu caminho.
De porteira fechada,
quase todos foram engolidos.
Muitos com suas serras,
todos eles com seus rios,
rios de nome igual
como crias de casa, ou filhos.
Antes foram engenhos,
poucos agora são usinas.
Antes foram engenhos,
agora são imensos partidos.
Antes foram engenhos
com suas caldeiras vivas;
agora são informes
partidos que nada identifica.

Encontro com a Usina

Mas nas Usina é que vi
aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou;
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas que devorar mandou.

Na vila da Usina

é que fui descobrir a gente
que as canas expulsaram
das ribanceiras e vazantes;
e que essa gente mesma
na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente;
que mastigam a cana
que mastigou anteriormente
as moendas dos engenhos
que mastigavam antes outra gente;
que nessa gente mesma,
nos dentes fracos que ela arrenda,
as moendas estrangeiras
sua força melhor assentam.

Por esta grande usina
olhando com cuidado vou,
que esta foi a usina
que toda esta mata dominou.
Numa usina se aprende
como a carne mastiga o osso,
se aprende como mãos
amassam a pedra, o caroço;
numa usina se assiste
à vitória, de dor maior,
de brando sobre o duro,
do grão amassando a mó;
numa usina se assiste
à vitória maior e pior,
que é a da pedra curta
furada de suor.

Para trás vai ficando
a triste povoação daquela usina
onde vivem os dentes
com que a fábrica mastiga.
Dentes frágeis, de carne,
que não duram mais de um dia;
dentes são que se comem
ao mastigar para a Companhia;
de gente que, cada ano,
o tempo da safra é que vive,
que, na braça da vida,
tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço
enquanto por ali discorria;
vi homens de bagaço
que morte úmida embebia.

E vi todas as mortes
em que esta gente vivia:
vi a morte por crime,
pingando a hora da vigia;
a morte por desastre,
com seus gumes tão precisos,
como um braço se corta,
cortar bem rente muita vida;
via morte por febre,
precedida de seu assovio,
consumir toda a carne
com um fogo que por dentro é frio.
Ali não é a morte
de planta que seca, ou de rio:
é morte que apodrece,
ali natural, que visto.

Da Usina a São Lourenço da Mata

Agora vou deixando
a povoação daquela usina.
Outra vez vou baixando
entre infindáveis partidos;
entre os mares de verde
que sabe pintar Cícero Dias,
pensando noutro engenho
devorado por outra usina;
entre colinas mansas
de uma terra sempre em cio,
que o vento, com carinho,
penteia, como se sua filha.
Que nem ondas de mar,
multiplicadas, elas se estendiam;
como ondas do mar de mar
que vou conhecer um dia.

À tarde deixo os mares
daquela usina de usinas;
vou entrando nos mares
de algumas outras usinas.
Sei que antes esses mares
inúmeros se dividiam
até que um mar mais forte
os mais fracos engolia
(hoje só grandes mares
a Mata inteira dominam).
Mas o mar obedece
a um destino sem divisa,
e o grande mar de cana,
como o verdadeiro, algum dia,
será uma só água
em toda esta comum cercania.


De São Lourenço à Ponte de Prata


Vou pensando no mar
que daqui ainda estou vendo;
em toda aquela gente
numa terra tão viva morrendo.
Através deste mar
vou chegando a São Lourenço,
que de longe é como ilha
no horizonte de cana aparecendo;
através deste mar,
como um barco na corrente,
mesmo sendo eu o rio,
que vou navegando parece.
Navegando este mar,
até o Recife irei,
que as ondas deste mar
somente lá se detêm.

Ao entrar no Recife,
não pensem que entro só.
Entra comigo a gente
que comigo baixou
por essa velha estrada
que vem do interior;
entram comigo rios
a quem o mar chamou,
entra comigo a gente
que com o mar sonhou,
e também retirantes
em que só o suor não secou;
e entra essa gente triste,
a mais triste que já baixou,
a gente que a usina,
depois de mastigar, largou.

Entra a gente que a usina
depois de mastigar largou;
entra aquele usineiro
que outro maior devorou;
entra esse bangüezeiro
reduzido a fornecedor;
entra detrás um destes,
que agora é um simples morador;
detrás, o morador
que nova safra já não fundou;
entra, como cassaco,
esse antigo morador;
entra enfim o cassaco
que por todas aquelas bocas passou.
Detrás de cada boca,
ele vê que há uma boca maior.


Da Ponte de Prata a Caxangá


A gente das usinas
foi mais um afluente a engrossar
aquele rio de gente
que vem de além do Jacarará.
Pelo mesmo caminho
que venho seguindo desde lá,
vamos juntos, dois rios,
cada um para seu mar.
O trem outro caminho
tomou na Ponte de Prata;
foi por Tijipió
e pelos mangues de Afogados.
Sempre com retirantes,
vou pela Várzea e por Caxangá
onde as últimas ondas
de cana se vêm espraiar.


Entra-se no Recife
pelo engenho São Francisco.
Já em terras da Várzea,
está São João, uma antiga usina.
Depois se atinge a Várzea,
a vila pròpriamente dita,
com suas árvores velhas
que dão uma sombra também antiga.
A seguir, Caxangá,
também velha e recolhida,
onde começa a estrada
dita Nova, ou de Iputinga,
que quase reta à cidade,
que é o mar a que se destina,
leva a gente que veio
baixando em minha companhia.

Vou deixando à direita
aquela planície aterrada
que desde os pés de Olinda
até os montes Guararapes,
e que de Caxangá
até o mar oceano,
para formar o Recife
os rios vão sempre atulhando.
Com água densa de terra
onde muitas usinas urinaram,
água densa de terra
e de muitas ilhas engravidada.
Com substância de vida
é que os rios a vão aterrando,
com esse lixos de vida
que os rios viemos carreando.

De Caxangá a Apipucos

Até aqui as últimas
ondas de cana não chegam.
Agora o vento sopra
em folhas de um outro verde.
Folhas muito mais finas
as brisas daqui penteiam.
São cabelos de moças
ou dos bacharéis em direito
que devem habitar
naqueles sobrados tão pitorescos
(pois os cabelos da gente
que apodrece na lama negra
geram folhas de mangue,
que não folhas duras e grosseiras).

De Apipucos à Madalena

Agora vou entrando
no Recife pitoresco,
sentimental, histórico,
de Apipucos e do Monteiro:
do Poço da Panela,
da Casa Forte e do Caldeireiro,
onde há poças de tempo
estagnadas sob as mangueiras;
de Sant'Ana de Dentro,
das muitas olarias,
rasas, se agachando do vento.
E mais sentimental,
histórico e pitoresco
vai ficando o caminho
a caminho da Madalena.

Um velho cais roído
e uma fila de oitizeiros
há na curva mais lenta
do caminho pela Jaqueira,
onde (não mais está)
um menino bastante guenzo
de tarde olhava o rio
como se filme de cinema;
via-me, rio, passar
com meu variado cortejo
de coisas vivas, mortas,
coisas de lixo e de despejo;
vi o mesmo boi morto
que Manuel viu numa cheia,
viu ilhas navegando,
arrancadas das ribanceiras.

Vi muitos arrabaldes
ao atravessar o Recife:
alguns na beira da água,
outros em deitadas colinas;
muitos no alto de cais
com casarões de escadas para o rio;
todos sempre ostentando
sua ulcerada alvenaria;
todos bem orgulhosos,
não digo de sua poesia,
sim, da história doméstica
que estuda para descobrir, nestes dias,
como se palitava
os dentes nesta freguesia.

As primeiras ilhas

Rasas na altura da água
começam a chegar as ilhas.
Muitas a maré cobre
e horas mais tarde ressuscita
(sempre depois que afloram
outra vez à luz do dia
voltam com chão mais duro
do que o que dantes havia).
Rasas na altura da água
vê-se brotar outras ilhas:
ilhas ainda sem nome,
ilhas ainda não de todo paridas.
Ilha Joana Bezerra,
do Leite, do Retiro, do Maruim:
o touro da maré
a estas já não precisa cobrir.

O outro Recife

Casas de lama negra
há plantadas por essas ilhas
(na enchente da maré
elas navegam como ilhas);
casas de lama negra
daquela cidade anfíbia
que existe por debaixo
do Recife contado em Guias.
Nela
deságua a gente
(como no mar deságuam rios)
que de longe desceu
em minha companhia;
nela deságua a gente
de existência imprecisa,
no seu chão de lama
entre água e terra indecisa.

Dos Coelhos ao cais de Santa Rita

Mas deixo essa cidade:
dela mais tarde contarei.
Vou naquele caminho
que pelo hospital dos Coelhos,
por cais de que as vazantes
exibem gengivas negras,
leva àquele Recife
de fundação holandesa.
Nele passam as pontes
de robustez portuguesa,
anúncios luminosos
com muitas palavras inglesas;
passa ainda a cadeia,
passa o Palácio do Governo,
ambos robustos, sólidos,
plantados no chão mais seco.

Rio lento de várzea,
vou agora ainda mais lento,
que agora minhas águas
de tanta lama me pesam.
Vou agora tão lento,
porque é pesado o que carrego:
vou carregado de ilhas
recolhidas enquanto desço;
de ilhas de terra preta,
imagem do homem que encontrei
no meu comprido trajeto
(também a dor desse homem
me impõe essa passada doença,
arrastada, de lama,
e assim cuidadosa e atenta).

Vão desfilando cais
com seus sobrados ossudos.
Passam muitos sobrados
com seus telhados agudos.
Passam, muito mais baixos,
os armazéns de açúcar do Brum.
Passam muitas barcaças
para Itapissuma, Igaraçu.
No cais de Santa Rita,
enquanto vou norte-sul,
surge o mar, afinal,
como enorme montanha azul.
No cais, Joaquim Cardozo
morou e aprendeu a luz
das costas do Nordeste,
mineral de tanto azul.

As duas cidades

Mas antes de ir ao mar,
onde minha fala se perde,
vou contar da cidade
habitada por aquela gente
que veio meu caminho
e de quem fui o confidente.
Lá pelo Beberibe
aquela cidade também se estende
pois sempre junto aos rios
prefere se fixar aquela gente;
sempre perto dos rios,
companheiros de antigamente,
como se não pudessem
por um minuto somente
dispensar a presença
de seus conhecidos de sempre.

Conheço todos eles,
do Agreste e da Caatinga;
gente também da Mata
vomitada pelas usinas;
gente também daqui
que trabalha nestas usinas,
que aqui não moem cana,
moem coisas muito mais finas.
Muitas eu vi passar:
fábricas, como aqui se apelidam;
têm bueiro como usina,
são iguais também por famintas.
Só que as enormes bocas
que existem aqui nestas usinas
encontram muitas pedras
dentro de sua farinha.

A gente da cidade
que há no avesso do Recife
tem em mim um amigo,
seu companheiro mais íntimo.
Vivo como esta gente,
entro-lhes pela cozinha;
como bicho de casa
penetro nas camarinhas.
As vilas que passei
sempre abracei como amigo;
desta vila de lama
é que sou mais do que amigo:
sou o amante, que abraça
com corpo mais confundido;
sou o amante, com ela
leito de lama divido.

Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva.

A não ser esta cidade
que vim encontrar sob o Recife:
sua metade podre
que com lama podre se edifica.
É cidade sem nome
sob a capital tão conhecida.
Se é também capital,
será uma capital mendiga.
É cidade sem ruas
e sem casas que se diga.
De outra qualquer cidade
possui apenas polícia.
Desta capital podre
só as estatísticas dão notícia,
ao medir sua morte,
pois não há o que medir em sua vida.

Conheço toda a gente
que deságua nestes alagados.
Não estão no nível de cais,
vivem no nível de lama e do pântano.
Gente de olho perdido
olhando-me sempre passar
como se eu fosse trem
ou carro de viajar.
É gente que assim me olha
desde o sertão do Jacarará;
gente que sempre me olha
como se, de tanto me olhar,
eu pudesse o milagre
de, num dia ainda por chegar,
legar todos comigo,
retirantes para o mar.

Os dois mares

A um rio sempre espera
um mais vasto e ancho mar.
Para a agente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar.
Por entre esta cidade
ainda mais lenta é minha pisada;
retardo enquanto posso
os últimos dias da jornada.
Não há talhas que ver,
muito menos o que tombar:
há apenas esta gente
e minha simpatia calada.

Oferenda

Já deixando o Recife
entro pelos caminhos comuns do mar:
entre barcos de longe,
sábios de muito viajar;
junto desta barcaça
que vai no rumo de Itamaracá;
lado a lado com rios
que chegam do Pina com Jiquiá.
Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar,
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Mais sobre João Cabral de Melo Neto em

Do novelo emaranhado da memória, José Saramago puxa um fio que lhe parece solto. Mais tarde, quando as mãos se juntarem às mãos, ele saberá tudo.


Protopoema

Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

José Saramago

Mais sobre José Saramago em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

sexta-feira, julho 20, 2007

A máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo. Enquanto isso, avaliando o que perdera, Drummond seguia vagaroso, de mãos pensas.


A máquina do mundo


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Eugénio de Andrade tem ainda uma coisa a dizer. São poucas palavras, palavras que muito amei, que talvez ame ainda.


O sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

Deixa-me errar alguma vez e me compreende, mas não me solte. Para que eu não me perca enquanto houver entre nós essa magia, pede Lya Luft ao seu amor.


Canção para um Desencontro


Deixa-me errar alguma vez,
porque também sou isso: incerta e dura,
e ansiosa de não te perder agora que entrevejo
um horizonte.
Deixa-me errar e me compreende
porque se faço mal é por querer-te
desta maneira tola, e tonta, eternamente
recomeçando a cada dia como num descobrimento
dos teus territórios de carne e sonho, dos teus
desvãos de música ou vôo, teus sótãos e porões
e dessa escadaria de tua alma.

Deixa-me errar mas não me soltes
para que eu não me perca
deste tênue fio de alegria
dos sustos do amor que se repetem
enquanto houver entre nós essa magia.

Lya Luft

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

quinta-feira, julho 19, 2007

Aqui está a minha vida, a minha voz, a minha dor. A herança de Cecília Meireles é um mar solitário, de um lado amor e, de outro, esquecimento.


Apresentação


Aqui está a minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar
dedicados ao vento.
Aqui está a minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento.
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está a minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e, de outro, esquecimento.


Cecília Meireles
(1901-1964)

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Mário de Andrade, a moça linda, três séculos de família, burra como uma porta, um amor, e o grã-fino do despudor, burro como uma porta, um coió.


Moça linda bem tratada


Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

Mário de Andrade

(1893-1945)

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O mundo é para todos, assim o disse Deus. Mas para Álvares de Azevedo houve um erro de imprensa no Evangelho.


Dinheiro

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune, adoré;
on a consideration, honneur, qualités, vertus.
Quand on n'a point d'argent, on est dans la dépendance
de toutes choses et de tout le monde
Chateaubriand


Sem ele não há cova- quem enterra
Assim grátis, a Deo? O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?
Demais, as Dânaes também o adoram...
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a Deputado, até Ministro,
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma Romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos... Certamente
Assim o disse Deus mas esse texto
Explica-se melhor e doutro modo...
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim, concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras.


Álvares de Azevedo
(1831-1852)

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quarta-feira, julho 18, 2007

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do Rio, pede Ricardo Reis. Para ele, assim seria mais suave lembrar-se dela, pagã triste e com flores no regaço.


Ode de Ricardo Reis

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, (…)
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira- rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis,

um dos heterônimos de Fernando Pessoa

(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Podíamos saber um pouco mais da morte, da vida e do amor. Mas para Nuno Júdice não seria isso que nos faria descobrir que nada sabemos do amor.


Princípios

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice

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Por que se escreve, por que se diz, por que se publica e por que se declama um poema? Para guardar-se o que se quer guardar, segundo Antonio Cícero.


Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antonio Cícero

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terça-feira, julho 17, 2007

Florbela Espanca sonha que é a poetisa eleita, aquela que diz tudo e tudo sabe. E quando mais no céu vai sonhando, ela acorda do seu sonho...


Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...

E não sou nada!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Para Adélia Prado, de um único modo se pode dizer a alguém: não esqueço você. Para ela, tudo no mundo é perfeito e a morte é o amor.


Formas


De um único modo se pode dizer a alguém:
'não esqueço você'.
A corda do violoncelo fica vibrando sozinha
sob um arco invisível
e os pecados desaparecem como ratos flagrados.
Meu coração causa pasmo porque bate
e tem sangue nele e vai parar um dia
e vira um tambor patético
se falas no meu ouvido:
'não esqueço você'.
Manchas de luz na parede,
uma jarra pequena
com três rosas de plástico.
Tudo no mundo é perfeito
e a morte é o amor.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Paulo Leminski quer encontrar o seu Eu, o Eu ideal. E se acha nele, em você, em nós.


contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

Paulo Leminski

(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, julho 16, 2007

Quando menos se espera, tudo reverbera. E não acredite em Fadinhas, muito menos com cacete, aí está o moral da estória segundo Hilda Hilst.


Filó, a fadinha lésbica

Ela era gorda e miúda.
Tinha pezinhos redondos.
A cona era peluda
Igual à mão de um mono.
Alegrinha e vivaz
Feito andorinha
Às tardes vestia-se
Como um rapaz
Para enganar mocinhas.
Chamavam-lhe "Filó, a lésbica fadinha".

Em tudo que tocava
Deixava sua marca registrada:
Uma estrelinha cor de maravilha
Fúcsia, bordô
Ninguém sabia o nome daquela cô.
Metia o dedo
Em todas as xerecas: loiras, pretas
Dizia-se até...
Que escarafunchava bonecas.
Bulia, beliscava
Como quem sabia
O que um dedo faz
Desde que nascia.

Mas à noite... quando dormia...
Peidava, rugia... e...
Nascia-lhe um bastão grosso
De início igual a um caroço
Depois...
Ia estufando, crescendo
E virava um troço
Lilás
Fúcsia
Bordô
Ninguém sabia a cô do troço
Da Fadinha Filô.

Faziam fila na Vila.
Falada "Vila do Troço".
Famosa nas Oropa
Oiapoc ao Chuí
Todo mundo tomava
Um bastão no oiti.
Era um gozo gozoso
Trevoso, gostoso
Um arrepião nos meio!

Mocinhas, marmanjões
Ressecadas velhinhas
Todo mundo gemia e chorava
De pura alegria
Na Vila do Troço.

Até que um belo dia...
Um cara troncudão
Com focinho de tira
De beiço bordô, fúcsia ou maravilha
(ninguém sabia o nome daquela cô)
Seqüestrou Fadinha
E foi morar na Ilha.
Nem barco, nem ponte
O troncudão nadando feito rinoceronte
Carregava Fadinha.
De pernas abertas
Nas costas do gigante

Pela primeira vez
Na sua vidinha
Filó estrebuchava
Revirando os óinho
Enquanto veloz veloz
O troncudão nadava.

A Vila do Troço
Ficou triste, vazia
Sorumbática, tétrica
Pois nunca mais se viu
Filó, a Fadinha lésbica
Que à noite virava fera
E peidava e rugia
E nascia-lhe um troço
Fúcsia
Lilás
Maravilha
Bordô
Até hoje ninguém conhece
O nome daquela cô.

E nunca mais se viu
Alguém-Fantasia
Que deixava uma estrela
Em tudo que tocava
E um rombo na bunda
De quem se apaixonava.

Moral da estória, em relação à Fadinha:
Quando menos se espera, tudo reverbera.

Moral da estória, em relação ao morador
da Vila do Troço:
Não acredite em Fadinhas.
Muito menos com cacete.
Ou somem feito andorinhas
Ou te deixam cacoetes.

Hilda Hilst

(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

Superexcitadíssimos, os dois representam a alegoria do que outrora fomos. E a imagem bronca do que ainda hoje sois, diz um triste Augusto dos Anjos.

A fome e o amor

A um monstro

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!

Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!

Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os dois

Representam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que ainda hoje sois!


Augusto dos Anjos


(1884-1914)


Mais sobre Augusto dos Anjos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos